Bolsa: no mercado brasileiro, B3 e CVM sabem exatamente quem negocia ações, diferentemente dos EUA (Ricardo Moraes/Reuters)
Graziella Valenti
Publicado em 29 de janeiro de 2021 às 06h48.
Última atualização em 29 de janeiro de 2021 às 08h55.
O Brasil não é os Estados Unidos. A B3 não é a Nyse, nem a Nasdaq. E, dessa vez (não só dessa, mas especialmente), isso é uma ótima notícia. As diferenças entre o mercado local e o americano são tantas, em termos de estrutura, que escolher por onde começar é até difícil.
Talvez, falar do básico seja o ponto de largada. O mercado brasileiro trabalha com o conceito de beneficiário final. Aqui, a B3 e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) –— autorregulador e regulador, portanto — conseguem imediatamente saber quem está comprando e vendendo ações. Esse pilar é, inclusive, o que garante que o investidor de bolsa está protegido da quebra de qualquer corretora. A B3 sabe o que o investidor tem. É da pessoa física, do CPF.
Nem todo mundo tem conhecimento que, nos Estados Unidos, a visibilidade vai só até a corretora. Dali para frente, conseguir informações demanda investigação e solicitação de dados, com justificativas. Quando uma corretora está negociando um papel, não é simples saber para quantos clientes e quais. Enquanto aqui esse é o ponto de partida.
Para além disso, o mercado “short”, de apostar na baixa das ações, é limitado por regras da B3. Portanto, a força para puxar um papel, também. Conseguir duplicar o valor de uma ação aqui não é tão óbvio. Nos Estados Unidos, os pequenos investidores se uniram em um movimento e catapultaram o valor da GameStop, que saiu de US$ 1,3 bilhão no começo deste ano para quase US$ 23 bilhões.
O pregão de ontem mostrou que algumas das ações com grande posição (para os padrões brasileiros) de venda tiveram alta. Há quem atribua isso à possibilidade de pressão “das sardinhas” organizadas. Mas outros crêem que foi apenas um dia de alta na bolsa: o Índice Bovespa subiu 2,59% e só quatro ações das 81 que compõem essa cesta encerraram o dia em queda.
Os 12 papéis com maior posição de aluguel atualmente na B3 — que é a base do mercado vendido, você já vai entender isso melhor — são: CVC (14,1%), MRV (11,3%), Eternit (10,8%), Energias do Brasil (10,1%), Iguatemi (9,9%), Helbor (9,8%), Lojas Marisa (9,7%), Even (9,4%), brMalls (9,2%), Cosan (9,1%), Transmissão Paulista (9,0%) e Marfrig (8,9%). O percentual entre parênteses é a fatia de “vendidos” sobre o mercado total da ação. Com exceção de Transmissão Paulista, todos dessa lista subiram. Alguns bastante. Os destaques de alta ficaram por conta de Lojas Marisa (+7,45%), Iguatemi (+7,0%), CVC (+6,77%) e Helbor (+6,47%).
As valorizações são significativas, mas muito sem graça quando comparada aos mais de 1.000% de alta visto na GameStop. Nem mesmo a alta de quase 18% do IRB ontem causa tanto frissom.
A aposta na queda se dá por meio de uma posição vendida — esse é o tal do “short selling”. Ela se chama assim porque o investir primeiro vende, depois compra. Como? Para poder vender antes de ter a ação, é preciso alugá-la ou emprestá-la, dá no mesmo. Há lucro quando a venda é por um valor maior do que a compra.
No Brasil, não existe possibilidade de vender um papel sem tê-lo antes. Não existe aqui o tal do “naked short”, o vendido pelado. E mais, a B3 limita o total de aluguel de uma ação a 20% do que está disponível para circulação no mercado. Não há espaço para a alavancagem que foi feita com a GameStop — lá a posição vendida superava o total de ações disponíveis.
Não bastasse isso, a bolsa também coloca teto por investidor, por grupo de investidores e por corretora. Nada disso existe nos Estados Unidos — inclusive porque lá não há como saber quem é o beneficiário final, lembra?
De forma simplificada, o short squeeze ocorre, ou seja, o vendido fica contra a parede, quando percebe que a tendência de baixa não vai se confirmar e ele precisa comprar o papel no mercado à vista o mais rapidamente possível para reduzir sua perda. Quanto mais demorar para comprar, se a ação continuar em alta, mais perde. Há, então, uma corrida pela ação.
Com os limites da bolsa, só há como 20%, no máximo, ser colocado contra a parede. Agora, imagine quando o mercado inteiro de uma ação ou até mais (nos Estados Unidos, a venda pode superar o mercado total porque existe o sujeito pelado no risco) precisa correr para comprá-la. A força dessa alta é muito maior.
Como não há limites prévios definidos, os Estados Unidos experimentaram a confusão que se viu ontem, com proibições e restrições a determinadas corretoras ou tipo de investidores por lá. O tema lá virou até político. Por aqui, já está tudo no papel. E faz tempo.
Então, é bom que as milhares de sardinhas brasileiras saibam que GameStop aqui não tem. Existe espaço para forçar a alta das ações, mas ele é muito mais limitado quando comparado aos Estados Unidos. Mesmo assim, na noite de ontem, os grupos que prometiam um “short squeeze” continuavam crescendo. Além de IRB, já havia organizações semelhantes para Cogna e para Oi, dois papéis que tradicionalmente estão bastante pulverizados entre pessoas físicas.
Também vale lembrar que coibir manipulação ou punir é tecnicamente bem mais simples quando é possível ver exatamente o CPF por trás do negócio. A sucinta e antiga regra que coibe manipulação de mercado — a Instrução de número 8 da CVM — pode perfeitamente ser aplicada à situação desses grupos, se ficar claro que eles atuaram de fato no sentido prometido.
De tão curtinha, vale conferir a 8:
É vedada aos administradores e acionistas de companhias abertas, aos intermediários e aos
demais participantes do mercado de valores mobiliários, a criação de condições artificiais de demanda,
oferta ou preço de valores mobiliários, a manipulação de preço, a realização de operações fraudulentas e o uso de práticas não eqüitativas.
II - Para os efeitos desta Instrução conceitua-se como:
a) condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários aquelas criadas em decorrência de negociações pelas quais seus participantes ou intermediários, por ação ou omissão dolosa provocarem, direta ou indiretamente, alterações no fluxo de ordens de compra ou venda de valores mobiliários;
b) manipulação de preços no mercado de valores mobiliários, a utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário,
induzindo, terceiros à sua compra e venda;
c) operação fraudulenta no mercado de valores mobiliários, aquela em que se utilize ardil ou artifício destinado a induzir ou manter terceiros em erro, com a finalidade de se obter vantagem ilícita de natureza patrimonial para as partes na operação, para o intermediário ou para terceiros;
d) prática não eqüitativa no mercado de valores mobiliários, aquela de que resulte, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialmente, um tratamento para qualquer das partes, em negociações com valores mobiliários, que a coloque em uma indevida posição de desequilíbrio ou desigualdade em face dos demais participantes da operação.