Gol: empesa anunciou nesta semana a redução de voos domésticos durante a crise do coronavírus (Paulo Whitaker/Reuters)
Felipe Giacomelli
Publicado em 25 de março de 2020 às 07h52.
Última atualização em 25 de março de 2020 às 18h32.
A companhia aérea Gol preparou o negócio para o que considera o cenário extremo: parada total por até três meses, se necessário. A regra, porém, é agir e ser flexível conforme a demanda. Atender o máximo possível, com o menor custo. Em dez dias, um time com 30 pessoas na diretoria planejou e executou medidas que vão de corte de custos, gestão de caixa com fornecedores até a organização do fluxo de manutenção das aeronaves para a retomada.
Com receita quase parada e uma dívida pesada, a empresa aguarda maior clareza de cenário para manejar os próximos passos. Quase todos os setores da economia vão sofrer a crise do novo coronavírus, que trancou o mundo por um período ainda desconhecido, mas as empresas aéreas estão entre as mais gravemente atingidas.
O relógio marcava quase 17 horas de segunda-feira, 23 de março, e o telão da sala de controle da Gol, na sede do aeroporto de Congonhas, mostrava 98 voos realizados pela empresa até aquele horário. Nas previsões do vice-presidente financeiro e de relações com investidores da empresa, Richard Lark, o dia deveria terminar com pouco menos de 150 decolagens. Na mosca: foram 134. No dia anterior, um domingo, o total chegou a 305. Na vida sem coronavírus, eram 750 voos diários só da empresa.
Ainda assim, a Gol era a companhia com maior movimentação, ante menos de 80 decolagens da Azul e menos de 50 da Latam. Apesar do cenário dramático, Lark parece tranquilo. “Companhias aéreas são diferentes de todas as demais. Estão sempre prontas para crise. Por isso, conseguimos ser rápidos. Nosso trabalho, nesse momento, quase acabou. Agora, é esperar para entender a duração desse quadro, para ver quais próximas medidas serão necessárias”, disse o executivo à EXAME.
Lark contou que o dia 9 ficou marcado como o ponto de inflexão dentro da companhia. Ali, ficou mais claro que a crise tinha chegado ao Brasil. Entre os dias 10 e 20, a Gol fez o planejamento e o implementou. “O Kaki [Paulo Kakinoff, presidente da empresa] já sabia que ia preparar a companhia para um shutdown completo, se fosse o caso”, disse. Hoje, contou ele, a companhia está pronta para uma parada operacional completa de até 90 dias. Mas Lark frisou que não é essa a expectativa. “Ficamos prontos para o pior. É nossa obrigação.”
No escritório em Congonhas onde normalmente trabalham cerca de 1.000 funcionários, estavam 50 – apenas aqueles que tinham de estar ali. O restante já trabalhava remotamente.
A segunda-feira, 23, marcou o dia com menor movimento desde o início da crise. Mas a redução será ainda maior. A partir deste sábado, serão apenas 50 decolagens, concentradas no aeroporto de Guarulhos. Mesmo assim, a empresa vai manter os voos para todas as capitais do país. A expectativa é que esse cenário dure até o começo de maio. Caso haja demanda e a circulação de pessoas aumente, a empresa pode retomar os voos regionais. “Estaremos atentos às necessidades da população e às orientações das autoridades”, disse Lark.
Antes da crise, havia 400 aeronaves comerciais rodando sobre o Brasil, apenas para os voos domésticos, e a expectativa é que esse total seja reduzido a 40, diante do atual fluxo de viagens. A Azul também cortou drasticamente a atividade.
O mapa com o tráfego aéreo mundial na sala da Gol mostrava o mapa do Brasil todo exposto, descoberto, com atividade mínima de aeronaves, parecendo as fotos da Avenida 23 de maio, na capital paulista, após a decretação da quarentena. Já nos Estados Unidos, não se via os limites do território americano, com o céu completamente tomado pela movimentação de aviões.
Na segunda semana de março, o faturamento da Gol já havia recuado à metade, comparado a igual período de 2019. Na semana passada e nessa, a receita deve ficar em 30% do que era e a expectativa é que, nas próximas, caia para 10%. O cenário preocupa analistas e investidores. Para especialistas, se a situação for duradoura e avançar para o terceiro trimestre, o setor estará ameaçado.
No primeiro corte, no começo do mês, a Gol reduziu em 90% a operação internacional e em 50%, a nacional. No fim desta semana, haverá redução de 92% da atividade doméstica, com a internacional totalmente paralisada. O quadro é o mesmo nas concorrentes.
As companhias aéreas estão em conversas com a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) para buscar a forma mais eficiente de operar. O diálogo é permanente no atual momento.
Em 2019, a Gol superou a previsão de receita líquida dada para o ano. Esperava R$ 13,5 bilhões e conseguiu registrar R$ 13,8 bilhões, um aumento de 21,5%. “Em fevereiro, a gente estava começando a cotar a contratação de cinco novos aluguéis de aeronaves para as férias de julho”, diz Lark. Mas, em três semanas, o mundo mudou.
Desde 31 de janeiro, as ações da Gol caíram quase 79%, levando o valor de mercado da companhia para menos de 2 bilhões de reais.
