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Da Redação
Publicado em 14 de outubro de 2020 às 23h42.
A tokenização pode parecer um processo complicado, mas sua beleza está na simplicidade do conceito e em sua ampla aplicação. O mecanismo começou a ganhar tração em 2018 com o início da tokenização de ativos financeiros e o lançamento de algumas plataformas de security tokens, nos EUA e na Europa, principalmente.
Muitos ainda acreditam que esse processo é voltado apenas para o mercado financeiro. O fato é que a tokenização e as tecnologias distribuídas como blockchain e as DLTs atuam modificando três frentes primordiais: a transferência de valor, de propriedade e de dados de identidade.
André Portilho, sócio do BTG Pactual, resume o conceito. “Tokenização nada mais é do que transitar valores, propriedades, registros, via internet, de um lugar para o outro. O token representa digitalmente um ativo físico, um ativo real. O potencial disso é que qualquer produto que seja tanto físico quanto digital pode ser representado por um token”, diz.
Será possível agilizar consideravelmente os processos de contestação de propriedade, muito comuns no mundo todo e que tomam um bom tempo em uma negociação de imóveis, por exemplo. Mas como é possível diferenciar direitos de reivindicação e direitos de propriedade?
Quais são as diferenças na tokenização entre diferentes classes de ativos? O que está impedindo a adoção da tokenização, já que ela traz tantos benefícios assim contra a burocracia além de promover o aumento da credibilidade e segurança dos sistemas de registro?
Para entender a tokenização é preciso compreender primeiro a tecnologia de blockchain e os contratos inteligentes, além de aspectos jurídicos, financeiros e econômicos, bastante envolvidos nessa transformação digital. Hoje, vamos explicar alguns desses aspectos.
Na prática, a tokenização – em sua definição mais simples – é a representação de um valor em uma unidade digital em blockchain (ou usando DLTs). Os tokens armazenam direitos legais e de propriedade e os transformam em ativos digitais – não apenas monetários, vale dizer -, para permitir transações e processos de registro de informações em um protocolo blockchain.
Quem faz essa garantia de propriedade é o emissor do Token. Por isso, no caso da tokenização, o emissor precisa ser uma instituição que inspire confiança no investidor, geralmente instituições bem estabelecidas no mercado. O cenário é esse pela falta de um amadurecimento deste mercado, que ainda é muito recente, e consequentemente, uma legislação que preveja garantias e regras para o bom funcionamento desses novos aspectos financeiros.
Os ativos não são apenas monetários porque a tokenização não é igual à securitização (ou titularização) – uma prática financeira de transformar ativos financeiros em títulos negociáveis no mercado de capitais. O processo tradicional de securitização é relativamente caro, além de geralmente envolver intermediários que usam sistemas diferentes uns dos outros, o que dificulta a liquidez destes ativos.
A tokenização é mais transparente, menos burocrática e traz mais segurança e eficiência para a transação de dados e registro de transações de uma forma geral. A lógica de negócios pode ser aplicada diretamente no ativo tokenizado, diminuindo a necessidade de intermediários no processo – a descentralização dos dados torna o procedimento menos dependente da confiança em uma terceira pessoa. E o aspecto global dos blockchains e DLTs permite que mais investidores tenham acesso a produtos financeiros que geralmente ficavam restritos a praças locais e regionais.
Além disso, os tokens podem estar vinculados aos contratos inteligentes, que podem ter funções específicas para transações automáticas.
A tokenização, de fato, é uma ferramenta poderosa para desembaraçar negócios, já que os efeitos da tecnologia serão altamente disruptivos. Estamos diante de uma tecnologia nova e, como qualquer inovação, ainda estamos no estágio de contemplar a novidade, experimentar estratégias diferentes, testar abordagens e criar novas experiências para os usuários.
O fato é que essa tecnologia ainda é muito experimental e está apenas começando a se consolidar. O potencial de negócios dessa tecnologia é gigantesco, e isso já foi percebido por algumas instituições públicas e privadas do país. É agora que os órgãos reguladores vão começar de fato a trabalhar em regras que preparem o Brasil para viver em uma economia digital.
