“É incomparável o câmbio entre 2016 e 2021. Lá atrás, o dólar arrefeceu em contraponto à alta das commodities. Neste ano, o câmbio vai demorar a voltar”, diz José Francisco de Lima Gonçalves (Divulgação/Divulgação)
Angela Bittencourt
Publicado em 10 de setembro de 2021 às 07h49.
A inflação no Brasil está a um triz de dois dígitos. Em 12 meses até agosto cravou 9,68%. A última vez que o IPCA – indicador oficial do regime de metas de inflação – chegou a 10% foi em fevereiro de 2016. Tirando o percentual, não há coincidência entre os dois momentos, à exceção da tensão política que revela, porém, um compasso diferente. Há cinco anos, o Brasil se preparava para o afastamento da presidente da República. Portanto, para uma troca de governo. Hoje, o país adentra no calendário eleitoral que culminará com a escolha do próximo titular no Palácio do Planalto em outubro de 2022.
O ano de 2016 foi sacudido internacionalmente por atentados terroristas, a saída do Reino Unido da União Europeia e a vitória de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Por aqui, a operação Lava-Jato andava a todo vapor, manifestações populares pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff mobilizavam as principais capitais do país; as contas públicas tiravam o sono do governo e do setor privado; e a economia mergulhava no segundo ano de uma brutal recessão. Mas eventos positivos estavam em construção sobretudo na ótica do mercado financeiro: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do teto de gastos foi aprovada; a Reforma da Previdência – parcial – ganhou forma e passou pelo crivo do Congresso no ano seguinte.
Hoje, o Oriente Médio está no foco dos analistas por disputas de grupos extremistas; os Estados Unidos lutam para retomar o pleno emprego comprometido pela resistência de trabalhadores a retornarem ao trabalho após meses de acolhimento de benefícios concedidos durante a pandemia de Covid-19; e as economias recuperam terreno abatido pela doença com a expectativa de engatar um novo ciclo de crescimento. Aqui, a Reforma Tributária ganhou na revisão do imposto de renda um arremedo; a Reforma Administrativa aguarda momento propício para avaliação no Executivo e Congresso; e o pagamento de precatórios, ainda sem solução, não sai da pauta, enquanto prevalecem embates entre os Poderes – elevando incertezas que dão suporte ao dólar, um fardo e tanto para a inflação.
“A inflação está flertando com dois dígitos, mas o cenário é bem diferente. É fundamental entender a escalada dos preços nos dois momentos: 2016 e 2021. Os dois dígitos foram alcançados em 2016, a partir de choques sucessivos em 2013/2014. Seca e crise de energia juntaram-se ao fenômeno El Niño, o que propiciou o choque de preços dos alimentos em 2014. Em 2015, a pressão cambial entrou em cena turbinada pelo envio ao Congresso Nacional – pelo então ministro da Fazenda Joaquim Levy – da proposta de Orçamento com déficit primário pela primeira vez na história da República”, relata José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, especialista em história da economia brasileira.
Meses antes, o ministro aplicara forte choque de preços administrados como compensação aos atrasos nos ajustes que vinham ocorrendo há quase 2 anos.
Em entrevista a EXAME IN, Gonçalves pondera que, até 2016, contribuiu para a inflação em dois dígitos o fato de a economia brasileira estar em pleno emprego. “Os preços dos serviços estavam acima da inflação média. Os orçamentos familiares estavam corrigidos pelos preços dos serviços e a inflação acelerou. Mas acabou declinando a 6,29% no encerramento do ano que foi influenciado por fatores positivos. Entre eles, a perspectiva, confirmada, de criação do teto de gastos e a troca do comando do Banco Central. Com a chegada de Michel Temer à presidência (interina durante 180 dias de afastamento de Dilma Rousseff para preparar sua defesa ao processo de impeachment aberto pelo Câmara dos Deputados) Ilan Goldfajn assumiu a instituição, o que trouxe alívio ao câmbio. Mas foi mais que isso.”
Gonçalves explica que, em 2016, o desemprego chegou a níveis inimagináveis naquele momento, levando a uma forte desaceleração dos preços de serviços. Paralelamente, o choque de preços administrados promovido pelo Ministério da Fazenda, em 2015 – quando foram corrigidas tarifas defasadas – deixou de contaminar o cálculo da inflação um ano depois. Movimento semelhante ao observado na evolução de preços dos alimentos.
“É incomparável entre 2016 e este 2021, o comportamento do câmbio. Enquanto lá atrás o dólar começou a subir com a queda das commodities, desta vez tudo subiu. O choque é mais intenso e o câmbio vai demorar a voltar, dado o ambiente político, o que torna a inflação mais resistente. Outro fator a considerar é a diferença do mercado de trabalho. Carregamos desemprego de dois dígitos e três anos de expansão do Produto Interno Bruto (PIB) em 1%. Tivemos, a exemplo do passado, uma recessão em 2020, mas com característica diferente. Desta vez, num ano de pandemia, sofremos um choque de oferta com interrupção das cadeias de produção por falta de insumos. Lá, em 2016, tivemos uma abrupta queda da demanda”, comenta Gonçalves que chama atenção também para uma questão técnica.
O economista-chefe do Fator lembra que o regime de metas de inflação não foi pensado para lidar com choques de oferta, mas para conter a demanda, de modo que uma situação de contração da oferta é inflacionária, mesmo com a demanda fraca. “Situação em que as autoridades monetárias procuram manter o câmbio quieto e ajustam a demanda via elevação da taxa de juro. Por essas razões, quando comparo o comportamento atual da inflação com o passado, fico apavorado sobre as consequências da escalada de preços sobre as empresas – todas com passivos inéditos de origem diversa, como ter se endividado para evitar demitir funcionários durante a pandemia. Sem produzir na escala anterior de imediato, as empresas terão menos margem operacional para servir a dívida acrescida. E o juro em alta pode afetar a demanda. E, sem demanda, as empresas quebram e a inflação não necessariamente cai.”
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