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O que a Nobel de Economia nos ensina sobre desigualdade de gênero

Professora da FEA-USP, Solange Gonçalves explica o trabalho de Claudia Goldin – e sua implicação para políticas públicas e crescimento econômico

Goldin: Disparidade salarial das mulheres aumenta após nascimento do primeiro filho (Social Science Bites/Reprodução)

Goldin: Disparidade salarial das mulheres aumenta após nascimento do primeiro filho (Social Science Bites/Reprodução)

Solange Gonçalves
Solange Gonçalves

Professora do Departamento de Economia da USP

Publicado em 12 de outubro de 2023 às 06h54.

Laureada esta semana com o Nobel de Economia, Claudia Goldin abriu fronteiras na área e desenvolveu um extenso e detalhado trabalho que, em certa medida, ajuda a explicar porque ela é apenas a terceira mulher a receber o prêmio desde sua concepção, em 1969. 

A economista, historiadora e PHD pela Universidade de Chicago fez importantes avanços no conhecimento sobre os fatores que determinam a participação das mulheres no mercado de trabalho, com uma gigantesca contribuição para o debate acerca dos determinantes da desigualdade salarial entre gêneros.

Em um dos seus principais estudos para os Estados Unidos, foram utilizados dados coletados para um período de mais de 200 anos – transpondo uma das principais limitações das pesquisas quantitativas nas ciências sociais aplicadas, que é justamente a qualidade e completude dos dados. 

Os resultados foram surpreendentes. Goldin mostrou que a participação feminina no mercado de trabalho não apresentava uma tendência crescente ao longo do período analisado, mas se assemelhava mais a uma curva em formato de U. 

Por trás do trecho decrescente do gráfico estava a transição de uma sociedade agrária para uma sociedade industrial, no início do século XIX. Ou seja, o ambiente laboral passava a ser mais hostil e precário – as fábricas. 

Essa transição evidenciou um fator que sempre colaborou e ainda colabora para a inatividade das mulheres: o conflito entre o trabalho e a família. Estar nas fábricas por algumas horas significava alocar menos horas para os cuidados com a família e com as crianças.

A participação das mulheres no mercado de trabalho decresceu até chegar em um nível mínimo e, no início do século XX, passou a apresentar comportamento crescente, impulsionado pelo crescimento e desenvolvimento do setor de serviços -- intensivo em mão-de-obra feminina até os dias de hoje, em muitos países. 

Outros fatores com colaboração muito relevante para o comportamento ascendente da curva ao longo do século XX foram o aumento contínuo do nível educacional das mulheres e o surgimento e adoção dos métodos contraceptivos. 

Esse padrão inesperado na curva de participação feminina no mercado de trabalho foi explicado por Goldin como o resultado de mudanças estruturais e nas normas sociais relacionadas às responsabilidades das mulheres em casa e nos cuidados com a família e as crianças. 

Esse estudo mais histórico também nos ajuda a compreender as diferenças existentes nos dias de hoje entre países com relação à disparidade salarial entre homens e mulheres. Os países apresentam estágios distintos de desenvolvimento institucional, tecnológico e de normas sociais, o que teria efeitos sobre a maior participação e valorização das mulheres no mercado de trabalho.

A pesquisadora apresenta uma riqueza de artigos acadêmicos publicados nas mais respeitadas revistas internacionais na área de Economia. Suas publicações são contínuas, com importantes resultados para a compreensão do mercado de trabalho nos dias atuais e, inclusive, para o contexto do mercado de trabalho durante e após a pandemia.

Do passado para o presente

As diferenças nos rendimentos e na progressão na carreira entre homens e mulheres diminuíram consideravelmente ao longo do tempo, mas ainda existem e são preocupantes. 

Segundo Goldin, grande parte da disparidade salarial entre gêneros pode ser explicada por diferenças no nível de educação e nas escolhas profissionais. Porém, as diferenças de rendimentos que persistem nos dias de hoje são encontradas na comparação entre salários de homens e mulheres que exercem a mesma profissão – e surgem, em grande parte, com o evento do nascimento do primeiro filho. 

