Em banco de dados, a Coface, forte no mercado exportador, dispõe de 80 milhões de empresas (Lauryn Ishak/Bloomberg)
Angela Bittencourt
Publicado em 25 de junho de 2021 às 16h28.
Última atualização em 25 de junho de 2021 às 20h32.
Existem dois substantivos que valem um adjetivo. Quem tem proteção ou defesa está seguro. Divertido como caça ao tesouro no dicionário, esse jogo é coisa séria para a executiva Rosana Passos de Pádua que sabe, mais que a maioria, o significado da palavra. Há três meses na presidência da Coface Brasil, ela conta que a pandemia não trouxe má notícia para o seguro de crédito. Ao contrário, os prêmios deste segmento do mercado segurador cresceram 47% em 2020 ante o ano anterior e para mais de meio bilhão de reais.
De janeiro a abril de 2021, a expansão foi de 40% sobre um ano antes. A Coface Brasil é um braço da seguradora francesa e sua presença em mais de 100 países revela que tamanho é documento. O seu banco global de dados reúne informações de 80 milhões de empresas.
A retração econômica e as incertezas decorrentes da pandemia, além de maior conhecimento das empresas sobre seguro de crédito como ferramenta para mitigar o risco da inadimplência, elevaram a demanda por esse serviço que tem custo inferior ao seguro de um automóvel. Durante a pandemia, alguns setores tomaram à frente do movimento no último ano e meio: agronegócios, informática, varejo, eletroeletrônicos, farmacêutico e o mercado exportador.
Confiante no crescimento econômico global e brasileiro, Pádua revela, contudo, particular preocupação com o processo inflacionário que poderá conduzir o país a um conhecido ciclo vicioso de mais inflação e mais juro – combinação deletéria para as companhias e sem que o país tenha as finanças ou a economia sob controle.
Neste novo posto, a matemática e especialista em gestão de risco amplia um currículo admirável não apenas por funções que desempenhou, mas também de marcas em que aplicou seu conhecimento. Pádua já atuou como CFO da Lavoro Holding, do Grupo Pátria, e comandou a Diretoria de Governança Corporativa da Companhia Siderúrgia Nacional (CSN) e da BASF Brasil. A executiva orgulha-se de ter fechado o primeiro seguro de crédito no país da subsidiária do grupo alemão, líder do setor químico no mundo. Hoje ela dedica parte de sua agenda à negociação de parcerias em operações estruturadas com bancos que operam com recebíveis de crédito com o objetivo de gerar valor e baratear o custo das operações.
Nessa conversa com o EXAME IN, ela relata a rotina de especialistas em gestão de risco, alerta que a inflação exige maior atenção do governo e vê, nesse cenário, o aumento da taxa de juro como medida inevitável a ser tomada.
A pandemia tornou-se mais um gatilho para o seguro de crédito e quem toma a decisão nas empresas?
Quem toma a decisão é o CFO que identifica um cenário de incertezas e de riscos à frente e avalia as ferramentas existentes para mitigar esses riscos, lembrando que incerteza não é um risco materializado e, portanto, exige maior esforço de análise. O seguro de crédito é uma das ferramentas mais potentes contra perdas. Não estamos passando por isso, mas em um cenário sem garantia de recebimento [risco que a pandemia trouxe a valor presente], quais são as perspectivas para as empresas numa situação como essa? Um primeiro impacto é a decisão de jogar a [potencial] perda nos resultados e fazer provisões. Um segundo impacto, talvez mais danoso, é a ausência de fluxo de caixa [no limite, há risco de repercussão sistêmica].
No ano passado, as empresas agiram de maneira diferente em função da pandemia?
Estamos notando comportamento muito parecido em 2020 e 2021. As empresas têm buscado mais proteção dada a grande incerteza com a pandemia. Ninguém sabia exatamente para onde as economias caminhariam durante esse processo e o interesse pelo seguro de crédito cresceu. Os prêmios aumentaram. De 2019 para 2020, o total de prêmios do segmento no mercado brasileiro aumentou no Brasil 47%, passando de R$ 370 milhões para R$ 543 milhões. De janeiro a abril deste ano, os prêmios arrecadados somaram R$ 241 milhões, ante R$ 171 milhões em igual período do ano passado, um crescimento de 40%.
Temos avaliação de sinistros?
Os sinistros demoram a ser observados. Como exemplo, uma empresa realiza uma venda por 90 dias em dezembro. A perspectiva é de recebimento em março do ano seguinte. Em caso de não recebimento, há um processo de negociação com o cliente. Há, portanto, um tempo para materializar o não cumprimento da operação. Mas temos observado que, em 2020 e também em 2021, os sinistros estão vindo menores do que se imaginava para um período de incerteza tão grande.
