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Responsabilidade de administradores: é hora de repensar o papel da CVM

Busca por provas impossíveis pode abrir caminho para o equivalente ao estupro culposo nas práticas societárias

Mauro Cunha: "É pouco provável que se reúnam condições mais óbvias de falhas de governança e de diligência do que no caso da Petrobras" (Germano Lüders/Exame)

Mauro Cunha: "É pouco provável que se reúnam condições mais óbvias de falhas de governança e de diligência do que no caso da Petrobras" (Germano Lüders/Exame)

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Graziella Valenti

Publicado em 9 de novembro de 2020 às 16h31.

Última atualização em 9 de novembro de 2020 às 16h50.

O Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) acaba de tomar decisões que redefinem de maneira significativa alguns dos standards mais relevantes para o desenvolvimento do mercado de capitais, desde a prevalência da essência sobre a forma na contabilidade até os deveres de lealdade e diligência dos administradores. Se as novidades são auspiciosas ou negativas, depende de quem faz a pergunta.

As decisões foram tomadas no âmbito dos processos administrativos oriundos dos problemas acontecidos na Petrobras que vieram à tona com a Operação Lava-Jato. Com pequenas exceções, os cinco processos culminaram em absolvições generalizadas, somando-se a outras ocorridas no passado, por exemplo, na discussão dos preços dos combustíveis. Encerra-se assim a atuação da CVM naquele que sem dúvida foi o maior escândalo corporativo da história mundial. Pelo menos R$ 100 bilhões em capital de propriedade da União Federal, de pessoas físicas, aposentados e investidores locais e estrangeiros foram dizimados. Uma rede de corrupção que rendeu séries de TV vistas no mundo inteiro aparentemente se desenvolveu sob a supervisão de administradores diligentes e probos.

É pouco provável que se reúnam condições mais óbvias de falhas de governança e de diligência do que no caso da Petrobras. Durante anos, a companhia tomou decisões motivadas por intuitos corruptos ou políticos (como levar ‘desenvolvimento’ ao estado x, ou apertar os laços de amizade com o país y), sem que houvesse objeção daqueles que deveriam zelar pelos “fins e interesses da companhia”[1]. Em que pese a dificuldade de se detectar fraudes bem engendradas, a chave para a debacle de Petrobras estava numa cultura de leniência das instâncias que deveriam servir de freios e contrapesos. Trata-se de história muito bem documentada: praticamente todas as decisões eram tomadas de forma unânime. Havia uma total subserviência dos administradores aos desígnios do acionista controlador, verbalizado pelo presidente do conselho. Matérias eram aprovadas sem debates. Balanços, quando apreciados, sequer eram lidos (até porque eram jogados na mesa dos conselheiros durante a reunião para aprovação imediata).

Mas talvez nenhuma decisão seja tão ilustrativa da falta de diligência e da cultura leniente da administração da Petrobras quanto a aprovação do seu Plano de Negócios e Gestão. Trata-se do plano global de investimentos que, em seus tempos áureos englobava cerca de US$ 50 bilhões por ano. Por ano! O processo de aprovação era simples: um powerpoint, apresentado durante duas ou três horas, seguido de aprovação unânime (pelo menos até 2013). Além da falta de diligência no processo, a governança da Petrobras havia sido redesenhada pelos mesmos administradores ora absolvidos, no sentido de que todos os investimentos incluídos no PNG estavam automaticamente aprovados, e não precisavam voltar ao conselho. Além disso, a diretoria tinha liberdade para “rebalancear” o programa, por exemplo tirando dinheiro de um oleoduto para uma refinaria que estourou o orçamento. Em outras palavras, tratava-se de um verdadeiro cheque em branco dado à diretoria.

Diretoria essa que, no início desse processo, já havia desmontado os freios e contrapesos do desenho original de governança da Petrobras do final da década de 90. O conceito de diretoria colegiada, que deveria provocar accountability de todos os diretores, na verdade tornou-se mais um colegiado de aprovações unânimes. Nas palavras de um ex-diretor, “essa companhia investe US$ 300 milhões por dia... se formos olhar cada investimento detalhadamente na diretoria, paramos a empresa”. Ou seja, era a constatação da total ausência de controles, viabilizado ainda pela inoperância dos Comitês de Negócios, que permitiriam a cada diretor atuar de forma embasada em relação a pautas de outras diretorias.