Ou seja, a razão seria a necessidade de cuidados para as crianças, e, muitas vezes, também para membros da família.

Goldin mostra ainda que, por causa da necessidade dessa maior dedicação de horas às atividades não remuneradas de cuidados, as mulheres tendem a aceitar empregos mais flexíveis. Os empregos com maior flexibilidade de carga horária usualmente apresentam menores chances de negociação salarial, de recebimento de bônus e premiações e de promoção na carreira. 

Com frequência são empregos que muitas vezes apresentam menor exigência de habilidades valorizadas pelo mercado de trabalho e, portanto, com menor remuneração e retorno por hora de trabalho; além de serem ocupações em que a possibilidade de substituição do trabalhador é maior, ou seja, é possível ter turnos com diferentes trabalhadores. 

As mulheres ocupam mais esses postos de trabalho do que os homens, ainda que possuam nível educacional e qualificação para estarem em ocupações mais bem remuneradas e com melhores condições de trabalho.

Oferta e demanda(s)

Em seus estudos, Goldin pontua que os salários e o emprego das mulheres são o resultado da interação entre a oferta e a demanda pelas habilidades do trabalho feminino. A demanda por estas habilidades por parte empresas muda ao longo do tempo devido, por exemplo, a mudanças estruturais e tecnológicas. 

Uma dinâmica crucial que ficou evidente nos estudos da economista ocorre no lado da oferta de trabalho, ou seja, na tomada de decisão dos indivíduos de participarem do mercado de trabalho, que deve ser compreendida levando em conta os seus impactos ao longo de todo o ciclo de vida.

E é justamente na tomada da decisão sobre ofertar trabalho que as normas sociais, as barreiras institucionais e a necessidade de equilibrar o tempo dedicado ao trabalho e o tempo para os cuidados com a família, restringem as escolhas da oferta de trabalho dos indivíduos, mas de forma muito mais acentuada as mulheres. 

A oferta agregada de mão-de-obra feminina é composta por mulheres em vários pontos dos seus ciclos de vida. Usualmente, o nível educacional é determinado na juventude, mas as responsabilidades e tempo alocado para os cuidados com a família mudam ao longo do tempo – assim como a capacidade de adaptação das mulheres às variações na demanda por suas habilidades.

Primeira mulher a receber uma posição no departamento de economia da Universidade de Harvard, em 1990, Goldin também apresenta uma importante contribuição para a literatura que discute a baixa fração de mulheres que entram, permanecem e concluem a graduação, bem como as desigualdades na carreira acadêmica na área. 

Por meio de avaliações de impacto de programas com desenho experimental e desenvolvidos em universidades que oferecem a graduação em Economia, mostra que a exposição de estudantes a "role models" do sexo feminino (professoras e pesquisadoras que obtiveram sucesso na carreira), ao longo do curso, além de outros fatores, parece aumentar a fração de mulheres em Economia, em comparação com homens.

O prêmio concedido ontem à economista é um marco não somente para a área de Economia, mas para a sociedade como um todo, já que os resultados dos estudos desenvolvidos por Goldin são relevantes para o desenho de políticas públicas.

Fomentar as discussões técnicas e científicas sobre as disparidades na carreira e nos rendimentos de homens e mulheres no mercado de trabalho e as desigualdades no tempo alocado para os cuidados com a família ultrapassa a luta pela maior igualdade de gênero. 

A busca pela diminuição da desigualdade de gênero é também a busca por maior nível de bem-estar para todos os membros da família e todos os indivíduos da sociedade. É a busca pela maior eficiência e pelo crescimento econômico. 

A alocação de trabalhadores de maneira ineficiente, para empregos não adequados às suas habilidades, pode gerar grandes custos econômicos para a sociedade. Reduzir as disparidades de gênero e melhorar a alocação das mulheres no mercado de trabalho pode levar a significativos aumentos no crescimento econômico. 

* Solange Gonçalves é professora do Departamento de Economia da USP e uma das coordenadoras do Brazilian Women in Economics (EconomistAs) e do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero (GeFam).

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