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Evergrande pode se tornar um novo Lehman Brothers? Entenda

Queda abrupta no valor de imóveis afetaria sistema bancário, cujos empréstimos podem ficar sem lastro adequado; baixa de insumos como aço é outro efeito

Placa do antigo banco americano Lehman Brothers, cuja quebra foi o estopim para a crise financeira global em 2008 | Foto: Andrew Winning/Reuters (Andrew Winning/Reuters)

Placa do antigo banco americano Lehman Brothers, cuja quebra foi o estopim para a crise financeira global em 2008 | Foto: Andrew Winning/Reuters (Andrew Winning/Reuters)

O colapso das ações da Evergrande, segunda maior empreiteira chinesa, que está na iminência de um calote em uma dívida de 305 bilhões de dólares, arrastou os mercados financeiros do mundo inteiro para o território negativo. O Hang Seng, índice de referência da Bolsa de Hong Kong fechou em queda de 3,30%. No Brasil, o Ibovespa terminou o pregão no negativo em 2,33%.

O caos Evergrande acontece em um momento já delicado para Wall Street. O índice S&P 500, o mais importante do mundo, fechou sete dos últimos nove pregões no vermelho. Isso não acontecia desde fevereiro passado.

É um sinal de fraqueza confirmado pela tendência dos contratos de opções de venda no S&P 500, que há semanas estão batendo os níveis mais elevados, acima do limite de 10 milhões de contratos. Isso significa que grandes investidores estão estipulando “seguros” contra a queda da bolsa.

Para quem espera uma virada de página rápida nos mercados, os próximos dias não serão agradáveis. Isso porque a Evergrande é apenas a ponta do iceberg de um problema que na China está assumindo dimensões assustadoras.

Em primeiro lugar, é necessário salientar como o setor das construções na China representa entre 16% e 25% de todo o Produto Interno Bruto (PIB) do gigante asiático.

As incorporadoras chinesas estão sob forte pressão para reembolsar suas dívidas, denominadas em dólares. Além disso, muitos investidores temem a possibilidade de Pequim forçar as grandes empreiteiras listadas a cortar os custos dos imóveis já construídos.

Isso iria afetar diretamente os bancos, uma vez que, reduzindo os valores dos imóveis, as hipotecas e os financiamentos imobiliários simplesmente não teriam mais um lastro adequado. Ou seja, haveria um efeito em cascata imediato em toda a economia chinesa.

Não por acaso, as ações da Ping Na, a maior seguradora da China, caíram até 8,4% nesta segunda-feira, dia 20, depois de fechar no vermelho de 5% na sexta-feira. E isso mesmo com a empresa sem exposição a dívidas ou ações da Evergrande.

As cotações das matérias-primas, com o minério de ferro em primeiro lugar, também caíram ao longo desta segunda-feira, à medida que aumentavam as preocupações com o impacto na demanda por commodities de uma retração no mercado imobiliário chinês.

Não por acaso, o minério de ferro caiu para menos de 100 dólares a tonelada pela primeira vez em mais de um ano. A commodity, fonte de lucro para grandes mineradoras como a Vale (VALE3), já tinha despencado 23% na semana passada.
O setor imobiliário chinês é responsável por cerca de 20% do consumo de cobre do país e 10% de sua demanda de níquel.

Efeito Lehman Brothers

Por isso, na China já há temores de que a crise possa se espalhar para outras empresas e para outros setores, não se limitando ao âmbito da construção civil. Um novo “momento Lehman Brothers”, capaz de chacoalhar os mercados do mundo inteiro como em 2008.

Curiosamente, essa distorção do mercado imobiliário, que provocou a crise atual, começou justamente após a grande crise financeira provocada pelo estouro da bolha do subprime.

Na época, a China havia se protegido da desaceleração da economia mundial com um pacote de estímulo de 4 trilhões de yuan (cerca de 586 bilhões de dólares).

Para onde foi tanto dinheiro? Exatamente para o setor imobiliário e de infraestrutura.

Na época havia a necessidade de reconstruir a província do Sichuan, devastada por um terremoto, fornecendo uma moradia digna para milhões de chineses que ascendiam para a classe média. Portanto, foram jogados rios de concreto.
Hoje, porém, a corrida ao concreto parece apresentar sua conta com o caso da Evergrande.

