Professores Stelio Marras (à esquerda) e Antônio Figueira, diretor do Fundo Patrimonial da USP, em evento hoje na Cidade Universitária (Mariana Pekin/Divulgação)
Editora do EXAME IN
Publicado em 28 de junho de 2024 às 13h22.
Última atualização em 28 de junho de 2024 às 20h28.
Stelio Marras é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e construiu toda sua carreira acadêmica na Universidade de São Paulo (USP), da graduação ao doutorado.
Nos últimos anos, vem concentrando sua pesquisa na antropologia da ciência – em linhas muito gerais, como o humano, o social e a natureza se entrelaçam na produção e compreensão do conhecimento científico. (Qualquer relação com negacionismo climático e o movimento antivacinas pós-Covid não é mera coincidência.)
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Sua dissertação de mestrado em 2004 resultou num livro premiado, batizado de “A propósito de águas virtuosas”, no qual narra a história de Poços de Caldas, um balneário no Sul de Minas conhecido por suas termas, usando suas águas sulfurosas como fio condutor para traçar, entre outras relações, a formação dos grupos econômicos.
Aos 54 anos, Stelio Marras está trazendo sua cidade natal e a responsabilidade dessas elites ao centro do debate – desta vez, na forma de uma doação generosa, gravada em seu testamento, de um imóvel avaliado em R$ 25 milhões para o Fundo Patrimonial da USP.
É a maior contribuição ao fundo, constituído em 2021 para ajudar a financiar e fomentar as atividades maior universidade pública do Brasil, responsável por 20% da pesquisa acadêmica produzida no país.
“Eu não tenho filhos. Mas se eu tivesse ou viesse a ter não deixaria tudo para eles. Na sociedade em que vivemos, a melhor herança que eu poderia deixar é um gesto de solidariedade social” , conta o professor, que relutou em tornar sua contribuição pública, mas foi convencido pelo exemplo que pode dar para fomentar a democratização da educação.
Hoje, sem considerar a doação de Marras, o Fundo Patrimonial da USP tem R$ 34 milhões de patrimônio. Nesse tipo de veículo, já consolidado em países como os Estados Unidos e na Europa, a ideia é perenizar e dar sustentabilidade aos investimentos filantrópicos: os recursos principais são aplicados e é o rendimento deles que banca projetos específicos.
Os fundos patrimoniais vêm se tornando cada vez mais populares no Brasil, desde uma lei aprovada em 2019 após o incêndio do Museu Nacional, que lançou as bases legais para sua constituição.
Já há algumas iniciativas parecidas de escolas específicas da USP, constituídas antes da lei, como o Amigos da Poli, que engloba tradicional Escola Politécnica, de engenharia.
Mas o Fundo Patrimonial da USP é único a englobar a universidade como um todo. “Não se trata de substituir o financiamento público. O dinheiro vem do ICMS do Estado para financiar o ensino e as principais atividades. É sobre complementar. podemos trazer dinheiro para fomentar diversas atividades com o capital filantrópico – sejam elas iniciativas de inclusão, pesquisa, manutenção de patrimônio e cultura”, afirma Antônio Figueira, diretor executivo do fundo e professor da Esalq, em Piracicaba.
Filho de um imigrante italiano que veio para o Brasil sem nenhum centavo e construiu aqui sua riqueza – grande quando comparada à média do Brasil e pequena perto da fortuna dos superricos –, Marras perdeu nos últimos dois anos sua mãe e seu irmão caçula.
Assumindo a herança da família, o antropólogo fez um exame do legado que gostaria de deixar quando chegar sua vez de partir. Por isso, gravou em testamento que o imóvel em Poços de Caldas, que abriga um cinema no térreo e um conjunto de apartamentos residenciais, vai para o fundo da USP na partilha.
A condição: que os recursos sejam usados para um subfundo, o USP Diversa, constituído em março deste ano, com cerca de R$ 10 milhões em doações – a maior parte aportada pela filantropa Cris Sultani – para dar bolsas e ajuda de custo para garantir a permanência para grupos minoritários na universidade.
“Na USP, finalmente conseguimos atrair esse grupo que ainda não vinha, com as cotas, com as iniciativas afirmativas. Eles já estão mudando a cara da universidade e, portanto da sociedade, e ali permanecendo vão poder mudar mais ainda, com educação de qualidade, inserção na pesquisa, na produção científica”, diz.
Ele procurou ativamente o Fundo Patrimonial da USP para fazer sua doação, viabilizada pelo time jurídico do veículo. “Conheço o trabalho da universidade e fiquei muito seguro de que essa doação vai ser bem gerida e o dinheiro bem aplicado”.
Não é a primeira vez que há doação de imóveis para a universidade. “Mas, por mais que elas sejam bem-vindas, do ponto de vista burocrático é um problema, porque é difícil lidar com esses ativos e com o patrimônio”, diz Figueira. “Ao doar para o fundo, essa relação é mais fácil, porque há um time voltado e preparado para isso e um uso determinado nos recursos.”
