Ether, a criptomoeda nativa da rede Ethereum (Jack Taylor/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 21 de agosto de 2022 às 10h22.
A era dos adiamentos da maior atualização da história da rede Ethereum parece ter chegado ao fim. Para quem já estava ansioso, como eu, o Merge foi antecipado em quatro dias, passou do dia 19 para 15 de setembro. Ainda que mudanças possam acontecer - como o desenvolvedor Tim Beiko fez questão de deixar claro no Twitter -, o adiantamento indica que a equipe está confiante no sucesso da missão e esse entusiasmo costuma ser visto com bons olhos pelos investidores.
De fato, a coleção de testes exitosos fortaleceu a convicção do time, reforçada esta semana com a atualização bem-sucedida da testnet Goerli, a última experiência de fusão antes de ocorrer na mainnet, quando enfim teremos o longamente aguardado Ethereum 2.0.
A odisséia de Vitalik Buterin e sua equipe não foi fácil. O Merge está em andamento desde 2016. Caminhou até aqui em meio a controvérsias e dúvidas, mas, por fim, será em breve mais uma fase superada. Ao menos, torcemos para que assim seja.
Os desafios, no entanto, só estão começando. As próximas semanas devem ser de muita emoção para os entusiastas da transformação. E, inevitavelmente, serão muito agitadas também para os dissidentes. Sim, porque os insatisfeitos existem e estão se reunindo para empreender novos contornos à situação como protesto à transição.
Mas, antes de entrarmos neste assunto, vamos falar um pouco sobre algumas implicações básicas que o Merge pretende trazer. Em seu nível mais elementar, mas não menos importante, o processo vai marcar a substituição do mecanismo de consenso da rede de prova de trabalho (PoW) por prova de participação (PoS).
Hoje, a exemplo do que acontece no bitcoin, os mineradores do blockchain Ethereum são pagos em ETH para processar transações, a partir de um trabalho intensivo de seus computadores e que consequentemente exige um uso massivo de energia. Com a virada para o sistema PoS, o Ethereum desocupa o lugar de vilão nos debates acalorados sobre eficiência energética conduzidos por governos, empresas e entidades. A era ESG é instaurada na rede, que reduzirá o consumo de energia em 99%.
A atualização também será um passo à frente no objetivo dos desenvolvedores da rede em turbinar sua escalabilidade e segurança, e assim garantir a longevidade da Ethereum no longo prazo. Em um primeiro momento, o upgrade não deve reduzir as taxas de gás, mas vai pavimentar o caminho para que isso aconteça.
Na modalidade PoS, os mineradores são, na verdade, simples detentores de ETH. Para atuar como um validador da rede, o interessado precisa obrigatoriamente bloquear um mínimo de 32 ETH e, em troca, recebe as recompensas de “mineração” ou taxas de transação. Diferentemente do PoW, no PoS, os validadores são escolhidos aleatoriamente através de um algoritmo que considera a quantidade de ETH em staking.
Em 2020, a equipe de desenvolvimento da ETH lançou a Beacon Chain, uma cadeia PoS paralela à atual cadeia PoW. A fusão ou The Merge, como é conhecido globalmente o processo, trata de unir a mainnet da ETH à Beacon Chain. Para que a rede principal não tivesse que ser interrompida e, ainda assim, fosse possível fazer a transição de forma bem-sucedida, foram realizadas diversas “fusões” em testnets da Ethereum. Elas possibilitaram, entre outras coisas, testar o funcionamento dos contratos inteligentes antes de lançá-los na mainnet.
Além de aumentar o valor percebido do ETH em todo o seu enorme ecossistema, a mudança vai elevar a patamares superiores o status da moeda como ativo, já que, adicionalmente, as emissões do token devem cair mais de 90% após a atualização. A emissão diária prevista deve cair cerca de dez vezes, de 13 mil ETH para 1,3 mil, algo por volta de 500 mil ETH por ano (13,8 milhões ETH estão atualmente em staking).
A comunidade está chamando essa redução de triplo halving, pois seria uma queda equivalente a três halvins do Bitcoin (o BTC irá para seu quarto halving em 2024). Desta forma, a política monetária do ETH finalmente entra nos trilhos, compensando uma deficiência histórica do ativo.
Se também olharmos para a quantidade de ETH queimada, por exemplo, no mês passado, de 50.217 ETH (segundo dados da plataforma Watch The Burn) e projetarmos a quantidade por um ano, teríamos mais de 602 ETH queimados. Isso significa que o número de ETH queimado será maior do que o emitido, portanto o ativo se torna deflacionário.
Dito tudo isso, o pacote completo Ethereum 2.0 inclui orientação deflacionária, um potencial de upside enorme da rede, sendo muito superior em usabilidade quando comparada com qualquer outro blockchain, e ainda conformidade com as exigências ESG.
Além disso, as recompensas em ETH dada aos validadores de PoS devem retroalimentar a rede, já que esses stakers naturalmente acreditam no projeto e, por possuir uma grande quantidade de ETH, tendem a se agarrar às recompensas. Os mineradores, por outro lado, têm uma tendência maior a despejá-las no mercado, porque podem precisar do dinheiro para sustentar os seus negócios.
