(Reprodução/Reprodução)
Redação Exame
Publicado em 22 de junho de 2024 às 11h00.
Última atualização em 24 de junho de 2024 às 11h58.
O legado do economista americano Robert Merton é tão significativo que se torna difícil expressá-lo adequadamente. O verbete dedicado a ele na Wikipédia enumera um total de 23 honrarias e prêmios recebidos ao longo de quatro décadas, com destaque para o Prêmio Nobel de Economia de 1997 por suas contribuições em precificação de opções.
No dia 4 de junho, ele participou de um evento em São Paulo, no qual apresentou uma interessantíssima palestra sobre inovação financeira, mostrando como ela está intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento econômico, com exemplos reais. Também mostrou como tais inovações vêm ocorrendo em ritmo cada vez mais acelerado, exibindo uma linha do tempo entre os anos de 1200 e 2010.
Após a palestra, iniciou-se uma sessão na qual três painelistas fizeram perguntas a Merton. O tema dos criptoativos apareceu logo na segunda pergunta: “Qual a sua opinião sobre ativos digitais, bitcoin, criptomoeda, tecnologia blockchain? Você acha que isso é uma inovação real que pode agregar valor à sociedade ou eles são apenas uma cortina de fumaça para bolhas de preços e especulação?”
Merton iniciou sua resposta dizendo que não há dúvidas de que a ferramenta - os blockchains - será muito útil, mas é cético a respeito das aplicações, como as criptomoedas. De certa forma, ele fez coro para a difundida ideia de que blockchains são boas, mas criptos são ruins. Porém, na realidade, as duas formam um sistema binário, como chave e fechadura, e, consequentemente, são indissociáveis. Os blockchains são redes descentralizadas de registro digital de informações e, a fim de garantir que seus participantes atuem de forma idônea, voluntária e independente, é preciso haver alguma representação de valor, neutra e sem risco de contraparte, que premie os bons colaboradores e puna os agentes maliciosos.
As criptos nativas das redes blockchain exercem esse papel, alinhando os incentivos dos participantes e permitindo que efeitos de rede emerjam sem a necessidade de confiança mútua. De volta à resposta de Merton, ele prosseguiu propondo uma estrutura em quatro perguntas para avaliar aplicações: (i) qual é o problema que a aplicação busca resolver? (ii) como esse problema é tratado hoje em dia? (iii) como a nova aplicação é melhor do que a existente hoje em dia? (iv) há alguma alternativa ainda melhor do que a nova aplicação proposta? Ao apresentar essa estrutura, o economista deu algumas dicas de porque é cético em relação às aplicações, dando a entender que cripto falha em algumas dessas perguntas, particularmente na aplicação como moeda.
Uma passagem da resposta, porém, expõe uma premissa bastante fundamental de Merton da qual discorda a grande maioria daqueles que acreditam no poder disruptivo do binômio blockchain/cripto: "Você precisa de confiança e, geralmente, a melhor confiança que você pode encontrar — não significa que seja sempre válida — é no seu governo, a menos que ele esteja em crise. Isso, geralmente, é o padrão." Para a comunidade cripto, vale o aforisma reaganiano “As nove palavras mais aterrorizantes na língua inglesa são: eu sou do governo e estou aqui para ajudar.”
Para os entusiastas de cripto, é mais fácil confiar em um algoritmo transparente, previsível e auditável que nos seus governos. Partindo de premissas tão diferentes, não é de se estranhar que as conclusões sejam bem discrepantes. A despeito das diferenças de premissa, pode ser interessante utilizar a estrutura proposta por Merton para avaliar as aplicações de cripto (associadas às blockchains) sob a ótica da comunidade.
Sobre qual é o problema que as criptos buscam resolver e como esse problemas são resolvidos atualmente, há uma grande diversidade. Não obstante, de um modo mais geral, as criptomoedas procuram oferecer uma alternativa à tradicional figura da terceira parte intermediária, que historicamente atua como uma entidade confiável e (idealmente) neutra entre duas partes envolvidas em diferentes tipos de transações bilaterais.
