Nota de ação de marketing da Petz pela causa animal: estreia desse segmento na bolsa atrai atenção de investidor (Facebook/ Petz/Reprodução)
Graziella Valenti
Publicado em 4 de setembro de 2020 às 08h13.
Última atualização em 5 de setembro de 2020 às 15h10.
Mesmo distante de ser a maior abertura de capital do ano, o IPO da Petz, a rede de varejo dedicada a produtos para bichos de estimação, é um ícone do momento do mercado de capitais brasileiro. A companhia iniciou suas atividades em 2002 e atraiu o fundo Warburg Pincus como sócio em 2013 e agora, sete anos depois, será a primeira desse segmento na bolsa. Com lucro de 22 milhões de reais no primeiro semestre, vai chegar avaliada em cerca de 5 bilhões de reais na B3. A venda das ações deve movimentar 2,2 bilhões de reais (na faixa intermediária dos preços sugeridos), com estreia marcada para dia 11.
“Está cara.” É o que dizem os gestores e especialistas que avaliam a operação. Mas, mesmo assim, vão comprar. A oferta é considerada “superquente”: ou seja, tudo indica que há bastante demanda. A empresa está sendo apresentada aos investidores com a promessa que sua avaliação equivale a 55 vezes o lucro projetado para 2021 e 35 vezes o de 2022. Trata-se de um ativo novo na bolsa, em um mercado com grande perspectiva de crescimento e consolidação, além de oportunidades na área digital. É quase como juntar a fome com a vontade de comer.
Já se tornou rotina no mercado pular 2020, o ano da pandemia. (‘E tudo bem’. É o que dizem). Investir em ações sempre é comprar o futuro. Mas, neste ano, tornou-se comprar o futuro sem ter muita clareza sobre o presente. O discurso, na maioria dos casos, é que o crescimento após a capitalização será tão forte e tão rápido que o múltiplo de 2020 não deve ser usado como parâmetro. No caso de Petz, por exemplo, se o desempenho do primeiro semestre for anualizado, significaria avaliar a companhia em mais de 100 vezes o lucro deste ano.
“A premissa básica dos IPOs têm sido céu de brigadeiro no cenário futuro, com juros baixos e execução perfeita do plano de negócios”, comenta Pedro Rudge, da Leblon Equities. “O lógico seria considerar tudo que é novo com mais risco. Mas há uma demanda reprimida muito grande por novos ativos. O tamanho do mercado brasileiro não é suficiente para o fluxo que está migrando para renda variável. Além disso, o juro baixo aumenta a disposição ao risco”, completa ele.
Valer entre 50 e 100 vezes o lucro de 2020 ou 2021 é quase o “novo normal” dos IPOs deste ano para as companhias mais disputadas. Apenas para efeito de comparação, excluído do cálculo Petrobras e Vale, que pelo tamanho podem distorcer a média, a bolsa brasileira negocia atualmente com uma relação entre preço e lucro de 14 vezes a 16,5 vezes, de acordo com Renato Mimica, diretor da Exame Research. A grande questão que causa a diferença é que o ritmo de crescimento das novatas tende a ser mais acelerado, o que implica em múltiplos maiores — em especial para aquelas que tiverem componente digital. A comparação entre as estreantes e as já abertas, portanto, não é perfeita.
A Lojas Quero-Quero de materiais de construção com presença no interior do país teve lucro de 2,9 milhões de reais de janeiro a junho e estreou valendo 2,3 bilhões de reais. Praticamente sem nenhuma atividade digital e com um dono (Luciano Hang) que pode ser um risco para o negócio, a Havan quer ser avaliada em 100 bilhões de reais — ou seja, 130 vezes o lucro do ano passado, já que o deste ano está em queda afetado pela pandemia. Talvez, 100 bilhões não dê. Mas 80 bilhões de reais são considerados plausíveis — outra vez mais de 100 vezes o lucro. A companhia de cash back Méliuz, que teve um Ebitda de 20 milhões de janeiro a junho, e busca uma avaliação de 3 bilhões de reais. Exemplos não faltam.
