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Mais digital, (ainda) mais social e unida à Avon: a Natura na covid-19

Companhia se comprometeu a não demitir, passou a fabricar álcool em gel e acelerou a modernização de seu negócio em meio à pandemia do coronavírus

SEDE DA NATURA: desde o fim de março, tudo mudou na produção do grupo, que possui um total de dez fábricas (Germano Lüders/Exame)

SEDE DA NATURA: desde o fim de março, tudo mudou na produção do grupo, que possui um total de dez fábricas (Germano Lüders/Exame)

GV

Graziella Valenti

Publicado em 7 de abril de 2020 às 10h07.

Última atualização em 9 de abril de 2020 às 12h59.

Na fabricante de cosméticos Natura, o custo total da paralisação econômica em razão dos esforços contra a pandemia do coronavírus ainda não está estimado. Mas, em três semanas de crise, a empresa já tem certeza de qual será o legado: a digitalização acelerada dos canais de vendas e uma maior agilidade nos processos e decisões. Cabe nessa lista também a expectativa de fortalecimento das marcas pelas iniciativas sociais na fase aguda dos problemas.

O grupo entrou para o rol das maiores companhias globais puras no segmento de higiene e beleza. Dono das marcas The Body Shop e Aesop, concluiu em janeiro a compra da Avon e a combinação societária das empresas. A aquisição da centenária americana representa um salto importante nos negócios.

A receita líquida consolidada no ano passado foi de 14,5 bilhões de reais. Com a Avon, esse total teria mais que dobrado e alcançado 33 bilhões de reais, segundo indicadores pró-forma apresentados pela própria Natura. O Ebitda, que foi de 1,99 bilhão de reais em 2019, seria de 3,5 bilhões de reais.

Junto com o anúncio da finalização da incorporação da Avon, logo nos primeiros dias de janeiro, a companhia também ampliava a expectativa de sinergias com a união das empresas para uma faixa entre 200 milhões e 300 milhões de dólares ao ano, a serem plenamente capturadas a partir do terceiro ano. A covid-19, então, ainda nem tinha nome. Era um surto de uma doença misteriosa em uma região da China.

Agora, com o novo cenário global, não se sabe quando números equivalentes ao das empresas combinadas em 2019 poderão ser oficialmente registrados no balanço do grupo. A estimativa das sinergias, contudo, está mantida, por enquanto. Já os números para este ano, todos em análise.

“Tudo sobre 2020 está em revisão. Receita, investimento, alavancagem. Mas tenho certeza que, para além dos efeitos econômicos do momento, vamos sair melhor disso tudo”, afirmou João Paulo Ferreira, presidente da Natura&Co América Latina, em entrevista à EXAME. O otimismo do executivo, que se contrapõe ao pessimismo que predomina em diversos setores da economia, se refere à eficiência operacional e à percepção da marca.

Quando questionado sobre o valor do impacto do coronavírus ou mesmo o custo das mudanças que anunciou, Ferreira disse que o assunto está sendo acompanhado todos os dias. “Temos um grupo de pessoas estudando tudo isso. Mas não tem nada pronto. Por enquanto, é um acompanhamento diário dos acontecimentos.”

Desde o fim de março, tudo mudou na produção do grupo, que possui um total de dez fábricas – cinco na Europa e Ásia e mais cinco na América Latina.

No Hemisfério Norte, só a unidade da Polônia está funcionando. Na América Latina, o perfil de produção foi todo alterado. O foco está em produtos de higiene de primeira necessidade, como sabonetes e shampoos. As linhas de maquiagem estão paradas.

E as fábricas de perfume, da noite para o dia, passaram a produzir álcool em gel e líquido para doação a partir de uma lista de fornecedores que começou com Usina São Martinho e depois incluiu Raízen, Basf e segue crescendo.

Até o fim dessa semana, a primeira onda de produção, nas unidades fabris da Avon, terá gerado 200.000 embalagens de álcool líquido (750 ml cada) e 150.000 unidades de álcool em geral (embalagens com 100 gramas cada). Em uma segunda onda, em Cajamar, na linha da própria Natura, serão produzidos mais 75.000 frascos de álcool em gel e cerca de 500.000 de álcool líquido.

O grupo doou ainda 2,8 milhões de unidades de sabonetes, com ajuda de Organizações Não Governamentais (ONGs) e da Cruz Vermelha.

A gestão de tudo está sendo conduzida remotamente. A companhia tem 18.000 funcionários na América Latina. Desse total, metade está trabalhando a partir de suas casas. Cerca de 20% foi colocado de licença remunerada ou férias. Nas fábricas, dedicados à produção de itens essenciais, estão os demais 30% dos funcionários. A companhia foi uma das primeiras a garantir estabilidade de emprego por 60 dias.

Ferreira disse que não houve grandes cálculos e estimativas para a definição desse conjunto de iniciativas. “Tomamos a decisão com a tranquilidade de quem colocou em seu estatuto social nosso compromisso com o social e o ambiental”, enfatizou.

Josie Romero, vice-presidente de operações e logística, contou que entre a ligação da usina sucroalcooleira São Martinho (a primeira a se voluntariar na doação da matéria-prima) e o início da produção se passaram apenas 36 horas. “Foi o tempo de definir onde, quais embalagens poderiam ser usadas e preparar o rótulo.” A executiva reforçou que a velocidade das decisões tem se mostrado essencial nessas últimas semanas.

A crença de Ferreira sobre o legado positivo, além da agilidade que a gestão está testando, vem do histórico de digitalização da empresa até aqui e dos novos planos, que estão vindo desse aprendizado. A companhia começou a implantar uma plataforma própria eletrônica em 2012.

