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Três tendências do maior evento de fintechs do mundo

Inteligência artificial, moedas digitais e transações crossborder devem pautar o mercado no curto e médio prazo, escrevem Manuel Netto e Bruno Batavia

Centro de Cingapura: Evento reuniu mais de 65 mil pessoas em novembro (Aotaro/Flickr)

Centro de Cingapura: Evento reuniu mais de 65 mil pessoas em novembro (Aotaro/Flickr)

Publicado em 9 de dezembro de 2023 às 11h33.

Última atualização em 11 de dezembro de 2023 às 11h38.

Apesar de estar fora do radar da Faria Lima, o Singapore Fintech Festival tem se consolidado como uma das maiores convenções de tecnologia, inovação e finanças do mundo. No mês passado, ao longo de três dias, mais de 65 mil pessoas que atuam no setor  participaram dos encontros, principais e paralelos, realizados em torno do festival.

Em comparação, o Money 20/20, um dos mais relevantes eventos do segmento no Ocidente, reuniu cerca de 8 mil pessoas em sua edição europeia e 11 mil na americana – realizadas em junho e outubro deste ano, respectivamente.

No coração do centro financeiro da Ásia, o Singapore Fintech Festival traz a fronteira de inovação em um dos maiores mercados globais de fintech. Sob o tema “AI for good. AI for good?”, o evento reuniu líderes e especialistas globais em finanças, tecnologia e políticas públicas voltada à indústria financeira.

Pudemos ver ali representantes dos principais fundos de private equity e venture capital do mundo, de grandes bancos e empresas de tecnologia e também delegações governamentais de diversas partes do globo. Ajay Banga, presidente do Banco Mundial; Kristalina Georgieva, diretora do FMI; Kfir Godrich, CIO da BlackRock e Eric Jing, CEO da Ant Financial foram alguns dos presentes. Destacamos aqui alguns dos assuntos que devem pautar o mercado no médio prazo – e, sob algumas perspectivas, já nos próximos meses.

1. A inteligência artificial vai revolucionar o setor financeiro

A maior parte das aplicações da inteligência artificial por parte dos bancos, instituições de pagamento e fintechs tem se concentrado, predominantemente, em áreas como atendimento ao cliente, know your customer e sistemas antifraude.

Romain de Laubier, líder Ásia-Pacífico da BCG X, unidade de negócio do Boston Consulting Group voltada para tecnologia, destacou a interação entre IA generativa e IA preditiva no setor, que deve aproveitar o vasto volume de dados dos bancos, de forma complementar e não isolada: "São como os dois lados do cérebro trabalhando juntos", comentou, no painel em que tratou dos benefícios proporcionados pela tecnologia.

Por outro lado, Matthew Driver, VP da divisão APAC da Mastercard, pontuou que a maioria das instituições financeiras ainda estão testando IA em fase de conceito, enfrentando desafios na estruturação e no uso eficaz de grandes volumes de dados distribuídos em bases distintas e sistemas legados, principalmente quando falamos de instituições mais tradicionais.

Ele ressaltou a importância de se definirem áreas prioritárias e casos de uso claros, além da necessidade de envolvimento da alta liderança como sponsor dos projetos. Afinal, como ressalta, “IA pode ser usada virtualmente em qualquer área, com inúmeras formas de aplicação”.

O executivo mencionou que o programa de fidelidade da Mastercard na Ásia já é baseado em IA, sendo um sucesso de implementação, e que o buy-in da alta liderança foi essencial para o projeto acontecer em larga escala, para além de provas de conceito.

2. Transações cross border e multimoedas devem ganhar força

Muitos painéis focaram na indústria de pagamentos, com destaque para transações cross border e multimoedas – reflexo da dinâmica de economias asiáticas, mais abertas e integradas, diferentemente do que observamos na América Latina. São várias as soluções de infraestrutura ofertadas sob esse guarda-chuva, tanto para embeded finance, quanto para BaaS white label.

Aqui vale um passo atrás. AliPay e WeChat, fintechs criadas pelas chinesas Alibaba e Tencent, respectivamente, foram propulsoras da digitalização do sistema financeiro na Ásia. Ganhando relevância como carteiras digitais e plataformas de pagamentos, as fintechs acompanharam o movimento da diáspora chinesa na região. A necessidade de manter vínculos financeiros impulsionou um mercado que surgiu para transacionar moedas diversas.

No Brasil, vemos esse movimento acontecendo, embora ainda em estágio mais inicial, sobretudo após o lançamento e alta adesão e aplicabilidade do Pix.  O sistema de pagamentos instantâneos já cruza fronteiras e, não raro, vemos uma série de estabelecimentos no exterior oferecendo essa possibilidade a brasileiros.

Com o FedNow, equivalente americano ao Pix, devemos acompanhar um movimento semelhante nos Estados Unidos e América do Norte.  A dúvida que fica é se veremos a alta adesão de carteiras multi-currency para além de turismo e investimento de algumas plataformas, sobretudo com moedas diversificadas para além do dólar americano, como acontece na Ásia.

