Agricultura/Campo de milho/MS (Rafael Henrique/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)
Desde o começo da crise na Ucrânia muitos analistas, e até as Nações Unidas, chegaram a prever uma crise alimentar mundial provocada pelo desabastecimento de grãos.
Isso pois a Rússia (primeiro produtor de grãos do mundo) e a Ucrânia (o quinto) representam cerca de 30% de todos os grãos exportados no planeta.
A invasão russa bloqueou os portos ucranianos e impediu o escoamento dos alimentos, além de interromper as plantações de sementes, prejudicando as safras futuras.
Durante semanas, milhões de toneladas de trigo permaneceram nos portos ucranianos sem serem transportadas para os mercados consumidores. Um empasse superado apenas no mês passado, após um acordo entre Rússia e Ucrânia, mediado pela Turquia e pela ONU.
Por isso, logo após o começo da guerra na Ucrânia, os preços dos grãos dispararam, e o Secretário-Geral da ONU, Antônio Guterres, alertou que o número de pessoas afetadas pela insegurança alimentar "chegou a dobrar".
Entretanto, após meses de alarmes apocalípticos sobre a escassez de alimentos, já em meados de julho os preços começaram a cair. E até a revista britânica "The Economist" começou a questionar se esses alertas sobre carestias globais eram, no mínimo, exagerados.
Na semana passada, os futuros de trigo em Chicago para entrega em dezembro caíram para US$ 7,70, muito abaixo dos US$ 12,79 alcançados há três meses e voltando ao mesmo nível pré-conflito. A cotação do milho também voltou ao preço anterior ao começo da guerra.
O acordo negociado pelas Nações Unidas para liberar as exportações de grãos ucranianos não explica essa queda, pois foi assinado no final de julho, quando o declínio dos preços já estava ocorrendo.
Segundo o departamento de agricultura dos Estados Unidos, as exportações russas, longe de serem interrompidas totalmente (pois a maioria dos países do mundo não sancionou Moscou) chegarão em um recorde de 38 milhões de toneladas em 2022-23. Cerca de 2 milhões de toneladas a mais do que foi vendido no ano anterior.
Além disso, uma safra abundante de grãos russos está prestes a chegar nos mercados, graças também ao clima favorável registrado no início do ano. Com isso, a forte demanda de países do norte da África, Oriente Médio e Ásia, conseguirá ser atendida.
Por isso, segundo a revista, não estamos às vésperas de carestias em massa, a emergência alimentar é menos grave do que nos disseram, e, pior de tudo, surge a suspeita de que esses alarmes poderiam ter sido induzidos para elevar artificialmente os preços.
Uma suspeita levantada pelo "The Economist" é que os grandes intermediários especializados no comércio de commodities alimentares geraram o pânico para poder especular sobre as cotações, atuando em paralelo com o mercado de energia, que também disparou.
Entretanto, se a crise energética é uma realidade, pelo menos na Europa, a crise alimentar não se concretizou. O cenário de escassez generalizada de alimentos, fome em massa, migrações causadas pela fome, turbulência geopolítica no norte da África e no Oriente Médio, se relevou, até o momento, um falso alarme.
Nem mesmo a tragédia ocorrida no Sri Lanka se encaixa nesse alerta de crise alimentar. A derrubada do governo de Colombo foi provocada pelo mal estar da população por causa da falta de comida. Mas foi uma consequência da proibição de uso de fertilizantes químicos por parte do próprio Executivo, que decidiu converter todo o país à agricultura orgânica. Com o consequente colapso da produtividade das plantações.
Isso não significa que não existam problemas alimentares mundo afora. As severas secas que estão afetando o hemisfério norte do planeta (principalmente a Europa, a costa oeste dos EUA e a China) estão prejudicando as plantações.
Os aumentos de preços continuarão para alguns produtos, como o algodão ou o café. Além disso, mesmo o trigo e o milho não estão tão baratos, pois as cotações são em dólares e devem ser convertidas em moeda local. E com a valorização da divisa americana das últimas semanas, o preço acaba subindo.
Outro fator negativo, que persiste, é o aumento do preço dos fertilizantes derivados do gás natural. No entanto, mesmo no caso dos fertilizantes, os problemas de escassez generalizada anunciados no começo da guerra não ocorreram.
Outra razão pela qual a escassez de alimentos não está ocorrendo é que outras superpotências agrícolas, como o Canadá ou o Brasil, estão aumentando a produção, e irão compensar os déficits de alimentos em outras áreas do mundo.
Em apenas um ano, o Brasil aumentou em 33% a safra de milho, chegando a 116 milhões de toneladas. Cerca de 10% da produção mundial do grão.
Mas a questão fundamental que explica a razão pela qual a crise alimentar não ocorreu é que o mundo produz muito mais cereais do que os seres humanos necessitam para a alimentação.
Segundo dados da Agência das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) o excedente produzido é tão abundante que a maior parte das colheitas do mundo é desviada para alimentar gado ou para produzir biocombustíveis.
A quantidade de grãos usada como ração animal ou biocombustível (que tem um desempenho muito menor do etanol produzido no Brasil usando a cana de açúcar) é o equivalente a seis vezes a produção da Rússia e da Ucrânia juntas.
Somente em 2019, o consumo de grãos por parte de suínos foi de 430 milhões de toneladas. Uma quantia 45% superior do que todo o consumo anual de grãos da população chinesa.
O uso de grãos para a produção de biocombustíveis é questionável por muitas razões, mas deve aumentar por causa da alta das cotações de gás e o petróleo.
Mesmo assim, a ideia de que o planeta sofra um déficit alimentar é, evidentemente, uma exageração. Funcional para sustentar batalhas ideológicas ou especulações financeiras, mas sem qualquer base real.