E além de tudo isso, houve o congelamento político dos preços dos combustíveis. Ao arrepio da Lei das Sociedades por Ações, da Lei do Petróleo, da Lei do Cade, do estatuto social, e das missões mais básicas dos administradores, a Petrobras subsidiou os preços dos combustíveis com base nos argumentos mais estapafúrdios, ainda que a área técnica da empresa mostrasse que, ao não reajustar os preços, a chance de a Petrobras atingir os objetivos com os quais tinha se comprometido publicamente era zero. Não era baixo. Era zero. A maioria do conselho de administração proibiu a diretoria de implementar os aumentos necessários.

Mas aparentemente a CVM optou por desconsiderar todo esse caldo de falta de diligência, buscando encontrar a prova inequívoca do delito para poder imputar algo a alguém. A mensagem que fica para o mercado e para os administradores é de que o tone from the top é irrelevante. A cultura é irrelevante. Só se condena com prova. A prova da inação. A prova impossível. Assim, o regulador do nosso mercado de estabelece um standard de prova inalcançável, que resulta em impunidade.

Neste sentido, as decisões da CVM são de fato auspiciosas para todos aqueles que populam de forma menos responsável órgãos de administração de empresas abertas brasileiras, e temiam a ação decisiva do ‘xerife’ do mercado. A mensagem é: podem seguir com suas reuniões pro forma. Se todas as caixinhas forem checadas com a formalidade mais superficial que o departamento jurídico possa imaginar, não há risco para os administradores — ainda que durmam durante as reuniões, não leiam o material enviado e não façam qualquer pergunta sobre as propostas colocadas à mesa. Ah, talvez para se precaver possam registrar em ata algumas teses improváveis e que beiram o ridículo, mas que podem ser utilizadas como ‘comprovação de diligência’.

Comemoram ainda outros provedores de serviço, como os auditores, que aparentemente podem se fiar em premissas altamente irrealistas para justificar valuations e ausências de impairments.

Também são auspiciosas as novidades para os patronos desses administradores, que aliás estão mais uma vez de parabéns por terem livrado seus clientes de injustas punições. São milhões de reais investidos em honorários, pagos em sua maioria pela própria empresa vitimada (direta ou indiretamente, via seguro D&O). Solidifica-se a jurisprudência para novas e profícuas absolvições no futuro.

E quem ousa discordar dessa interpretação?

Parafraseando Gustavo Franco, quem discorda é o ausente — aquele que paga a conta. O investidor... o aposentado... o que acredita no Brasil. Aquele mesmo, que está na Lei 6.385/76 como destinatário principal da atuação da CVM: “o CMN e a CVM exercerão as atribuições previstas em lei para o fim de...proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores de mercado contra... atos ilegais de administradores e acionistas controladores”. O investidor em ativos brasileiros parece condenado a entregar seu capital para estruturas de governança estruturalmente condenadas ao fracasso, já que o standard que se demanda para responsabilizar administradores se provou praticamente inalcançável. (um dia ele cansa, ou acaba o dinheiro)

Como bem observado pelo diretor Henrique Machado na sessão de julgamento “a declaração do resultado deste julgamento impõe uma reflexão sobre as razões de fato e de direito que culminaram na condenação exclusiva dos membros da diretoria da Petrobras que colaboraram com as investigações em sede criminal (...) tratar-se-ia de um sinal de inadequação de estruturas jurídicas e administrativas.” Além de sinalizar a inimputabilidade dos membros do conselho de administração, a decisão pune somente aqueles que já estavam mais do que enrolados na justiça criminal. Não parece, portanto, que as decisões do Colegiado da CVM tenham identificado delitos societários que já não tivessem sido apontados pela Polícia Federal. Ademais, é pouco provável que condenados à prisão se importem muito com as inabilitações determinadas pela CVM. Diante de tudo isso, é legítimo perguntar qual a utilidade dessa jurisdição.

