Gás de cozinha: políticas públicas eficazes são a saída para conter avanço - e acidentes - com lenha no país (Pedro Ventura/Agência Brasilia/Divulgação)
Repórter Exame IN
Publicado em 15 de fevereiro de 2023 às 14h11.
O consumo de gás de cozinha residencial no último ano atingiu a pior marca dos últimos dez anos. É o que mostra um relatório divulgado pelo Observatório Social do Petróleo (OSP) neste mês. A marca mais baixa da década vem acompanhada de um aumento de preços difícil de passar despercebido: nos cálculos da entidade, o preço real (descontada a inflação) do último ano é 49% superior à média de 2007 a 2017, período de estabilidade do consumo de GLP (a partir de 2018, começa uma queda significativa). O vale gás, regulamentado em 2021, cumpre seu papel ao subsidiar anteriormente 50% do valor do botijão e, hoje, 100% desse total para mais de 6 milhões de famílias no país. Mas, diante dos reflexos ainda pouco visíveis na troca da lenha pelo gás, permanece a questão: o que falta para que o acesso ao GLP se torne universal no país? E o que está sendo feito em relação a isso?
Para o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás) o vale-gás nos moldes em que está já percorreu 80% do caminho necessário em direção a trazer acesso a famílias carentes, mas ainda existem oportunidades de melhoria importantes a serem realizadas. “Na nossa visão, podem ser incluídas métricas de desempenho do programa, correlacionando um período estabelecido com a redução da lenha, e com redução de precariedade de consumo. Isso sem falar na destinação específica, que garantiria o acesso dessas pessoas ao GLP”, diz Sérgio Bandeira de Mello, presidente do Sindigás, ao EXAME IN. Hoje, a Lei nº 14.237/21, estabelecida para o auxílio-gás e com validade de cinco anos, estabelece apenas quem tem direito ao programa e de onde o dinheiro deve vir, sem mapeamentos de efeitos futuros. O benefício é depositado bimestralmente, em conta digital ou bancária.
Em todas as sugestões do sindicato, permanece a mais delicada a destinação específica dos recursos para compra dos botijões. Sob o ponto de vista lógico, se o auxílio é criado para comprar gás, não há problemas em garantir que vá para lá. Mas, num contexto econômico dos efeitos ainda persistentes da inflação e do início da retomada de empregos, tirar dinheiro da mesa das famílias merece uma reflexão adicional. Não há resposta fácil para o problema. Mas, há exemplos positivos de como o benefício deu certo em outros países.
A Colômbia e a Índia, que têm incentivos similares ao estabelecido no Brasil há quase dois anos, são exemplos vistos de forma positiva pelo Sindigás. “São locais em que os recursos são exclusivos para a compra de energéticos que substituem lenha. O sistema se baseia em um pagamento por celular, com um crédito aceito somente nas revendedoras de gás”, diz o executivo.
Não se trata de uma questão só de praticidade. Ou do fato de o GLP ser dez vezes mais eficiente do que a lenha. A precariedade (ou a falta de conhecimento, ou ambos) neste caso, traz uma questão efetiva de saúde pública. Problemas respiratórios, cardiovasculares e até mesmo câncer podem ser associados ao uso doméstico inadequado de fontes como lenha e carvão, como mostrou um estudo conduzido pela Universidade Federal do Espírito Santo em 2021. O material correlacionou, ainda, o uso desses combustíveis em fogões de baixa eficiência, em locais fechados e mal ventilados com a covid-19, mostrando que, ainda, esse pode ser um agravante para quem já está com a doença.
De olho no elo mais fraco dessa equação, frequentemente encontrado em comunidades carentes no Brasil, o mau uso da lenha ainda se soma ao uso do álcool, potencializando o risco de acidentes. No caminho para encontrar saídas para este problema, certo é que a viabilidade econômica para o acesso a fontes mais seguras ocupa o caminho principal.
Apesar do potencial de ajustes do auxílio gás, de olho em um programa mais ‘redondo’, é notável o avanço que o programa estabelecido por aqui trouxe para as famílias de baixa renda. Um estudo realizado pelo Instituto Pólis em 2022 mostrou que o auxílio no valor de R$ 50 (vigente na época) conseguia reduzir de forma significativa o peso do GLP no orçamento das famílias: para as que tinham um orçamento de até meio salário mínimo, o percentual gasto com o gás saía de 24% do orçamento para 7%.
O subsídio é um passo em direção ao que o Instituto acredita ser ideal: estabelecer uma política pública permanente, “independente de planos de governo e que garanta a todas as famílias inscritas no Cadastro Único o acesso automático ao programa. Também, visto que o preço do botijão de gás compromete uma parcela maior do orçamento das famílias com renda média de até um salário mínimo, é preciso a formulação de um programa de transferência de renda que contemple diferentes categorias de repasse de valor, de forma a garantir o custo zero com o GLP a esta parcela da população”, afirma o estudo.
Enquanto essa questão não é resolvida, famílias ainda recorrem à lenha sempre que necessário. O Balanço Energético Nacional, estudo feito anualmente pela Empresa de Pesquisa de Energia (EPE) em 2022, com ano-base de 2021, mostrou que o gás de cozinha fica atrás da lenha no consumo residencial. Na data, 26% dos lares ainda usavam essa forma de consumo — um percentual que reverteu a queda observada nos anos anteriores para voltar a crescer — enquanto 22,9% usavam o GLP. O gás natural tem uma distância enorme para os outros dois, com 1,6%.