Quando a explicação para o múltiplo alto não está na tecnologia, está no "valor da escassez", expressão que vem ganhando fama. Ela resume a pouca variedade da bolsa brasileira. A Quero-Quero, com sua atuação fora dos grandes centros urbanos do país, representa o Brasil profundo, com poucos ativos à disposição na bolsa. A Méliuz, um negócio totalmente novo (e tecnológico).
Entre as companhias já listadas, poucas têm esses indicadores. Entre as raridades, a Magazine Luiza é uma delas, com múltiplo de centena na relação entre preço e lucro, por ser encarada hoje com uma representante do varejo com forte perfil de tecnologia, o que puxa um crescimento expressivo.
Os preços pagos estão animando controladores de companhias, sejam empresários ou fundos de private equity. Só no mês de agosto, 27 empresas pediram registro para fazer IPOs na bolsa — sem contar as ofertas de ações das empresas já abertas. Setembro mal começou e já foram mais seis pedidos. “O Brasil nunca viveu nada parecido. O que está acontecendo agora não tem paralelo com o que ocorreu entre 2006 e 2008”, diz o chefe de mercado de capitais de um grande banco de investimento. No ano, foram realizadas 11 aberturas de capital, mas a fila na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no aguardo de registro é de 52 operações. Há um total de 80 mandatos de companhias circulando no mercado.
A bolsa brasileira tem entre 332 companhias listadas. Há 20 anos esse número não cresce. Ao contrário, diminui — eram cerca de 400 no início dos anos 2.000. Desde o início do reaquecimento do mercado de capitais, a partir do IPO de Natura, foram realizadas 182 aberturas de capital até o fim de 2019. Das novatas, pouco mais de 80 sumiram ou por serem consolidadas em outras companhias ou por fecharem capital — algumas poucas praticamente quebraram e não têm mais liquidez.
A despeito do quadro das últimas décadas, pela primeira vez, há uma sensação no ar — não se fala em previsão, está mais para uma crença de um número cada vez maior de participantes: essa quantidade pode mais do que triplicar nos próximos cinco a dez anos. Pensar em 1.000 e 1.500 companhias na B3 entre 2025 e 2030 não parece mais um absurdo. O número não veio de pergunta da reportagem. Está por aí, circulando, sempre com a ressalva que isso só vai ocorrer se o Brasil não explodir. A observação é parte do temor crescente com as contas públicas, que podem levar o país de novo para um ciclo de taxa de juros em alta.
Fernando Iunes, sócio da gestora de private equity EB Capital e ex-Itaú BBA, acredita que essa expectativa é factível. “As pessoas ainda falam em janela de mercado. Mas a atividade tende a ser constante daqui para frente. Chegar nesse número não depende de nenhum absurdo. Estamos falando entre 50 e 100 IPOs por ano.” Ele destaca, porém, que para isso os bancos terão de ampliar suas áreas ligadas a essa atividade. Além disso, o mercado vai crescer também do lado dos investidores. A bolsa, portanto, vai ficar mais perto de refletir a economia real. "O que tem hoje listado não pode ser considerado um retrato da economia", comenta Iunes.
Mesmo assim, num primeiro momento, essa quantidade de empresas parece tão distante como quando, no ano 2.000, o giro diário do mercado de ações era de 300 milhões de reais, e o presidente da então Bovespa, Raymundo Magliano Filho, falava em buscar uma liquidez de 2 bilhões de reais ao dia e em educar o pequeno investidor para poupar em ações. Era o ano de criação do Novo Mercado, mas não parecia haver no Brasil nenhum ânimo para aberturas de capital. Atualmente, a B3 movimenta por dia perto de 30 bilhões de reais — a média diária dos últimos 12 meses é de 23 bilhões.
A diferença deste ciclo de IPOs e ofertas de ações em relação à euforia de 13 anos atrás é a taxa básica de juros — sempre ela. Em 2006, a Selic iniciou o ano estimada em mais de 17% ao ano e, após um ciclo de cortes, terminou 2007 pouco acima de 11%. Em termos conceituais, uma companhia precisava oferecer uma perspectiva de retorno acima de dois dígitos para competir com o investimento no chamado ativo livre de risco, os títulos públicos.
