Inteligência Artificial

Robôs que entendem o brasileiro são uma necessidade, defende João Alqueres, da Iara Digital

Para o executivo, assistentes virtuais impulsionadas por inteligência artificial generativa vão ser aliadas sem precedentes na história. O desafio, contudo, é desenvolver contexto cultural e trazer o ser humano ao centro do desenvolvimento ético da tecnologia

João Paulo Alqueres: CEO da Iara Digital (Leandro Fonseca/Exame)

João Paulo Alqueres: CEO da Iara Digital (Leandro Fonseca/Exame)

Laura Pancini
Laura Pancini

Repórter

Publicado em 10 de janeiro de 2024 às 12h55.

Última atualização em 10 de janeiro de 2024 às 14h23.

A prontidão das vozes de Siri, Alexa e Google, responsáveis por auxiliar os seres humanos em inúmeras atividades ingratas, representam a concretização de um sonho antigo de diversas civilizações. Uma narrativa mitológica judaica, por exemplo, já mencionava, milênios atrás, a ideia de um ser artificial pensante, o Golem, feito de barro, que atuaria como um serviçal. Na Idade Média, alquimistas aspiravam dar vida à criatura que nomearam de Homúnculo. Era um devaneio que o tempo e a ciência transformaram em realidade. A inteligência artificial (IA) contemporânea é a materialização dessa aspiração que se entrelaça com a história.

Contudo, à medida que são esculpidos os assistentes virtuais — ou Golens do século XXI — é perceptível que eles ainda são relegados a serem meros controladores de lâmpadas e despertadores com esteroides. Mas uma transformação está em andamento. A IA generativa, uma evolução da tecnologia que, ao receber uma solicitação escrita ou falada, responde de maneira convincente por meio de texto, imagem ou vídeo, além de adicionar US$ 4,4 trilhões de valor à economia global anualmente até o final desta década, com ferramentas como ChatGPT e Meta AI, promete uma revolução da interação homem-máquina. O verdadeiro potencial, contudo, está em conferir novas capacidades aos assistentes digitais, o que pode representar um marco no mercado dominado por Siri, Alexa e Google e outras assistentes.

João Paulo Alqueres, CEO da Iara Digital, empresa brasileira especializada em soluções de voz para Alexa, é um entusiasta dessa nova era da IA doméstica. O desenvolvedor de software, que mergulhou nesse universo como um hobby durante a pandemia, hoje lidera mais de 200 projetos com IA, atendendo clientes renomados como Universal, Paramount, Johnson & Johnson e o festival Rock In Rio. O carioca também se destacou como o primeiro brasileiro a ser agraciado com o prêmio Alexa Champions, uma homenagem da Amazon aos seus desenvolvedores mais dedicados. Para Alqueres, ao contrário das tendências de NFT e metaverso, a IA generativa veio para ficar. Em entrevista à EXAME, ele compartilha insights sobre o Iara Chat, bot que já registrou mais de meio milhão de perguntas respondidas em dez meses, e seu potencial para impulsionar negócios no WhatsApp e, evidentemente, na Alexa. Confira os principais trechos da conversa a seguir:

A IA generativa transformou profundamente a relação das pessoas com as máquinas. Existe uma sensação de diálogo natural, onde, ocasionalmente, acredita-se estar interagindo com uma entidade consciente. Isso não revela
o potencial da IA em substituir humanos?
Não vejo a tecnologia substituindo completamente os humanos. Estamos vivenciando uma nova fase das interfaces de interação. Antes, na internet, tínhamos uma lista de URLs e as compartilhávamos para obter respostas dos dispositivos. Agora, com a IA generativa, tudo gira em torno do ‘prompt’. Contudo, é preciso um guia com dezenas de sugestões e frases para interagir com o ChatGPT. Aqui, entra um aspecto fundamental espécie: humanos nem sempre sabem como formular as perguntas corretas, mesmo assim, conseguem a informação que precisam. O segredo é o repertório além da linguagem, e os humanos são únicos nisso. Na Iara, já recusamos projetos que consideramos eticamente questionáveis, especialmente quando envolviam a substituição de funções humanas sem levar em conta certos critérios. Por exemplo, recebi propostas para desenvolver uma IA que facilitaria a automedicação. Isso nos leva a refletir sobre situações em que a tecnologia pode atuar, mas não necessariamente deveria, por questões éticas.

