Azul: mercado cético a respeito de capacidade financeira da companhia para lidar com arrendamento de aviões (Avolon/Divulgação)
Graziella Valenti
Publicado em 28 de maio de 2021 às 00h28.
Última atualização em 28 de maio de 2021 às 13h15.
A euforia dos investidores de varejo com uma eventual tentativa da Azul de comprar a Latam, que está em recuperação judicial nos Estados Unidos (Chapter 11), não encontra respaldo entre analistas especializados no setor de grandes instituições financeiras. Bem o contrário. Há um enorme ceticismo tanto da chance de sucesso do negócio quanto da capacidade financeira da Azul de viver essa combinação. O principal fator que tira a fé dos especialistas é a dívida da companhia fundada por David Neeleman, com seus R$ 15 bilhões a mais, que “estão fora” do balanço.
“A empresa ainda não garantiu a casa própria e está anunciando que vai comprar o sítio no interior”, comentou um analista. A companhia fundada por David Neeleman, quando apresentou seu balanço trimestral, reportou uma dívida de R$ 14,1 bilhões para arrendamento de aeronaves, ao fim de março. Entretanto, o saldo a ser efetivamente desembolsado é de R$ 29,5 bilhões. Esse é o tamanho dos pagamentos com os quais a empresa realmente tem de lidar.
Onde estão esses mais de R$ 15,4 bilhões, então, se não na demonstração de resultado? Nas notas explicativas. Quando a nova regra da contabilidade internacional trouxe o leasing dos aviões para dentro do resultado das companhias aéreas (o tal do IFRS 16), determinou que o valor fosse registrado fosse pelo valor presente, dado que são contratos de longo prazo, e permitiu que a taxa de desconto usada para esse cálculo se ajustasse a cenários adversos. Nada mais adverso do que uma pandemia.
Pois bem. No primeiro trimestre de 2020, a Azul descontava o saldo de arrendamento de aeronaves a 8%. Com o início da pandemia, esse percentual subiu para quase 22%. Entretanto, tal índice não tem efeito caixa. A empresa segue comprometida com o valor cheio.
O valor total do saldo a pagar da Azul reflete o fato dela ter uma frota de aviões jovens (178 no total, sendo 159 em operação), com média de 6,3 anos (prazo médio de leasing é de 12 anos). Em geral, as empresas preferem voar com frotas mais novas porque o custo de combustível é o principal determinante na geração de caixa do setor. E quanto mais novo um avião, mais eficiente ele é. Mas, em contrapartida, mais ele pesa em termos absolutos no balanço, porque o saldo em parcelas a vencer é maior.
De janeiro a março, a receita líquida da Azul recuou quase 35% na comparação anual, para R$ 1,8 bilhão, e o Ebitda teve queda ligeiramente superior a 80%, para R$ 130 milhões. O prejuízo aumentou mais de 15% e superou R$ 1,1 bilhão.
Conforme analistas, na época da troca da taxa, a companhia afirmou que aplicou ao arrendamento o mesmo "desconto" que seus papéis de dívida estavam sofrendo no mercado. "Mas, agora, os bonds já estão sendo negociados a preços bem mais razoáveis", comenta um dos três profissionais ouvidos pelo EXAME IN.
As companhias contudo não podem simplesmente mudas as taxas quando bem entenderem. Ela só pode ser modificada em caso de renegociação de contratos. Ao longo do tempo, esse indicador deve convergir ao custo de capital da companhia, conforme novos aviões forem acrescentados à fronta, com taxas fora do período de estresse do mercado.
O que mais inquieta os investidores é que a rival Gol subiu essa taxa de 8,6% para 12,1%. Portanto, na largada da adoção da regra, as empresas tinham taxas parecidas, mesmo com frotas tão diversas, e hoje estão com número bastante diferentes. No caso da empresa aérea controlada pela família Constantino, o valor presente dos acordos de leasing é de R$ 8,5 bilhões e o total, sem desconto, é de R$ 11,8 bilhões. “Por que uma usa 12% e a outra 22%? Não me parece ter sentido essa diferença”, diz um especialista, lembrando que quanto maior a taxa, maior o valor da dívida que "sai do balanço".
A Gol fez a renegociação dos leasings no balanço do terceiro trimestre de 2020, enquanto a Azul, no segundo. No começo da pandemia, os títulos de dívida das aéreas sofreram descontos que chegaram a oscilar entre 35% e 40%, mas no meio do ano esse intervalo já estava mais entre 25% e 35%. O desconto médio dos títulos de prazo mais próximo a vencer das empresas é de 11% na Gol e de 9,5% na Azul, considerando a duração dos papéis.