Para André Portilho, a tokenização é uma tecnologia muito nova e a legislação que existe no Brasil, hoje, ainda está longe de atendê-la. Ele cita o mercado de investimentos como exemplo, afirmando que “embora a maioria dos processos nos investimentos já seja digital”, como a bolsa de valores, “a forma como o mercado funciona ainda é amarrada em etapas que foram concebidas no mundo analógico”.
“Foram digitalizados os instrumentos, mas as etapas e os processos ainda são analógicos. E isso se deve muito à regulamentação e ao modo como as coisas foram feitas. É um processo relativamente normal e que vai mudar com essas tecnologias de DLT e blockchain, pois elas conseguem trazer mais eficiência para essas etapas.”
Os utility tokens eram os mais utilizados em novas rodadas de financiamento de empresas de blockchain, por meio da oferta inicial de moedas, as ICOs. Dentro desse cenário surge um paradoxo: apesar de esses tokens de utilidade terem valor dentro da plataforma em que operam, em boa parte dos casos eles não têm uma proposta de valor de fato, e não funcionam como um ativo tangível real. Em outras palavras, eles funcionam basicamente em um sistema de especulação, sem valor real.
Os security tokens – que também podem ser chamados de tokens garantidos por valores mobiliários – estão sendo introduzidos justamente para dar garantia aos negócios, por estarem necessariamente atrelados a um ativo físico.
Além dos pontos já destacados em relação à maior velocidade, mais segurança e menor custo na estruturação do negócio, há também o aumento na liquidez, já que com a tokenização é possível um fracionamento maior de determinados ativos,o que aumenta o número de investidores dispostos a negociar essas frações no mercado. O investidor pode selecionar uma fração de um ativo real tokenizado e investir nela com muito mais facilidade. Isso ajuda na democratização de acesso a investimentos, o que é ótimo para os investidores e para o mercado como um todo.
O BTG Pactual já tem um case nesse formato: o ReitBZ, primeiro security token feito por um banco no mundo. A oferta, realizada em fevereiro, com o token digital sendo emitido em maio de 2019, representa uma carteira de imóveis aqui no Brasil.
O banco fez a captação do dinheiro para a compra dos ativos imobiliários que viriam a compor a carteira, digitalizou esse ativo em um formato de tokens e comercializou com investidores do Brasil e do exterior. Quem comprou adquiriu os direitos econômicos desse portfólio e se tornou um detentor de token, tal qual o detentor de uma ação ou investimento tradicional. Esse token fica armazenado na carteira digital do cliente e traz um alcance muito maior para negociações de ativos imobiliários reais, tanto economicamente quanto em termos de localização.
O que isso significa? Que um investidor do Quênia, por exemplo, pode aplicar 500 euros em um token do BTG, por exemplo, e receber dividendos, tudo isso dentro de um blockchain, com a carteira digital dele, sem intermediários, criando um processo mais claro e objetivo para os gestores e para os investidores.
Isso vai ao encontro da visão de Portilho e do BTG sobre a tecnologia. “Da mesma forma que uma ação pode ser negociada digitalmente e representa uma participação em determinada empresa, o token tem a mesma lógica como investimento. A nossa visão de banco é que essa tecnologia tem potencial para transformar a forma como os mercados de capital funcionam no Brasil e no mundo. Não é uma coisa que a gente acha que vai acontecer no curto prazo, é mais para daqui três ou cinco anos.”
Mas por que essa liquidez é importante para o mercado financeiro?
A liquidez tem uma relação muito forte com o volume de negociação de um ativo e seu preço. Em outras palavras, uma boa liquidez pode aumentar o valor dos ativos, por diminuir os riscos associados à impossibilidade de sair rapidamente de uma posição em um determinado ativo, como, por exemplo, vender sua participação em um imóvel. Com a tokenização, a praticidade da compra e venda é geralmente maior que com os instrumentos tradicionais de negociar ativos alternativos.
Portilho ainda adiciona o fato dos security tokens garantirem a democratização do investimento. “Antes, você só fazia um negócio desses com muito dinheiro. A realidade é que um fundo imobiliário padrão não pode ser vendido para alguém em outro país, por exemplo. Trata-se da criatividade de empacotar os produtos que façam sentido dentro desse conceito e, no limite, você pode fazer isso para outros produtos tradicionais, como ações, dívida, CDB, que podem ser distribuídos globalmente.”
