USINA DA ENEVA: Cade aprovou sem restrições o ato de concentração entre a Eneva S.A. e Focus Energia Holding Participações S.A. (Divulgação/Divulgação)
Graziella Valenti
Publicado em 14 de abril de 2020 às 14h17.
Última atualização em 14 de abril de 2020 às 15h32.
A geradora de energia Eneva endureceu, pela primeira vez, a respeito da proposta lançada à AES Tietê para combinação das empresas, em comunicado na noite desta segunda-feira. A mudança de tom é sutil, mas dá as pistas necessárias para compreensão dos bastidores da transação, que pode criar a segunda maior geradora privada de energia do país, com capacidade de produzir 6.100 megawatts e 5 bilhões de reais de receita anual.
É possível agora antever que, se os acionistas da Tietê quiserem, têm a faca e o queijo na mão para pressionar a controladora americana AES Corp. e, até mesmo, aprovarem o negócio sem ela – ainda que esse desfecho esteja distante de ser o ideal.
Com o comunicado de ontem, a Eneva quis colocar pressão sobre o conselho de administração da Tietê. Passados 44 dias da oferta, o colegiado não se manifestou sobre o assunto. A Eneva expôs ontem a lista de documentos que já entregou ao órgão e questionou se faz sentido esticar o prazo de validade de sua oferta (inicialmente prevista para expirar no dia 30 deste mês), voluntariando assim um aumento da data limite. Quis, com isso, deixar claro que não será por falta de prazo que o negócio não sairá.
Apesar do esforço da Eneva em tirar do conselho de administração da Tietê uma posição sobre a proposta, poucos se deram conta até o momento que ao órgão cabe apenas uma opinião – assim como à administração executiva da empresa. E é aqui que mora a explicação para a Eneva ter feito uma oferta pública não solicitada de incorporação por uma companhia com controlador majoritário. Dito dessa forma, a coisa, além de difícil, parece até não fazer sentido.
Diferentemente de uma oferta em dinheiro, em que a AES poderia aceitar ou recusar com propriedade de acionista controladora por meio da administração, a incorporação de uma empresa é matéria que compete apenas à assembleia de acionistas, como determina a Lei das Sociedades por Ações.
A AES Tietê é uma empresa listada no Nível 2 de governança da B3. Tal adesão conferiu aos acionistas preferencialistas da empresa o poder de voto em alguns temas – e um deles é a incorporação de ações. Aqui é que está o pulo do gato.
Em uma assembleia que depende de aprovação de acionistas ordinaristas e preferencialistas, a AES Tietê não teria poder de decisão, pois detém 24,3% do capital total – e aqui só ele importa. Diferentemente de uma oferta em dinheiro, de sim ou não pelo controlador, a incorporação transforma a oferta da Eneva em uma decisão de todos os acionistas de forma muito mais efetiva.
Nesse cenário, o BNDES é o acionista com maior poder de decisão, com uma participação de 28,3%. O poder majoritário da AES na Tietê se dá tão somente pelo conselho de administração, que não é o órgão competente para decidir sobre uma incorporação.
Se não gostar da decisão do conselho da Tietê, o BNDES pode, se quiser, chamar sozinho a convocação de uma assembleia de acionistas para avaliação da oferta da Eneva. A Lei das S.As. prevê essa possibilidade para acionista ou grupo com participação de, pelo menos, 5% do capital da empresa. Além do BNDES, outro sócio relevante é a Eletrobras, com pouco menos de 8% do capital da geradora.
Não foi por outra razão, além da articulação da base de sócios, que a Eneva adquiriu uma fatia de 0,5% da AES Tietê em bolsa e pediu – mas teve a solicitação recusada pela empresa – acesso à lista de acionistas. Na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), além de uma queixa da própria Eneva a esse respeito, a gestora HIX Capital também já levou reclamações sobre o caso.
O pano de fundo de toda a discussão com a Eneva não passou em brancas nuvens para os acionistas da AES Tietê. E há potencial de o debate dentro da base de sócios da empresa subir de tom, a respeito dos incentivos da administração.
Tanto o conselho de administração da AES quanto a diretoria estatutária da companhia recebem remuneração diretamente da matriz americana, além dos pagamentos pela controlada brasileira. A diretoria executiva tem um plano de opções em ações da AES Corp, relatado como incentivo de longo prazo.
No caso do conselho de administração, a situação chama ainda mais atenção. A remuneração desse órgão a ser paga pela empresa brasileira informada no formulário de referência é de 2,98 milhões de reais prevista para 2019. Mas, em outro trecho do documento, a empresa informa que parte do colegiado recebeu, diretamente da controladora AES, 32,3 milhões de reais em 2018, 14,6 milhões de reais em 2017 e 13,4 milhões em 2016.
Não há irregularidade nos pagamentos, mas eles abrem espaço para uma discussão de alinhamento e incentivo entre a administração da empresa e os sócios minoritários brasileiros.
O conselho da Tietê tem onze participantes. De acordo com o formulário de referência da empresa, nove são ligados à controladora AES Corp. Só um deles é membro independente, Franklin Lee Feder, e Sérgio Weguelin, ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), é indicado pelo BNDES.
Enquanto a AES Tietê é uma empresa de dono, a Eneva não possui controlador definido. Os dois maiores acionistas da empresa são BTG Pactual e Cambuhy Investimentos, cada qual com quase 23% do capital. Caso a incorporação prossiga nos termos atuais, Cambuhy e BTG (do mesmo grupo que controla a Exame) terão 17,8%, cada um, da nova companhia. A AES Corp. ficará com 5,5%, o BNDES com 6,5% e a Eletrobras, 1,8%.
Para os minoritários da Tietê, o grande desafio que toda estrutura gera é como fazer com que a administração da empresa se engaje em conseguir da Eneva uma oferta melhor – se esse for o desejo. Apesar de a decisão sobre a proposta ser matéria exclusiva da assembleia, a negociação em nome da companhia – para ampliar a oferta recebida, por exemplo – é algo que só compete à administração.
A Eneva ontem também anunciou a captação de 410 milhões de reais, ao custo de CDI mais 2,5% ao ano, como sinal de que levantar recursos não será o problema para a transação. O dinheiro vem se somar ao 1,8 bilhão da posição de caixa do fim de dezembro.
O caso promete ser mais uma novela a se desenrolar no mercado brasileiro. O BNDES, se quiser, pode ser o protagonista dos próximos capítulos.