Na China se criou uma gigantesca bolha especulativa sobre os imóveis.

Uma bolha definida como "bolha garantida" pelo economista Zhu Ning em um livro de 2016, em que defendia a tese de que o investidor imobiliário tem a certeza inabalável de que nunca perderá dinheiro comprando um novo imóvel.

Isso porque, se algo acontecer, quem estiver acima – empreiteiras, bancos ou o Estado -- se responsabilizará pelo investimento.

É uma crença alimentada pelas garantias implícitas que governo e empreiteiras deram ao mercado. E que levou os preços das casas a dobrar em menos de 36 meses.

A partir de meados da década passada, as necessidades de urbanização e de novas casas para morar ficaram em segundo lugar e entraram em jogo a ganância e a mentalidade de rentista.

Bolha imobiliária

Junta-se a isso o chamado “preconceito urbano”, que se fortaleceu nos últimos vinte anos na mentalidade dos chineses. Ou seja, a ideia de que o campo e a economia agrícola são sinônimos de atraso, enquanto o modelo de desenvolvimento baseado na urbanização infinita é o único viável.

Assim, a bolha imobiliária se estendeu desde as metrópoles de primeiro nível (Pequim, Xangai etc.) para as de segundo nível, as de terceiro (como a menor Taiyuan) e também para o interior.

Nas áreas rurais da China, a especulação imobiliária também envolveu os governos locais, perpetuamente endividados, que conseguiram ganhar valores extra doando terrenos para as incorporadoras.

Com isso, grandes empresas imobiliárias, como a Evergrande, expandiram seus negócios indefinidamente, transbordando para outros setores, para conquistar novos territórios e novos mercados.

A Evergrande ao longo dos anos investiu em carros elétricos, saúde, seguros, agronegócios, turismo, entretenimento, mídia e finalmente também no futebol -- com o time Guangzhou FC, que venceu o campeonato nacional de 2011 a 2017 e depois novamente em 2019 (em 2018 e 2020, terminou em segundo lugar).

A Evergrande e suas colegas fizeram tudo isso tomando gigantescas quantias de dinheiro emprestado e com a certeza de obter crédito infinito dos bancos.

Mas mesmo se a maioria dos empresários do setor imobiliário estivesse endividada em mais de 100% de seu faturamento, graças ao “guanxi”, o relacionamento com bancos e autoridades públicas, a dívida só aumentava.

Uma situação piorada pelo fato de que muitos bancos são públicos.

Porém, recentemente, o governo chinês adotou políticas mais restritivas ao setor imobiliário, fechando a torneira do crédito para tentar esfriar a bolha especulativa.

Um objetivo tão urgente que chegou a ser declarado abertamente por Xi Jinping desde sua ascensão ao poder em 2013.

Em 2020, o governo fixou critérios de prudência financeira para incorporadores imobiliários resumidos em três "linhas vermelhas" que determinam se eles podem acessar novos créditos com base em sua dívida geral e na solvência de curto prazo.

Ou seja, eles decidem se podem construir mais.

Com as novas disposições, muitas dessas empresas teriam de cortar os preços das moradias para levantar mais financiamentos. Mas aquelas que estão ultraendividadas e em várias frentes registram graves problemas para respeitar essas novas regras.

É o caso da Evergrande, cuja exposição excessiva que não pode ser refinanciada gera uma reação em cadeia. São muitos canteiros de obras interrompidos, clientes que já pagaram seus imóveis e que jamais o receberão, fornecedores não pagos e um estoque enorme de apartamentos vazios. Tanto que a empresa chegou a pagar seus funcionários com imóveis.

A pergunta é: qual será a decisão do governo chinês, sempre dividido entre salvar grandes empresas da falência por temor que desestabilizem o sistema econômico -- a famosa “bolha garantida” -- ou dar um forte sinal aos especuladores do tijolo. A Evergrande seria o exemplo para todos.

O mundo saberá em breve qual direção a China tomará nesta crise.

*Carlo Cauti é Editor Multimídia da EXAME Invest.

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