3. As moedas digitais vêm aí – e  podemos esperar muitas discussões regulatórias

Outro tema que nos chamou a atenção diz respeito à regulação, principalmente ligada a moedas digitais. Apesar do declínio no entusiasmo pelas criptomoedas, os olhares se voltam para as versões digitais das moedas oficiais (CBDC), impulsionadas pela tecnologia e infraestrutura dos bancos centrais.

Eswar Prasad, economista e autor de The Future of Money: How the Digital Revolution Is Transforming Currencies and Finance,  tratou do futuro das moedas digitais, enfatizando a diferenciação entre as funções de reserva de valor, unidade de valor e meio de troca.

Segundo ele, as moedas digitais não substituirão as moedas fiduciárias, e sim coexistirão com elas – o que por si só levanta questões importantes sobre o impacto na política monetária e os mecanismos de transmissão em um sistema monetário dual.

Prasad também abordou questões de governança relacionadas às moedas digitais. Segundo o autor, há o receio de que o Estado passe a usar tais tecnologias para monitorar movimentações financeiras. Diante disso, reforça que não cabe aos bancos centrais o papel de criar mecanismos de vigilância, e que a tecnologia não deveria ter esse uso. Ele reforça que os esforços dos BCs devem se concentrar na garantia da estabilidade de valor da moeda e a eficiência do sistema monetário.

O economista chamou a atenção para um fato curioso: embora a criação das moedas digitais e estruturas descentralizadas tenham prometido reduzir a dependência de grandes instituições financeiras, são elas que lideram o uso institucional, consistente e em maior escala dessas tecnologias. Além disso, se engajaram ativamente nas discussões com reguladores ao redor do mundo, assumindo assim um papel central na inovação e na formulação de políticas relacionadas a moedas digitais.

Yang Peng, presidente do Ant Group, braço financeiro do Alibaba, reforçou o ponto de como os formuladores de políticas públicas e bancos centrais vão desempenhar um papel mais ativo na transformação da infraestrutura financeira global, chegando a atuar como guidance de inovação para o setor privado. Ele citou exemplos de projetos de open banking, hoje em implementação em mais de 60 países, bem como os sistemas de pagamento instantâneo.

O festival exibiu ainda o compromisso da Autoridade Monetária de Singapura (MAS) com o movimento de tokenização a partir de dois projetos: Project Guardian e Project Orchid.

O primeiro deles, uma empreitada ambiciosa, que busca promover a tokenização de ativos e finanças descentralizadas institucionais. O projeto parte da reimaginação de ativos financeiros em formato digital, em que títulos e moedas tradicionais são transformados em tokens digitais, aumentando sua acessibilidade e eficiência.

Central para o Project Guardian é a iniciativa Global Layer One (GL1), um passo visionário para criar uma infraestrutura digital aberta. Esta infraestrutura é projetada para hospedar esses ativos tokenizados, permitindo que sejam negociados sem problemas entre fronteiras em pools de liquidez globais. O GL1 representa um meio-termo, combinando a segurança controlada dos blockchains de instituições financeiras privadas com a abertura de blockchains públicos como o Ethereum.

O festival destacou uma mudança significativa nos ecossistemas de tokenização, que deixou de focar apenas em empresas levantando capital por meio de títulos tokenizados (lado da venda), para uma tokenização do lado da compra, onde gestores de ativos usam essas ferramentas digitais.

Um exemplo dessa mudança é o projeto 'Crescendo' da JPMorgan e Apollo – uma abordagem sofisticada para gerenciar portfólios de títulos tokenizados, particularmente em ativos alternativos como private equity ou títulos de dívida. Essa mudança indica uma maturação na tokenização, ampliando seu apelo e aplicação, especialmente em aprimorar a gestão de portfólios e oferecer acesso mais amplo a investimentos alternativos.

O Project Orchid complementa esse movimento, mergulhando no domínio do dinheiro programável, explorando como o próprio dinheiro pode ser programado para propósitos específicos, seja uma moeda digital emitida por um banco central, um stablecoin ou um token de depósito.

É um projeto que está testando várias aplicações, como o uso de escrow pela Amazon para comércio eletrônico e testes para a fungibilidade do Dólar Digital de Singapura. Sua ambição é criar um ecossistema seguro para o dinheiro digital no país, estabelecendo um precedente global.

Com essas iniciativas, o evento não só destacou a evolução dinâmica do setor financeiro, como posicionou Singapura na vanguarda da transformação digital em finanças.

É um sinal de que o futuro das finanças é digital, aberto e acessível – com a tokenização e o dinheiro programável pavimentando o caminho para soluções financeiras inovadoras que podem remodelar a forma como interagimos com dinheiro e investimentos nos próximos anos.

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