As empresas estão menos inadimplentes do que poderiam estar?
Estão sim e a explicação está no comportamento da própria economia. Os fatores que têm sustentado a economia brasileira e global são os preços das commodities e de toda a cadeia de produção chegando aos alimentos; os programas governamentais para empresas que ocorreram na maioria dos países ainda que com estratégias diferentes, o que conteve perdas significativas; o auxílio emergencial no Brasil que ajudou e ajuda diretamente a população e seguramente se transformou em consumo. No geral, esses fatores fizeram com que as empresas se sustentassem e não ocorresse uma inadimplência sistêmica.
Alguns setores recorreram mais ao seguro de crédito no Brasil?
Toda a cadeia de agronegócio por ser muito dependente de preços de commodities e com riscos que transcendem à pandemia porque o setor também é exposto a riscos climáticos; a cadeia de informática; varejo; eletroeletrônicos e eletrodomésticos; farmacêutico; e o mercado exportador que é um nicho de forte atuação da Coface. Globalmente, a Coface detém em seu banco de dados cerca de 80 milhões de empresas. E, além de informações, temos experiência de crédito com todas essas companhias. Quem vai exportar para qualquer parte do planeta nos consulta porque, além do seguro de crédito, vendemos serviços de informações.
Qual é a participação da operação brasileira na Coface global?
Infelizmente, nossa participação é pequena. Hoje, 2,5%. A ideia é crescer, mas essa fatia se deve à combinação de dois fatores: o seguro de crédito é muito conhecido e utilizado nas principais economias há décadas e, no Brasil, há desconhecimento sobre essa ferramenta poderosa para mitigar riscos. As empresas brasileiras que mais utilizam os nossos serviços são exatamente as que têm maior experiência na gestão de riscos.
O Brasil volta a crescer, mas com juro em alta. Essa condição compromete o negócio da Coface?
Uma taxa de juro elevada afeta o nível de alavancagem e as empresas endividadas vão sofrer mais fortemente que demais. Isso nos preocupa sim porque, quando firmamos seguro estamos, na prática, concedendo crédito às companhias. Mas tão ou mais relevante quanto o juro é o processo inflacionário em curso com índices de preços que, em 12 meses, já superam 8%. [E esse processo tem duas faces] De um lado, a economia não se sustenta com juros negativos; e, de outro, a inflação pode levar a um conhecido ciclo vicioso, de mais inflação e mais juros. E, no tempo, menos crescimento.
O atual processo inflacionário é mais preocupante?
Nunca vi um descolamento tão grande entre índices do atacado e do varejo, além da pressão inflacionária acumulada. Esses fatores têm nos preocupado mais do que a taxa de juros. Se as companhias endividadas tiverem o poder de repassar aos preços essa inflação que vem por vários canais – alta de commodities, preços administrados, câmbio e agora a crise hídrica – corremos o risco de sistematizar a inflação e o juro deverá acompanhar. De novo, o ciclo vicioso já conhecido, de mais inflação e mais juro, é grave. O país não tem as finanças e nem a economia sob controle para retomar esse ciclo.
Ainda assim, a retomada da economia é animadora?
Estamos confiantes na retomada. No ano que vem o crescimento será mais modesto. Na verdade, voltaremos, ao final deste ano, a um Produto Interno Bruto (PIB) do patamar de 2019 e, a seguir, entraremos no ritmo de crescimento histórico brasileiro na casa de 2,5% ao ano. Mas devemos nos lembrar que 2022 é um ano eleitoral. E a história, para além de opinião, nos mostra que nos anos eleitorais há repique de inflação por gastos públicos maiores. E não conhecemos o comportamento deste governo, uma vez que será o seu primeiro processo de reeleição. Não sabemos exatamente como esse processo eleitoral vai se dar com o país saindo da pandemia. Oxalá, esteja saindo da pandemia.
Quais serão os focos de atenção em 2022?
Precisamos de maior atenção à inflação e à política monetária a ser executada para segurar a inflação. Eu já vivi inflação de 80% ao mês e vejo a inflação como um mal que empobrece o pobre ainda mais por tirar dele o poder aquisitivo de uma forma cruel. O governo precisa estar atento e tomar as medidas necessárias [para evitar esse empobrecimento] e uma dessas medidas, por mais que doa, é o aumento da taxa de juros.
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