Ter uma IA ‘made in Brazil’, como a sua criação Iara, oferece vantagens em quais aspectos? A parceria com grandes empresas, como Amazon, faz diferença?
A IA da Iara opera de forma distinta do ChatGPT ou Bard. Não encaminhamos a pergunta do usuário diretamente para os modelos de linguagem. Refinamos a questão antes de submetê-la e, se algo não está claro, a Iara solicita mais detalhes. Esse tipo de modelo é denominado ‘IA conversacional’. Nele, o objetivo é fazer com que a máquina entenda o ser humano. Já a localização regional da IA pode oferecer outras vantagens, como a integração com o WhatsApp, amplamente utilizado pelos brasileiros e muito adotado para relações comerciais. Para nós, foi uma escolha natural, pois se trata de estar acessível. É a maneira mais rápida de entender como as pessoas interagem com essas plataformas. Outra vantagem é a especialização ao contexto cultural brasileiro, uma necessidade para que a comunicação seja bem feita e a experiência com bots bem-sucedida.

A OpenAI está em negociações com investidores sobre uma possível oferta de ações que poderia avaliar a empresa entre US$ 80 bilhões e US$ 90 bilhões, triplicando seu valor desde o início de 2023. Você considera essa valorização justificada, ou a empresa teve a sorte de está no lugar certo, na hora certa?
Não podemos prever o futuro e determinar se a avaliação reflete o verdadeiro impacto da empresa. No entanto, do ponto de vista de contribuição para a sociedade, acredito que a OpenAI tem um papel significativo. Penso que o lançamento do GPT fez as grandes empresas se mobilizarem. Pessoalmente, tenho grande admiração por Sam Altman e suas reflexões sobre ética. Devemos lembrar que as grandes empresas de tecnologia já possuíam soluções semelhantes ao ChatGPT e as utilizavam internamente. O mercado estava sendo moldado nos bastidores, e, com o lançamento da OpenAI ao público, agora está em evidência. Como Altman parece estar tornando tudo o mais transparente possível, vejo sua contribuição para o mercado como notável – e acredito que será lembrado nos livros de história como um divisor de águas.

E nessa dinâmica desenhada entre grandes empresas e grandes investimentos, há espaço para empresas menores crescerem?
Esse mercado está se desenhando para ser um mercado de modelos de código aberto, ou seja, algo mais descentralizado. No caso da Meta, por exemplo, ela pega um modelo de linguagem já existente e treina com seus dados e seu contexto. Claro que teremos uma Amazon ou uma OpenAI na frente da corrida, mas também teremos possibilidades de modelos de código aberto – assim, qualquer pessoa ou empresa pode replicar o modelo e criar o próprio a partir dele e usando os dados que guardou para treinar essa IA.

Com o código aberto como padrão dos negócios, a regulação e os ajustes da evolução da IA devem seguir por qual caminho?
Saímos muito traumatizados da polarização estimulada pelas redes sociais, então acredito que olhamos para a IA e percebemos que a desinformação poderia piorar se não fizéssemos algo. É só ver a diferença entre quanto tempo demorou para Mark Zuckerberg ser chamado para depor desde o lançamento do Facebook em comparação a Altman com o ChatGPT.  A regulamentação da IA apareceu em menos de 10 meses, enquanto ficamos quase 10 anos sem agir sobre as redes sociais, que mudaram nosso tecido social. Elas mudaram países, eleições e tiveram um impacto profundo nas crianças que cresceram com elas. Era algo que era para ter sido regulamentado. Hoje, aprendemos nossa lição como sociedade.

E qual é a posição do Brasil nesse cenário?
Por aqui, não estamos trabalhando muito com a tecnologia de base. Poucas empresas investem na criação de modelos próprios, e sim pegam modelos já existentes para criar soluções. A grande maioria está usando para desenvolver soluções para atender clientes de forma automatizada. Quem antes investia em atendimento via Whatsapp, por exemplo, hoje está procurando desenvolver o próprio chatbot. As empresas que estão trabalhando com inteligência artificial, criando os próprios modelos, ainda estão no começo.

Como você enxerga a evolução da relação entre as pessoas e a inteligência artificial nos próximos anos, e quais são os principais desafios e oportunidades que essa interação apresenta para o setor de tecnologia?
É muito desafiador pegar algo tão poderoso e tentar adivinhar como as pessoas vão interagir com ela. O momento que estamos traz essa reflexão: as pessoas vão redescobrir como elas trabalham com IA. Isso vai causar essa disrupção. Acredito que ano que vem ainda vamos ficar experimentando. Vemos que tem muita gente que quer usar, muita gente que quer propor soluções rápidas, mas acho que vamos caminhar mais para ela como uma auxiliadora. O desafio, que é super gostoso, é criar soluções para que isso mude a vida das pessoas.

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