Um mercado de negociação de ativos tokenizados que negocia 24 horas por dia, sete dias por semana e 365 dias por ano não apenas reduz a volatilidade dos preços, mas também garante uma solidez maior dos ativos negociados.
O termo “contrato inteligente” exige uma explicação à parte: eles são inteligentes por trabalharem de forma automatizada depois de programados por desenvolvedores, e também não representam um contrato legal. Para funcionar, os smart contracts levam em consideração todas as informações que foram inseridas em seus códigos de programação.
Também é preciso considerar a existência de muitas questões técnicas e de regulamentação que precisam ser trabalhadas para que os contratos inteligentes funcionem efetivamente em conjunto com a tokenização de ativos.
No entanto, a relação dos smart contracts com a tokenização é basicamente a seguinte: os smart contracts fornecem mecanismos para gerenciar com eficiência ativos tokenizados e direitos de acesso entre duas ou mais partes.
A tecnologia dos security tokens surgiu depois de uma grande movimentação do universo das criptomoedas. O Bitcoin foi o pioneiro que trouxe a tecnologia de blockchain para o mundo. O Ethereum foi o responsável pela introdução dos smart contracts em blockchain. Essa popularização permitiu emergir o negócio de tokens/tokenização.
Com o boom do preço do Bitcoin em 2017, milhares de pessoas, empresas e startups querendo aproveitar o momento começaram a fazer ICOs para vender tokens, mas a maioria dos tokens não tinham lastro e alguns representavam até esquemas fraudulentos.
Com a queda abrupta do preço do Bitcoin, esse mercado perdeu a tração e começaram a aparecer ofertas de Security Tokens (STOs), que traziam como benefícios a regulação e o lastro em ativos reais, inspirando maior confiança ao investidor.
Esses security tokens servem como um meio para transacionar registros, valores e propriedades digitalmente – via internet – em escala global. Isso significa que, comparados à instrumentos tradicionais, security tokens possuem capacidades importantes quanto à divisão, transferência e durabilidade, aplicando esses aspectos a ativos reais.
Mas e o futuro dos security tokens?
Ainda estamos em uma fase de consolidação dos conceitos tecnológicos e de uma adoção mais ampla dessa tecnologia nos mais diversos setores. Alguns testes já foram realizados, projetos estão sendo planejados e estratégias começam a ser criadas por governos e empresas.
Para o Brasil, a legislação ainda está começando a se movimentar em direção à uma regulamentação maior desses novos mercados e aplicações que vão surgir com a tokenização.
Segundo André Portilho, essa demora dos legisladores é relativamente normal. “O fato da legislação não acompanhar não é exclusividade dos tokens. Quando uma tecnologia nova aparece, primeiro vem a tecnologia, primeiro vêm os early adopters, o anarquista que puxa o uso do negócio, e se a tecnologia for boa mesmo, o resto vai atrás. Se a tecnologia for só uma moda, ela some, mas se a tecnologia for boa aí vem legislação, vem a institucionalização das coisas, as pessoas começam a adotar essas novas regras e o negócio ganha efetivamente o mercado.”
E ele faz sua previsão para o futuro dos security tokens – mais especificamente aplicados ao mercado financeiro. “O que vai acontecer com os tokens provavelmente é a mesma coisa. Você tem esse movimento anárquico primeiro, e quando vemos que a tecnologia é boa mesmo, começamos a construir as bases para sua massificação com segurança. É o que está acontecendo agora. Para fazer qualquer oferta de produtos para um público de varejo ou privado, é preciso seguir uma série de regras definidas pela CVM, pois é ela quem cuida de valores mobiliários. Essas regras todas são antigas, foram concebidas ainda num mundo analógico com o intuito de proteger o investidor final. O que acontece é que algumas exigências que ainda existem hoje na regulação não são mais necessárias com essa tecnologia.”
A próxima fase dos security tokens provavelmente terá como foco uma combinação de melhores projetos envolvendo tokens e pensando mais na experiência do usuário final nessas plataformas. Além disso, os personagens envolvidos com essa inovação precisam evoluir a infraestrutura tecnológica e a regulamentação para que essa tecnologia realmente seja adotada em massa.