Sobre a terceira pergunta, a respeito das vantagens da nova aplicação sobre a atual, pode-se dizer que, ao eliminar a necessidade de intermediários, as criptos podem aumentar a segurança e a eficiência das transações, reduzindo drasticamente seus custos, além de torná-las mais diretas e transparentes, sem estarem submetidas ao controle de nenhum indivíduo, empresa ou governo. Evidentemente, nem todos os problemas requerem soluções baseadas em blockchain e cripto. No estágio atual, ainda infante, há muito experimentalismo. É provável que, no futuro, apenas uma fração das aplicações hoje propostas se estabeleça como predominante. É provável que, para algumas finalidades, aplicações com e sem cripto/blockchain convivam e compitam entre si.
Já a quarta questão colocada por Merton, sobre a possibilidade de haver outras alternativas ainda melhores, é muito difícil de responder de forma geral. Cada caso é um caso. Porém, em pelo menos um exemplo, é possível argumentar que a aplicação com blockchain e cripto tem o potencial de ser a melhor possível: o bitcoin como reserva de valor, ou seja, um ativo que mantém seu valor por longos períodos.
Em sua resposta, Merton mencionou que “todo banco central tem como responsabilidade número um manter a moeda próxima ao preço das coisas que as pessoas compram”. Os números mostram que eles vêm falhando miseravelmente nessa tarefa. Nem mesmo o dólar americano, uma das moedas nacionais mais resilientes, foi exceção. Nos últimos cinquenta anos, já após o fim da conversibilidade com o ouro, o dólar perdeu quase 85% do seu poder de compra. Apenas nos últimos 20 anos e, portanto, posteriormente ao desenvolvimento dos arcabouços de metas de inflação, a perda do poder de compra do dólar passou dos 40%.
Fica claro que, na escala de décadas, a moeda fiduciária não cumpre o papel de reserva de valor. Uma alternativa seria os títulos soberanos que, por renderem juros nominais, poderiam compensar a perda do poder de compra ocasionado pela inflação. Nesse caso, entra em cena a questão do risco de não pagamento por parte dos governos. Conta-se nos dedos de uma mão os países que não possuem histórico de falhar no compromisso com os seus credores.
Nem mesmo o governo dos EUA, maior economia do mundo, merecem máxima credibilidade (ou confiança) segundo a agência Fitch. Excluindo-se alternativas mais exóticas, resta o ouro. De fato, o ouro tem sido bem sucedido na preservação do valor de compra ao longo de séculos. É, muito provavelmente, a melhor tecnologia já estabelecida para esse propósito. A despeito disso, o ouro tem alguns problemas relevantes.
Para preservar, de fato, o seu valor ao longo do tempo, o ouro precisa estar armazenado em um lugar seguro, o que costuma ser caro. Mas não é apenas contra os ladrões que o poupador precisa proteger o seu ouro. Em certas ocasiões, o próprio governo, aquele mesmo que, segundo Merton, é confiável, faz as vezes de punguista, confiscando o ouro dos
cidadãos. Isso ocorreu, por exemplo, há menos de cem anos nos EUA, durante o governo do emblemático presidente Franklin Roosevelt.
Além das dificuldades de armazenamento, o ouro também apresenta dificuldades (e custos) para o seu transporte e, consequentemente, para as transações. Muitos bilhões de dólares em ouro repousam tranquilos no leito oceânico, em navios naufragados, sem nunca terem chegado ao destino pretendido.
Outro problema do ouro diz respeito à sua verificabilidade. Existem métodos científicos para aferir o nível de pureza do metal reluzente mas, ainda assim, podem existir suspeitas. Diversos casos de possíveis fraudes envolvendo uso de tungstênio, metal de densidade similar à do ouro, podem ser facilmente encontrados na Internet. Mesmo que não sejam verdadeiros, a mera suspeita evidencia esse ponto fraco do ouro.