O prazo médio da frota da Gol está hoje acima de 11 anos. Na pandemia, a crise do modelo Boeing 737 Max acabou se transformando em uma vantagem. A empresa havia anunciado uma renovação agressiva de frota calcada na nova aeronave. Entretanto, após os acidentes em 2018, a fabricação na Boeing foi paralisada e um novo processo de certificação demorou quase dois anos. Assim, a Gol tinha diversos contratos de leasing de curta duração, para cobrir o gap deixado, quando o novo coronavírus se espalhou. Isso se transformou em flexibilidade para redução de frota de forma orgânica e desembolso de leasing menor. A companhia terminou março com 127 aviões. A Gol já anunciou que está retomando a renovação de seu parque de aeronaves, aproveitando o bom momento de preços.
Nas renegociações dos contratos de leasing devido à pandemia, Gol e Latam optaram por fazer um acordo em que pagam os arrendamentos de boa parte dos aviões por horas voadas nesse momento mais crítico, numa tentativa de ajustar custo à atividade em ritmo fraco. Já a Azul deslocou os desembolsos para o futuro. Com isso, em 2023 e 2024, tem quase R$ 4 bilhões a pagar em cada ano.
De forma geral, os analistas menos crentes no sucesso de uma aquisição da Latam entendem que as dívidas da Azul já são salgadas demais. Fontes próximas às conversas, porém, acreditam que isso não será tema de preocupação, porque a Azul tem uma margem Ebitda, em média, o dobro da Latam, o que indica que poderia operar de forma mais eficiente as empresas combinadas e gerar mais caixa.
O IFRS 16 trouxe uma série de imprecisões aos balanços do setor. Vale lembrar, contudo, que a regra vale para todas as empresas que tenham arrendamentos, de quaisquer tipos, como parte relevante de sua operação. A queixa não é exclusiva das companhias áreas. Tornou-se comum ver, nas temporadas de balanço, uma coluna com os resultados “ex-IFRS-16”.
Entretanto, antes da regra, o leasing de aviões, a maior dívida das empresas, sequer passava pelo balanço. Para lidar com isso, muitos analistas de aviação estimavam o compromisso total multiplicando pelo número 7 a despesa anual de arrendamento. Muitos ainda preferem fazer dessa forma e ignorar o balanço. E outros ainda preferem fazer suas próprias estimativas, pois a multiplicação simples trata todas as aéreas, dos diversos países e regiões do mundo, como mesmo custo, o que não é verdadeiro.
Os analistas do Morgan Stanley afirmam em relatório de quinta-feira, 27, que a reação de alta das ações — tanto da Azul, quanto da Gol (com dados de recuperação de atividade) — “parecem exageradas”. Ao tratar da Azul, Josh Milberg e Jorge Lourenção apontam que será “desafiador” para a companhia de Neeleman no Brasil cumprir com a projeção de um Ebitda "mínimo" de R$ 4 bilhões para 2022, que apresentou ao mercado.
Segundo eles, para que esse número seja possível, será necessário que o tráfego doméstico tenha uma expansão da ordem de 20% em relação a 2019 e o movimento internacional fique, pelo menos, estável nessa comparação. Isso porque 25% da capacidade da Azul está em voos internacionais e porque cerca de 50% de suas receitas dependiam de viagens corporativas antes da pandemia.
Dessa forma, os analistas estimam que será difícil de alcançar a projeção e que os preços atuais de bolsa parecem elevados. Os especialistas acreditam que tanto Azul quanto Gol estão já bem avaliadas ou até superavaliadas, portanto, caras. Ontem, dia 27, a Gol valia perto de R$ 10 bilhões e a Azul, R$ 15 bilhões.
O analista de uma gestora de recursos aponta que, em seus cálculos, a Azul enfrentará um déficit de geração de caixa entre R$ 2 bilhões e R$ 2,5 bilhões por ano entre 2022 e 2024, para lidar com seus compromissos, que vão desde o arrendamento dos aviões passando pelo juros da dívida financeira.
Outra frente de dificuldade que desanima os analistas a respeito de uma eventual fusão é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Ainda que as companhias possam apontar que a sobreposição não é relevante, juntas Azul e Latam teriam 60% de market-share no Brasil. Nenhum dos especialistas ouvidos pelo EXAME IN acredita que o órgão permitiria tal concentração.
Por fim, vale comentar que todos apostam que o clima de hostilidade entre as companhias já na largada vai dificultar um acordo, ainda que a aérea de Neeleman possa buscar se compor com os credores da Latam.
Fontes próximas aos credores entendem como positivo o interesse da Azul. Porém, há uma preocupação de que uma transação solucione apenas os compromissos ligados às aeronaves de uso doméstico — já que se considera como alvo de interesse da Azul apenas a ex-TAM — e deixem de fora um dos maiores problemas da Latam, os grandes aviões.
Há alguns credores comuns entre as empresas, como o fundo Oaktree, do lendário Howard Marks, que vão sempre ver um vento a favor. Para esses, uma eventual combinação resolve, ainda que seja apenas por um intervalo para garantir sua saída do investimento, duas de suas apostas no setor.
Só o tempo para dizer. Mas, os analistas do setor acreditam que os investidores que têm comprado as ações do setor na bolsa, em especial com essa aposta de consolidação da Azul e aos preços atuais, estão em um voo cego.
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