No dia 10, quando começaram os preparativos para a parada, um conselheiro já questionava a administração: “Será que não deveríamos cancelar a operação com a Smiles?”, referindo-se à incorporação da controlada de programas de milhagem listada na B3. Desde 2018, a Gol tentava realizar a operação, que havia gerado insatisfação entre os minoritários da Smiles.
No dia 5, as empresas não conseguiram instalar as assembleias que aprovariam a incorporação da Smiles pela Gol em primeira convocação, por falta de quórum – situação que não é rara na vida societária das empresas. O encontro ficou agendado para continuar, em segunda convocação (quando os temas podem ser aprovados com qualquer quórum), no dia 18.
Na sexta-feira, dia 13, antes mesmo que o governo decidisse fechar o espaço aéreo brasileiro para voos internacionais, a Gol já anunciava a desistência da transação, diante dos “impactos estruturantes” para o setor que a crise apontava. A medida, explicou Lark, permitiu ao grupo a economia de 1,5 bilhão de reais em caixa, que seriam pagos aos acionistas da empresa de milhagem como parte da operação. “Agora o caixa ficou na Smiles, não veio para a Gol. Mas está lá, preservado. Já pensou se agora tivesse esse passivo?”
Mesmo preocupado com a duração da situação, Lark tentou demonstrar que o trabalho a ser feito, neste momento, está pronto. “Agora, estamos só esperando o tsunami”, afirmou, sobre os reflexos do período de confinamento quase global.
As iniciativas de preservação de caixa estão em andamento. Dos custos totais, 60% são variáveis. Logo, sem operação, sem custo. Dos 40% restantes, a companhia conseguiu reduzir pela metade pelos próximos três meses, com anúncio de redução dos salários dos funcionários em 35% e da diretoria, em 40%. “Foi tudo muito rápido e pragmático. Levamos o pleito para o governo para poder diminuir pagamento e jornada, o que foi permitido para diversos setores.”
No front financeiro e de fornecedores, a Gol já escalonou com a Petrobras o desembolso para combustíveis. “Casamos recebimentos e pagamentos”, explicou Lark. Além disso, também iniciou as conversas para adiar os depósitos de leasings de aeronaves em três meses.
Por fim, nas próximas semanas, haveria parte das amortizações de 500 milhões de reais em debêntures, detidas por Banco do Brasil e Bradesco, mas a empresa já deu a largada em uma repactuação. São 150 milhões de reais previstos semestralmente, até março de 2022. “Compramos tranquilidade até junho”, disse o executivo.
O balanço de 2019 apontava uma posição de caixa de 2,8 bilhões de reais ao fim de dezembro, para 8,5 bilhões de reais em empréstimos e financeiros e 6 bilhões de reais em compromissos com arrendamentos de aeronaves, os leasings. O tamanho da dívida da Gol é o que mais preocupa investidores, especialmente porque a maior parte é em dólar.
Em agosto, a Gol tem um vencimento importante de 300 milhões de dólares. Trata-se de uma operação garantida pela Delta Airlines, acionista minoritária (que já anunciou intenção de sair do capital da área brasileira). De um lado, a Delta é quem garante com os bancos os recursos. Do outro, a Gol ofereceu ações da Smiles como contrapartida. Lark disse que a companhia já estava preparada para esse pagamento e, neste momento, afirmou que não faz sentido iniciar um diálogo sobre renegociação. “É preciso esperar para ver o cenário.”
Mas, para além dessa operação, os vencimentos estão bem mais à frente: 425 milhões de dólares em bônus conversíveis em 2024 e mais outros bônus de 650 milhões de dólares com vencimento em 2025.
Quando aponta que companhias aéreas estão sempre alertas para crises, Lark sabe do que fala. O que parecia uma enorme questão em 2019, com os problemas enfrentados pela fabricante de aviões e fornecedora Boeing, com o modelo Max, tornou-se quase uma vantagem para a companhia. A Gol havia montando uma ambiciosa expansão de frota toda apoiada na nova aeronave da empresa americana.
A aérea brasileira dispõe atualmente de 137 aeronaves. Mas, desse total, 31 são aluguéis temporários – sendo 11 de curto prazo – para cobrir os modelos Max adquiridos da Boeing e que não foram entregues devido ao atraso na produção, após acidentes com empresas da Malásia e da Etiópia que apontaram falhas de sistemas. “Deveríamos, a esta altura, ter 37 Max. Só que temos sete, parados desde o ano passado.”
Esses aluguéis prorrogados vencem entre dois e 24 meses. “Conforme a situação se colocar, basta deixarmos os contratos vencerem. Conseguimos reduzir 25% da frota sem esforço, para um total de 100 aviões. Quer dizer, a nova realidade já está contratada pela Gol.”
Com parada forçada, a companhia deu foco à manutenção. O pátio para revisão está cheio, dando descanso à frota que vinha de um uso intenso devido aos atrasos da Boeing.
“O modelo de negócios da Gol é mais flexível, simples. Temos um tipo de piloto, um tipo de manutenção, um tipo de aeronave, que voa muitas horas. Quando precisa reduzir, é mais rápido”, tentou resumir Lark.