Entre os Patronos da USP, que colocaram os primeiros recursos no fundo patrimonial estão nomes como Jaime Garfynkel, da Porto Seguro; o advogado e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer; e José Luiz Setubal, da família controladora do Itaú Unibanco.
Com a captação de recursos iniciada há pouco mais de um ano, Figueira afirma que ainda há um grande trabalho para atrair mais capital.
Como o fundo patrimonial trabalha aplicando o rendimento dos investimentos, é preciso um volume mais robusto de recursos para que ele, de fato, possa mexer o ponteiro.
“É uma construção de médio e longo prazo, de cultura filantrópica. Mas uma construção na qual eu acredito profundamente”, diz.
A doação de bens em testamento para instituições sem fins lucrativos – o chamado legado solidário – ainda é uma prática pouco usada no Brasil. Para isso, é preciso ter um testamento público registrado, com clareza sobre o direcionamento desses bens e clareza quanto a seu uso.
Num evento realizado na manhã Biblioteca José Mindlin, na Cidade Universitária, Marras fez um breve discurso e deixou seu recado às elites:
“Ao tornar pública a finalidade dessa minha herança exclusivamente destinada a financiar, no âmbito do Fundo Patrimonial da USP, bolsas de permanência estudantil de alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, esta é também uma aposta que faço em parte das elites brasileiras, que pode então passar a conhecer e, quem sabe, agir por orientação dessas iniciativas. É aposta de que tais elites não são completamente tomadas pelo pior no país marcado pelas terríveis consequências da escravidão, estas que infelizmente permanecerão por muito tempo entre nós, conforme previu, há mais de século, a lucidez do abolicionista Joaquim Nabuco.”
A seguir, o discurso completo – num mundo de tantas palavras vazias, um exemplo raro sobre como viver de acordo com o que se acredita:
“Devo logo dizer que de nada valeria esta minha iniciativa sem a confiança irrestrita em mim depositada por minha mãe, Ruth São Juliano Marras, e meus irmãos Leandro Tullio Marras e Fulvio Edmundo Marras. Grande parte do que leguei em testamento para o Fundo Patrimonial da USP vem e virá deles, a partir da herança inicial de meu pai, Edoardo Luciano Marras, falecido em 1981. Sei que tenho aqui 5 minutos para falar, e por isso não há como render a eles a devida e merecida homenagem. Mas o farei oportunamente em outro lugar, em outro momento.
Não era minha ideia aceitar o convite para esta homenagem hoje aqui, já que isso poderia eventualmente soar como autopromoção a me emprestar, não sem grande desconforto e certo risco, a aura de benfeitor ou benemérito. Por isso relutei. Mas acabei convencido de que esta obra, minha e da parte referida da minha família, poderia talvez frutificar ainda mais se eu a deixasse tornar-se pública. É portanto em nome ainda dos meus familiares citados, assim os honrando, como também pensando nos futuros beneficiários, que estou aqui.
Digo ainda que, como docente e pesquisador em ciências humanas desta universidade, onde fiz toda a minha formação acadêmica, eu sei bem dos mecanismos de concentração de renda e de patrimônio que seguem históricos e estruturais em nosso país. O que não sei é ensinar e produzir conhecimento no Brasil e sobre o Brasil sem sempre tentar considerar à altura essa nossa chaga social. Além disso, entendi que a partir do momento em que eu tivesse a chance de legar aos vulneráveis, que compõem a grande maioria dos brasileiros, e minoritários sociais, que ainda o são na nossa universidade, a herança do que recebi e também do que construí ao longo da vida, isso desde então já não seria uma opção para mim. Eu o faria sob a rubrica do ensino e da pesquisa, esses poderosos vetores de transformação radical, e junto à uma instituição séria e confiável, como a USP. Assim veio a acontecer.
Tornar pública a finalidade dessa minha herança exclusivamente destinada a financiar, no âmbito do Fundo Patrimonial da USP, bolsas de permanência estudantil de alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, esta é também uma aposta que faço em parte das elites brasileiras, que pode então passar a conhecer e, quem sabe, agir por orientação dessas iniciativas. É aposta de que tais elites não são completamente tomadas pelo pior no país marcado pelas terríveis consequências da escravidão, estas que infelizmente permanecerão por muito tempo entre nós, conforme previu, há mais de século, a lucidez do abolicionista Joaquim Nabuco.
Por fim, digo que, mesmo que eu tivesse filhos, eu jamais transmitiria a eles o total do que fiz e recebi, senão apenas o reservado por lei. E esse gesto seria, aí sim, a melhor herança que eu poderia transmitir a eles. De que vale a solidariedade consanguínea sem a solidariedade social? A resposta a isso corresponde à pergunta sobre qual mundo se quer promover para as próximas gerações - incluindo o mundo legado aos nossos descendentes diretos.”