Como resultado disso, sem considerar a Avon, a Natura tem hoje 1,7 milhão de revendedoras. Dessas 1,1 milhão ficam no Brasil e mais de 900.000 delas já registram os pedidos de forma totalmente eletrônica, o que faz com que quase 98% das encomendas venham dos canais digitais. Mais de 700.000 têm sua própria loja on-line, conforme ferramentas que a Natura ensina e disponibiliza.

Essa base está permitindo que a empresa não pare, apesar da inevitável retração para todos os setores, e do impacto direto sobre o varejo físico. O que o grupo tem em estoque atualmente atende a cerca de um mês de vendas normais ou pouco mais. Um tempo maior de paralisação poderia, portanto, comprometer o abastecimento. Considerando o consolidado de todas as marcas, ao fim de dezembro – após a campanha de Natal, portanto – havia 1,2 bilhão de reais em produtos acabados marcados como estoque no balanço da empresa.

Com a compra da Avon, o objetivo é acelerar a adoção dos canais digitais sobre uma base de nada menos do que mais 5 milhões de revendedoras espalhadas pelo mundo. O grupo não forneceu dados dos índices de digitalização na marca de origem americana. Agenor Leão, vice-presidente de negócios digitais, enfatizou que os planos nesse sentido, após a experiência da pandemia, serão acelerados. Porém, sem revelar qual deve ser o ritmo.

O grupo guarda a sete-chaves a divisão da receita por origem – lojas no varejo, vendedoras e canais digitais diretos – mas as revendedoras estão no berço das marcas Natura e Avon. “Somos e fomos criados como uma rede social off-line”, enfatizou o Ferreira, ao ressaltar que isso hoje favorece a empresa.

A companhia chamou atenção da gestora carioca Dynamo, uma das mais tradicionais do mercado e que em março ampliou a compra de ações e superou uma participação de 5% no negócio. Ao fim da semana passada, o valor de mercado da Natura&Co estava em 28,3 bilhões de reais, pouco mais que a metade dos 54 bilhões de reais que o preço em bolsa marcava no fechamento de fevereiro.

“Mesmo já tendo uma base digital, a crise mostrou que há espaço para aumento da eficiência nesse canal, fruto da necessidade do momento”, comentou Josie Romero. Antes, explicou ela, as revendedoras ficavam presas a um ciclo de produtos que dependia de uma revista impressa e que durava 21 dias, pois era assim que a empresa se organizava.

Agora, como tudo que é físico foi minimizado, o tempo está encurtando. As situações e as ofertas podem reagir à demanda e ao estoque. “A situação está nos levando, e às próprias vendedoras, a arriscar mais nas decisões, a testar estratégias, e isso tem sido bom. Antes passávamos longos períodos planejando”, completou ela.

 

De acordo com Agenor Leão, mesmo já tendo uma base elevada de revendedoras plugadas eletronicamente às plataformas, o número de abertura de canais próprios dobrou nas últimas semanas e a quantidade de cursos e treinamentos nesse sentido foi multiplicada por quatro.

O fim do ‘nós e eles’

Todo o esforço para lidar com a crise tem mais um saldo positivo, na visão de Josie Romero: a aceleração da integração com a Avon. A avaliação é que isso será importante no futuro próximo. No início de janeiro, pouco antes do prazo previsto, a Natura conseguiu concluir a incorporação da companhia, avaliada em 2 bilhões de dólares para a combinação dos negócios.

“Antes, a gente esperava que esse processo fosse levar meses ou talvez anos. Mas os times estão trabalhando já totalmente unidos. Não tem essa coisa de ´nós e eles´. Isso acabou. Todo esforço para lidar com a crise, mais a questão da produção do álcool em gel, tudo isso deu um senso de propósito às pessoas que está superando qualquer questão de cultura empresarial”, disse a vice-presidente.

O que é primeira necessidade?

A crise chegou em meio à consolidação de uma nova estrutura de governança na Natura, também em razão da compra da Avon. Em dezembro, a companhia havia montado um comitê executivo com 12 lideranças, de diversas áreas, para conduzir a integração das empresas. Desde que a crise se instalou, esse time se reúne por conferências eletrônicas todos os dias. O objetivo é se atualizar do que está acontecendo nas fábricas, com os funcionários e também falar de todo cenário externo.

Josie Romero contou que, dessas atualizações, já veio um retorno surpreendente e que será incorporado à produção do que a empresa vinha chamando de linha de primeira necessidade. “Na Inglaterra, os agentes de saúde entraram em contato com a Avon solicitando hidratantes para os pacientes da UTI.” Foi uma surpresa, estamos entendendo e nos ajustando cotidianamente às necessidades que surgem. A demanda por desodorante, contou ela, também continua elevada. “O desodorante, no Brasil, é considerado hábito de higiene.”

A dívida

João Paulo Ferreira, presidente da Natura&Co América Latina, afirmou que, se necessário, a companhia buscará captações ao longo deste ano. Contudo, disse não ter nada em andamento neste momento. Considerando a Avon, cuja aquisição foi concluída no início de janeiro, a dívida bruta da empresa estava em 16, 9 bilhões de reais ao fim de dezembro, para uma posição de 8 bilhões de reais em caixa.

O balanço apontava para vencimentos de 3 bilhões de reais neste ano. Segundo o executivo, os valores já foram pagos. Ele afirmou que, assim como todas as empresas, a Natura está revisando suas despesas e saídas de caixa e ajustando a relação com fornecedores. Mas que ainda não é possível saber como ficará a alavancagem após os efeitos da paralisação e da esperada redução de atividade.

Com a transação, 56% dos compromissos ficaram em dólares. Até o fim do ano passado, havia planos para uma eventual reorganização dos passivos. Agora, o executivo mostrou-se menos enfático a respeito da questão. “Temos dívidas em moeda estrangeira sim, mas temos também muitas receitas.”

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