Deputados aprovam em primeiro turno a PEC dos Precatórios (Agência Câmara/Agência Câmara)
Da Redação
Publicado em 5 de novembro de 2021 às 11h46.
O grande personagem do mês de outubro de 2021 foi o teto de gastos públicos, tal como definido pela EC95 (Emenda Constitucional 95) de 2016 (doravante “o Teto”), ou, na verdade, a percepção sobre o que foi feito do Teto, um tanto exageradamente pessimista talvez, pela qual não apenas o Teto, mas a política fiscal genericamente restou arruinada depois da conclusão (ou quase) das negociações sobre a PEC23, conhecida como PEC dos Precatórios.
A percepção sobre o desfecho da conversa sobre o Teto foi pior que a realidade, seja porque no ambiente de polarização política em que estamos tudo parece sempre mais controverso aos olhos do outro lado (ou mesmo por quem está no meio), seja porque o mecanismo do Teto não era tudo aquilo de que se falava e seu prazo de validade estava mesmo expirado [1].
Há muitos temas fiscais em discussão em pelo menos quatro esferas diferentes (e interrelacionadas): há questões orçamentárias, as questões pertinentes ao “espaço debaixo do teto”, a questão do espaço macroeconômico (ou para o conteúdo expansionista da política fiscal sem que se provoque o descontrole da inflação) e há a dimensão política.
A PEC dos Precatórios (PEC23, ainda não promulgada) é a terceira emenda constitucional que navega entre essas quatro esferas; a primeira foi a chamada PEC do “orçamento de guerra” (EC106, de maio de 2020), e a segunda foi a “PEC Emergencial” (EC109, de março de 2021).
De fato, a EC95 (o Teto) engessou o Orçamento, mesmo que não tivesse o condão de cancelar ou mesmo diminuir gastos. O Teto era uma referência apenas, um limite que, uma vez alcançado (ou alcançada certa proximidade crítica), disparava gatilhos e consequências adversas de natureza variada. Tal como se fosse uma cerca eletrificada que não se pode tocar ou mesmo chegar muito perto.
Mas o Teto em si não limitava nem alterava despesas que a própria Constituição determinava. Era apenas um “incentivo” para que outras alterações na Carta Magna pudessem ser feitas antes de a despesa pública alcançar o Teto.
É claro que o país tinha que substituir o Teto por outros mecanismos mais convencionais de manutenção da responsabilidade fiscal. Entretanto, não apenas não fizemos uma consolidação fiscal definitiva, como a pandemia reduziu dramaticamente o prazo de validade do Teto. Um grande desafio se apresentou para as autoridades econômicas, o de repensar a política fiscal após o natural esgotamento da “eficácia” do Teto.
Pois bem, a incapacidade de articulação política e interlocução com a sociedade foi tal que, em outubro de 2021, e após duas outras emendas constitucionais promulgadas, ainda não se sabia como seria o Orçamento de 2022, se o Teto já tinha sido efetivamente alcançado e o que viria a seguir.
A PEC23 acabou adotando uma solução estética e conceitualmente horrorosa para o assunto do Teto (meramente alterando a regra de correção monetária do Teto a ser aplicada sobre os valores de 2016), que foi interpretada pelo mercado não tanto como o fim do limite de gastos mas como a indicação de que o governo não tem uma solução para o fim do Teto, ao menos por ora. Por isso, a opção foi por uma pedalada com vistas a estender o prazo de validade para mais um exercício.
A mensagem sobre a política fiscal é ruim, como o próprio ministro reconheceu, mas não definitiva. A cada ano teremos uma discussão orçamentária difícil no Parlamento, feito qualquer país normal.
As três PECs (duas delas já promulgadas) trouxeram melhorias permanentes no arcabouço fiscal, de modo a permitir que se diga que a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) permaneceu levemente fortalecida, o mesmo valendo para as metas para o primário criadas anualmente pela LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). O país já foi capaz de conduzir políticas fiscais responsáveis com essas instituições, especialmente na presença de uma liderança comprometida com a responsabilidade fiscal.
Há muito espaço para melhorar e a experiência recente levou os debates muito profundamente na esfera orçamentária, por onde se espera que iniciativas inovadoras de reforma deverão surgir.
Do lado negativo, ficou mais visível e flagrante a precariedade das instituições orçamentárias e sobretudo a perda de credibilidade do ministro (e do governo), que reconheceu que “ficou devendo” ao aceitar o desenho final da PEC23. O descompromisso do governo com a responsabilidade fiscal dificilmente poderá ser revertido.
Fica reforçada e confirmada uma velha sabedoria segundo a qual as regras limitadoras à conduta fiscal dos governantes são sempre inúteis. Quando os governantes têm boa-fé, as regras são desnecessárias; quando não têm, são sempre contornadas [2].
Ao fim das contas, o ministro conseguiu ganhar mais um ano e abrir “espaço” debaixo do Teto para o novo Auxílio Brasil no Orçamento de 2022, com vistas a substituir (e ampliar) o Bolsa Família. As intenções são claramente eleitoreiras, mas a consolidação e a ampliação dos programas federais de transferências diretas é uma boa ideia, e que virá num bom momento, quando a atividade econômica está fraquejando.
Os mercados reagiram mal diante da sensação de que a polarização eleitoral dominou os debates sobre o Teto, os Auxílios e o Orçamento, interpretando negativamente as soluções encontradas pelo ministro Guedes. Velhos pavores sobre risco fiscal e suas implicações inflacionárias foram visíveis, mas o Banco Central cumpriu seu dever elevando os juros na 242ª reunião do Copom, terminada em 27 de outubro, elevando a Selic-Meta para 7,75% ao ano.
O Banco Central continua “atrás da curva”, conforme discutido nesse informativo em edições passadas, mas cumpre corretamente o seu papel. Um quadro clássico de loose fiscal tight money parece se definir para o futuro próximo, em torno do ano eleitoral. Resta saber que novidade o ministro Guedes planejou para compensar a percepção negativa deixada pelos eventos recentes no terreno da responsabilidade fiscal.
[1] Sobre o “Prazo de validade” do Teto especificamente, ver “O teto e o abismo” em O Estado de São Paulo, de 31/10/2021.
[2] É 55ª dentre as Leis secretas da economia, “designada como Lei de Giambiagi”, conforme enunciadas a partir dos escritos de Roberto Campos e Alexandre Kafka, por Gustavo H. B. Franco em As Leis secretas da economia: revisitando Roberto Campos e as leis do Kafka. Rio de Janeiro, Editora Jorge Zahar, 2012.
*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de novembro, relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.