“Desde 2006, temos o mesmo discurso. O problema não é o preço de face. É o acesso a essa fonte de energia. Se tivéssemos uma varinha de condão e conseguíssemos colocar o botijão a R$ 90, é um desconto e tanto. Isso insere famílias, claro, mas o padrão de consumo ainda seria muito parecido com o que vemos hoje”, diz Bandeira de Mello.
Mesmo com o problema sendo menos direcionado aos valores em si para proporcionar acesso, fato é que ter acesso ao GLP ficou mais difícil da pandemia para cá. O preço final ao consumidor subiu 46,8% de janeiro de 2020 a janeiro de 2022, totalizando R$ 102,41. Desse total, o maior impacto vem da Petrobras, com uma variação de 82% na margem bruta da companhia.
O consumidor passou a sentir mais o sobe e desce dos preços do botijão desde 2019, ano em que a política de reajustes foi revista: em vez de reajustes a cada três meses, passou a ser feito a qualquer momento, para mais ou para menos, em um esforço para refletir de forma mais rápida a cotação internacional. Em um período de guerra na Ucrânia, alta nos preços do petróleo e de dólar valorizado, os aumentos ficaram mais visíveis para o bolso do consumidor.
Em meio às trocas de comando na petroleira, ainda não dá para saber se algo será feito para contornar essa medida (como, por exemplo, os rumores de criação de um fundo para conter o sobe e desce do preço da gasolina e do diesel). Nesse cenário, a visão do Sindigás é de quem — assim como boa parte dos investidores — está esperando para ver o que sai do papel.
Mais uma vez, trata-se de uma discussão que não está restrita às fronteiras nacionais. Na Colômbia, em outubro do ano passado, uma similar aconteceu: a Associação Colombiana de Gás Liquefeito de Petróleo (Gasnova) pediu por um fundo de estabilização do GLP para regular o impacto sobre os usuários finais.
Em meio às discussões sobre como trazer um combustível mais seguro, acessível e sustentável aos consumidores, empresas que hoje atuam com GLP estão trabalhando para serem reconhecidas, no futuro, como empresas de energia — e não somente de gás de cozinha.
Do lado da Ultragaz, maior distribuidora do Brasil de GLP, o acesso imediato para comunidades carentes veio principalmente com o apoio de tecnologia. A empresa firmou parcerias com quatro ONGs no país para fazer a ponte entre os recursos e a entrega de gás, agendada via app. O pulo do gato, nessa história, foi tornar as entregas rastreáveis, um benefício e tanto, especialmente em tempos de pandemia.
Além disso, a companhia investe continuamente em infraestrutura, de olho em levar o acesso ao produto a todas as regiões do país. Nesse sentido, inaugurou duas novas bases, uma no Pará e outra no Ceará. “Lá é onde você tem o maior crescimento do GLP, é onde a renda vem evoluindo. A gente investe trazendo o produto, gerando emprego e também construindo revendas na região”, diz Aurelio Ferreira, diretor de Desenvolvimento da Ultragaz.
Focando no problema imediato, de acesso ao gás para comunidades carentes, a Copa Energia ressalta o trabalho com ONGs como a Gerando Falcões, para promover capacitação de olho em ensinar quem tem interesse a gerir uma revenda de gás. A empresa arca com o fomento inicial para que os interessados comecem e fornece todos os treinamentos necessários em relação ao tema. Também está de olho em trazer novos produtos, por exemplo, botijões menores, que custem mais barato.
Para Pedro Turqueto, vice-presidente de Estratégia e Mercado da Copa Energia, o problema em escala nacional só será resolvido com políticas públicas capazes de endereçá-lo. “Quando uma pessoa opta pela lenha, dificilmente vai saber que está expondo os familiares a um risco de saúde pública. Entendo que deveria existir um trabalho nesse sentido, de explicar isso para a população, direcioná-la para entender vantagens e desvantagens por meio da educação”, diz Pedro Turqueto, vice-presidente de Estratégia e Mercado da Copa Energia.
De olho em um mundo mais sustentável, ambas as empresas destacam a pesquisa por outras fontes de energia, capazes de reduzirem emissões. Na Copa, um dos frutos desses estudos é o BioGLP, a ser desenvolvido nos próximos quatro anos e que emite até 80% menos carbono do que o combustível de origem fóssil.
A Ultragaz comprou, no ano passado, uma startup que opera a venda de energia elétrica renovável para os clientes e também adquiriu a Neogás, de gás natural comprimido. “Dessa forma, conseguiremos trabalhar com regiões onde não existem gasodutos. Aumentamos o portfólio da companhia de olho na transição energética”, diz Ferreira.
Enquanto as inovações não saem do forno, ambas as empresas veem com bons olhos as iniciativas que visam trazer mais acesso para o GLP no país. Afinal, são cinco milhões de famílias beneficiadas, um público longe de ser desprezível para o consumo. Ainda assim, é uma discussão que está longe de acabar. No país em que a população mais vulnerável recorre à lenha para cozinhar, ainda há muito a fazer.