Mas chega de Petrobras. Esse caso está encerrado.

Cabe agora refletir sobre as lições aprendidas nesse processo. E dentre essas lições, sem dúvida está a necessidade de refletir sobre o papel, a estrutura e a missão da CVM enquanto regulador do mercado de capitais.

Há muita fantasia nas expectativas sobre a CVM. Muitos a descrevem como o ‘xerife’ do mercado de capitais. Imaginam o PTE [presidente da CVM] adentrando a mesa de operações de alguma instituição e saindo com dois especuladores algemados, escoltados por policiais bem armados. Não é essa CVM que temos. Não é assim que a lei está escrita.

Mas ainda que seja superada essa fantasia, resta ainda muita frustração no mercado com a atuação do órgão — e Petrobras é somente o exemplo mais recente. A CVM tem apresentado um histórico crescente de divergências entre suas áreas técnicas e seu Colegiado. Isso causa perplexidade nos participantes do mercado, pois a CVM parece discordar de si mesma. Ela possui, por exemplo, uma área de normas contábeis (SNC) que deveria ser considerada o ponto final nas interpretações dessa importante ciência. Isso é particularmente verdade desde que migramos para o IFRS, no qual a essência deveria prevalecer sobre a forma. Infelizmente, não é o que se tem visto. Muitas vezes a visão da SNC, com sua estrutura técnica estável e perene, embora subdimensionada, é desdita pelo Colegiado que muda a cada cinco anos — e muitas vezes sequer possui um especialista contábil, sendo normalmente dominado por advogados. O mesmo pode ser dito da SEP (Superintendência de Empresas), que acompanha empresas e os atos dos administradores. Além de confundir o mercado, tais situações corroem de forma significativa a motivação dos já sofridos funcionários de carreira da autarquia, prejudicando ainda mais a atuação do órgão.

A CVM precisa de uma profunda reforma estrutural. Além da resolução da dramática situação financeira que lhe é imposta, é preciso que se mude sua forma de atuação, sua estrutura e seu processo administrativo, privilegiando a construção de linhas técnicas sólidas e preocupadas com a higidez do sistema de responsabilidade e da essência da contabilidade. Desde 2014, o orçamento discricionário da CVM caiu pela metade para cerca de R$ 30 milhões por ano, enquanto o valor dos mercados sob sua supervisão triplicou para próximo de R$ 30 trilhões. Não há concurso público desde 2010.  Cerca de 25% dos cargos da CVM permanecem vagos por falta de recursos.

É preciso privilegiar a construção de uma cultura forte do corpo funcional. Muito se critica a área técnica, ou mesmo peças de acusação supostamente mal feitas, como ‘justificativas’ para absolvições que surpreendem o mercado. Pois, se necessário, conserte-se. É muito confortável criticar as peças acusatórias, enquanto se negam à CVM condições materiais e estruturais para aprimorar seus processos. Não é só dinheiro... é preciso redesenhar a forma de atuação do regulador.

Já o colegiado precisa de diversidade de formação, reduzindo a massiva preponderância atual de advogados. Deve-se ainda repensar seu papel na formação de jurisprudência. Sua supervisão sobre o órgão precisa ser eficaz, desde a escolha dos membros do Colegiado (que não seja, mas palavras de um Senador, uma análise de currículos pré-aprovados pela ABIN) até a efetiva autonomia financeira (prevista em lei, mas nunca observada) e a execução de seu planejamento estratégico.

E, fundamentalmente, é preciso que a CVM deixe de buscar provas impossíveis, sob o risco de fomentar a impunidade, sancionando os equivalentes societários ao estupro culposo.

Até que isso aconteça, caveat emptor [cuidado, comprador].

Mauro Cunha é conselheiro independente de companhias abertas e ex-conselheiro de administração da Petrobras, ex-presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) e do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). 

[1] Lei 6.404/76, artigo 154

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