Agora, com a Selic a 2% ao ano, um ativo não precisa de tanto esforço para ser competitivo e mais interessante, o que abre espaço para um número cada vez maior de companhias. O preço das ações em bolsa deve refletir a perspectiva de seu lucro futuro, descontado pelo seu custo de capital para investir e crescer — conta na qual a taxa de juros tem participação relevante e que é conhecida pela sigla WACC.
“Quando essa taxa de desconto cai, o efeito é o valor da empresa na bolsa subir”, explica Mimica, da Exame Research. Os analistas de investimento, muitas vezes, ainda usam para as companhias já listadas na bolsa um custo de capital de dois dígitos. Mas, se o país persistir com a taxa contraída, esse número vai se ajustar com o tempo. O juro menor também causa outro efeito sobre o investidor que é a disposição de esperar mais por retornos maiores, conforme explica Mimica.
Toda essa atividade e acesso das empresas à capital contribuem diretamente para a expectativa de crescimento econômico. Mais capitalizadas, as empresas investem mais, empregam mais e a roda da economia gira melhor. “É a beleza de ver o dinheiro sair do título público e migrar para a economia real”, destaca Rudge, da Leblon Equities.
O otimismo se tornou quase uma obrigação. O motivo é que o dinheiro para investimento em ações não para de chegar, com a migração dos recursos da renda fixa. Nos últimos 12 meses, os fundos de ações e multimercados captaram 215 bilhões de reais em recursos novos — e esse volume não inclui o crescimento do dinheiro disponível fruto dos dividendos pagos pelas empresas já investidas. Há ainda um volume crescente de dinheiro vindo de pessoas físicas que aplicam diretamente na bolsa. O número de contas ativas dobrou desde dezembro e já chega a 3 milhões. Há cinco anos, eram 500 mil.
A necessidade de alocar o capital que chega torna os gestores de recursos necessariamente mais positivos e com mais espaço para assumir riscos maiores, ainda que em participação menor da carteira. Os especialistas nesse mercado — que são também os maiores interessados nele — se recusam a todo custo chamar o que está ocorrendo de bolha. Defendem que o cenário de juro baixo pode tornar tudo isso duradouro e virtuoso. É revolucionário para a economia de uma forma que o Brasil simplesmente nunca viveu. Mas as lições não devem ser ignoradas.
Em especial porque depois da experiência com a febre das ofertas de 2007 e 2008, o entendimento é que o investidor — profissional ou não — é praticamente o único responsável por saber bem o que está comprando e qual risco está aceitando correr. E como o perfil das companhias que chegam à bolsa é cada vez mais ligado à crescimento, precisa estar preparado para a volatilidade de resultados que isso significa. Aos demais participantes da cadeia envolvida com os IPOs, basta apenas não prometer retorno e não mentir nas informações que fornece ao mercado. O risco de cada parte, portanto, é bastante assimétrico.
Para completar, os ativos deste ano incluem muitas atividades e negócios ainda sem paralelo no mercado, o que torna a comparação difícil — trocando em miúdos, o risco de uma análise equivocada é maior. Onde dá para comparar, a lição de casa parece estar em dia.
Há sinais de que alguma lucidez ainda existe. Em meio à festa da multiplicação de valor, as duas últimas aberturas de capital, da Lavvi, do ramo imobiliário, e da rede de farmácias Pague Menos, tiveram de reduzir o valor que pretendiam conseguir para suas ações na estreia. Os investidores não aceitaram pagar o que elas queriam diante da perspectiva que elas ofereciam. Ou seja, ajustaram a expectativa de retorno a sua disposição de risco. A Havan ainda nem sinalizou o preço para os papéis e já está sentindo a pressão: o risco do polêmico fundador Luciano Hang e o fato de a operação digital ser ainda apenas uma promessa.
Um investidor sem trauma, educado e consciente dos riscos, é essencial para o futuro desejado de uma B3 com 1.500 companhias. Esse sonho, nem Magliano sonhou.