Já que estamos falando em negócios de mineração, chegamos exatamente ao calcanhar de aquiles de toda a situação. Só para se ter uma ideia, desde 2020, mineradores de Ethereum compraram US$15 bilhões em GPUs, segundo dados estimados pelos analistas da Bitpro Consulting para a agência de notícias Bloomberg. Isso sem falar do restante da estrutura necessária para se montar um business de mineração. Com a mudança da rede para proof-of-stake, essa estrutura simplesmente não teria mais serventia.
Não é de se admirar, portanto, que os grupos afetados pelo fim do PoW na Ethereum queiram manter o status quo. Existem especulações sobre diversas movimentações de agentes envolvidos com a mineração que pretendem criar respostas próprias ao The Merge para manter seus negócios rodando. A mais polêmica de todas é a possibilidade da criação de um hard fork da Ethereum que mantenha o mecanismo de proof-of-work.
Com nomes proeminentes por trás, como Justin Sun, o criador da Tron, e o influente minerador chinês Chandler Guo, a iniciativa já ganhou forma e está sendo chamada de EthereumPoW. Os proponentes justificaram que a mudança para PoS sacrifica a centralização da Ethereum e, com o hard fork, eles pretendem manter “uma rede verdadeiramente descentralizada”.
As dissidências não são novas no mundo cripto. A própria Ethereum já passou por uma fissão quando foi criado o Ethereum Classic, em 2016. O bitcoin também sofreu forks no passado, gerando alternativas como o Bitcoin Cash.
Quando um hard fork ocorre, passa a existir uma cópia da rede original e as duas funcionam em paralelo, mas cada uma toma o seu rumo. Acontece que os saldos dos usuários, com a bifurcação, também são duplicados, porque passam a existir tanto na Ethereum quanto na EthereumPoW. A complicação para a Ethereum nesse quesito é extrema, porque a rede é formatada em uma estrutura super complexa, longe de ser objetiva como a do Bitcoin.
O fork dobraria, por exemplo, a quantidade de stablecoins USDC e USDT dos usuários, pois passariam a existir em ambas as redes ao mesmo tempo. Isso significa que as empresas responsáveis pela emissão dessas stablecoins, Circle e Tether, teriam que acumular reservas para respaldar as duas redes. As companhias, no entanto, já se manifestaram sobre a possibilidade do fork e disseram que não irão apoiar a estrutura proof-of-work dissidente. Assim, as stablecoins não terão valor nenhum para os usuários da nova rede.
Outro player chave que anunciou seguir suportando apenas a Ethereum de Vitalik Buterin e sua turma foi a Chainlink. O protocolo serve como uma ponte de escoamento de dados do mundo real para o blockchain. Oráculos como a LINK são de vital importância para a construção e eficiência das aplicações descentralizadas. A não adesão da companhia, sem dúvida, enfraquece os oponentes da Ethereum.
Mas há também quem apoie a aventura dos mineradores. Justin Sun, uma das mentes por trás do fork, já listou o novo token ETHW em sua exchange Poloniex. O token atualmente está cotado por volta dos US$ 70, mas chegou a ser negociado a quase US$ 150 segundo dados da própria corretora. Exchanges como BitMEX e Huobi também resolveram embarcar. A Binance se posicionou a favor da Ethereum PoS, mas não descarta dar suporte a eventuais tokens bifurcados.
Os investidores estão em polvorosa com toda essa movimentação. O mar, infelizmente, não está para sardinha, está revolto até mesmo para os mais experientes. Muitas estratégias estão sendo organizadas para aproveitar a volatilidade que provavelmente se estabelecerá na ocasião do Merge. Estão pipocando na internet dicas mirabolantes para tirar proveito da situação, mas todo cuidado é pouco, porque a volatilidade pode ser ótima para lucrar, mas melhor ainda para arruinar o investidor.
Nada vai mudar para os investidores da Ethereum atual. O máximo que pode acontecer é o token Ether ser renomeado. Além disso, se você tem ETH em carteira, pode ser que receba a mesma quantia no token da EtherewPoW, o ETHW. Mas isso vai depender da aceitação ou não do hard fork por corretoras e protocolos. Depois, a decisão de manter o ETHW ou negociar por ETH ou outro token será sua.
Estar em um mercado novo tem essas compensações, é uma grande chance de explorar diferentes cenários e contextos que fazem parte do aperfeiçoamento de uma atividade. O Merge é uma atualização significativa não apenas para a segunda maior criptomoeda do planeta, mas também para o criptoespaço como um todo. A Ethereum está construindo uma narrativa robusta e que tem como roteiro escalar indefinidamente a sua utilidade, aspecto determinante para a longevidade de um projeto. Os riscos acabam apequenados diante da magnitude do propósito.
*Felippe Percigo é um investidor especializado na área de criptoativos, professor de MBA em Finanças Digitais e educa diariamente, por meio da sua plataforma e redes sociais, mais de 100.000 pessoas a investirem no universo cripto com segurança.
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