O bitcoin soluciona todos esses problemas. Enquanto o dono dos bitcoins for capaz de lembrar da senha utilizada para assinar transações, seus bitcoins estarão à salvo, fora do alcance de criminosos e de governos. Para transferir os bitcoins, basta fazer uma transação, que custa poucos dólares, e, alguns minutos depois, estará concluída e será irreversível. Quanto à verificabilidade, todas as transações podem ser, fácil e diretamente, verificadas por qualquer participante da rede. Não existe algo como um bitcoin falso.
Há, entretanto, desafios a serem enfrentados pelo bitcoin. Apesar de nunca ter perdido valor em janelas de quatro anos (aproximadamente um ciclo de halving), seu preço oscila muito no curto prazo, ou seja, tem alta volatilidade. É bem verdade que a volatilidade em 360 dias já foi bem mais alta, passando dos 150% há cerca de dez anos. Desde novembro do ano passado, esse indicador encontra-se abaixo dos 40%. Hoje, mais de 10% dos constituintes do S&P 500 registram valores mais altos que o do bitcoin para essa métrica, incluindo nomes relevantes como Tesla e Nvidia.
Apesar do significativo avanço, os números atuais ainda são cerca de duas vezes maiores que os do ouro. A maior parte da volatilidade hoje observada no bitcoin é consequência do caráter ainda
especulativo do seu valor, com incertezas sobre suas potencialidades e sua curva de adoção. A adoção vem crescendo vigorosamente e, segundo estimativas, cerca de 15 mil estabelecimentos ao redor do mundo aceitam bitcoin como forma de pagamento. Ser um bom meio de pagamento não é condição necessária para ser uma boa reserva de valor mas, no caso do bitcoin, pode ser um meio importante para o bitcoin reduzir sua volatilidade.
Quanto mais estabelecimentos aceitarem bitcoin, mais fácil é para os próximos que passam a aceitar. O efeito de rede tem um papel muito importante nesse processo. É de se esperar que a volatilidade sofra uma redução significativa ao longo dos próximos anos. Mas o que garante que, resolvida a questão da volatilidade, o bitcoin pode vir a ser a melhor reserva de valor possível?
Para responder a essa pergunta, podemos recorrer a outro ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Milton Friedman: “A inflação é sempre e em todos os lugares um fenômeno monetário, no sentido de que ela é e pode ser produzida apenas por um aumento mais rápido na quantidade de dinheiro do que na produção”. O bitcoin nasceu com uma política monetária austera e previsível em seu DNA. A taxa de expansão da quantidade de bitcoins é, hoje em dia, menos de 1% ao ano e, portanto, inferior à do ouro e ínfima quando comparado às principais moedas fiduciárias. Essa taxa é reduzida pela metade a cada quadriênio e, por volta do ano 2140, chegará a zero.
Em hipótese alguma, haverá um aumento súbito da quantidade de bitcoins. Difícil imaginar que alguma reserva de valor possa ser melhor isso. Além do bitcoin, diversas outras aplicações de cripto devem se consolidar ao longo dos próximos anos. Se isso, de fato, vier a acontecer, Merton não estará sozinho entre os renomados economistas que erraram sobre o potencial dos criptoativos.
Terá, inclusive, a companhia de outros ganhadores do Prêmio Nobel, como Paul Krugman, Robert Shiller e Joseph Stiglitz. Em 1998, o Long Term Capital Management (LTCM), hedge fund do qual era sócio e membro do comitê, quebrou, ironicamente, como consequência de um calote de títulos do governo russo (que estava em crise, é bem verdade). Sua reputação é tão sólida que nem mesmo esse evento foi capaz de maculá-la. Confio que não há de ser diferente no caso dos criptoativos.
*João Marco Braga da Cunha é diretor de gestão na Hashdex.
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