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Gustavo Franco: A carta bomba de Trump – e o nada simples desafio de Lula

Com algum alento nas pesquisas de popularidade, será apenas natural que presidente se veja encorajado a antagonizar ainda mais o mandatário americano. Não é esse o apelo que vem do mundo empresarial

Lula e tarifas (Pablo Porciunculo/AFP /Getty Images)

Lula e tarifas (Pablo Porciunculo/AFP /Getty Images)

Gustavo Franco
Gustavo Franco

Economista

Publicado em 6 de agosto de 2025 às 15h34.

Última atualização em 6 de agosto de 2025 às 15h59.

O grande impasse do mês anterior, o conflito entre os poderes da República em torno do decreto do IOF, terminou resolvido sem maiores dificuldades. O Executivo foi ao STF contra o decreto legislativo, questionando a sua constitucionalidade, jogando, assim, o Judiciário contra o Legislativo no que se apresentou como uma crise de imenso potencial.

Quis o destino, todavia, que o juiz relator do caso, escolhido em sorteio, fosse Alexandre de Moraes. O mesmo do inquérito do fim do mundo e do processo contra os autores da tentativa de golpe de Estado.

Numa audiência de conciliação marcada para que houvesse negociação direta, não houve recuos. Mas as movimentações de bastidores indicavam a existência de combinações, que possivelmente acharam expressão na decisão técnica e ponderada do ministro.

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O decreto presidencial foi mantido, com limites. As novas incidências, como, por exemplo, a do “risco sacado”, teriam que ser criadas por lei. Ou teria que haver um entendimento pelo qual a venda (troca de titularidade) de um crédito se constituir em nova operação de crédito. A propósito, não foi este o entendimento quando se tratou de definir operação de crédito de ente federativo para fins de apuração dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A decisão foi técnica e não inteiramente favorável ao Executivo. O Legislativo marcou sua posição e certamente muitas combinações foram feitas sobre os próximos movimentos fiscais do ministro Haddad.

Por ora, todos baixaram suas armas, houve pontos para ambos os lados, a tensão diminuiu, inclusive porque outro assunto se sobrelevou, e capturou toda a atenção das autoridades: a tarifa americana sobre o comércio entre Brasil e EUA, que seria fixada em incríveis 50%.

É possível que o país tenha diante de si um quadro internacional inteiramente novo, um choque externo desfavorável, comparável aos choques do petróleo por ocasião da criação da OPEP, ou não. É cedo para dizer, mas a perspectiva não é boa.

O país foi apanhado pelo furacão de tarifas ocasionado por Donald Trump no meio de seu enredo de crowding out, com o fiscal demasiadamente descontrolado e a política monetária compensando esses excessos, e bem quando o governo começava a fazer a curva na direção das eleições de 2026. O desemprego está muito baixo, as turbinas fiscais estão a todo vapor, mas os juros se mantêm em níveis recordes a fim de manter a inflação sob controle. A 272ª reunião do Copom, terminando no dia 30, manteve a Selic em 15%, patamar em que se manterá por ora.

É o acelerador (fiscal) e o freio (monetário) no máximo, em clima de tensão financeira.

É este o cenário no dia 9 de julho quando circulou a carta de Donald Trump dirigida ao presidente Lula, ameaçando elevar as tarifas sobre as importações brasileiras para os EUA. Esta ameaça foi feita para todos os parceiros comerciais dos EUA no que o presidente Trump designou como liberation day em abril, mas para execução três meses depois.

O presidente americano chamou as tarifas novas de “recíprocas”, pois alegava que respondiam a práticas inadequadas de seus parceiros em todo o mundo. Trump utilizou poderes estabelecidos em uma lei para “emergências nacionais” (International Emergency Economic Powers Act , IEEPA) para instituir as tarifas, e vem enfrentando alguns questionamentos sobre a real natureza dessa emergência.

A efetiva introdução das tarifas foi adiada diversas vezes, criando dúvidas sobre se Trump iria realmente adiante com tarifas tão altas, a partir de uma emergência fabricada, ou se tudo não seria parte de uma hiperatividade meio teatral e midiática própria de início de mandato, ou de mera postura negocial.

Em julho, já estava se esgotando o “adiamento” de 90 dias anunciado para a entrada em vigor das tarifas, quando, então, o Brasil recebeu a sua carta, com uma mensagem ruim sobre tarifas, na faixa mais alta que a de muitos outros países, e com observações impertinentes sobre assuntos políticos brasileiros.

Foi uma carta bomba.

Seguiu-se uma agonia de especulações e interpretações até que no final do mês veio a decisão americana de moderar a tarifa através de uma lista alentada de exceções. Cerca de 700 itens foram excepcionados, de um total de 4 mil produtos comercializados entre os dois países, possivelmente abrangendo mais de metade do comércio ativo entre os dois países.

Foi um recuo, mas não foi total. Não era puro teatro. Mas era muito teatro.

Claro que os critérios para a escolha das exceções foram ad hoc, e que os balcões estão em amplo funcionamento. Os presidentes não se falam, mas os empresários dos dois lados estão muito ativos. Com isso, o mês de julho termina sem que os assuntos levantados pela carta de 9 de julho tenham serenado.

Compreende-se o desejo americano de lidar com o seu déficit em conta corrente, e que não seja possível entreter nada parecido com o Acordo de Plaza, de 1985, quando se conseguiu enfraquecer o dólar, assim fortalecendo o marco e o iene. Um acordo semelhante teria que resultar numa apreciação do remimbi, o que não parece muito factível.

A tarifa seria uma alternativa à desvalorização cambial, sendo que um conteúdo político muito mais pesado.

Tudo considerado, o dólar já perdeu uns 10% (na métrica do DXY) e os EUA perderam o AAA. O “privilégio exorbitante” pode certamente ser erodido por mau comportamento fiscal continuado. E a perda por ser amplificada por decisões comerciais “fora da caixa”. Há muitas formas de se comportar mal. Não é o melhor jeito de se desvalorizar a sua moeda, para ficar mais competitivo. Mas pode servir.

É surpreendente que o Brasil tenha sido, até o momento, o país que recebeu as maiores “tarifas recíprocas”, e também que tenha tido um ministro da sua Suprema Corte a receber sanções.

As leituras políticas da carta de 9 de julho, e de alguns de seus desdobramentos, têm sido as mais extravagantes. Jair Bolsonaro está no texto da carta, com todas as letras, não há como negar. Mas em que medida o processo no STF sobre a tentativa de golpe e as gestões de Eduardo Bolsonaro foram importantes para a decisão americana? O quanto Donald Trump está verdadeiramente interessado em influenciar os assuntos domésticos brasileiros e o destino de Jair Bolsonaro em particular? Até onde vai essa simpatia entre os dois?

Não é nada simples o desafio de Lula. Há muitos pratos no ar. O antiamericanismo foi sempre um esporte inofensivo praticado por regimes mais à esquerda na América Latina e sobretudo na Europa. O próprio Lula tem sido um praticante, mas sem prejuízo de manter boas relações com lideranças americanas, inclusive republicanos, como no caso de George W. Bush. Ocorre que desta vez é diferente. Será um desafio para Lula encontrar um espaço de aproximação com Trump e, ao mesmo tempo, manter o engajamento dos últimos tempos com a China e a Rússia no âmbito do grupo BRICS.

No primeiro momento, Lula retirou grandes dividendos em tomar a iniciativa de Trump pelo lado político, como uma tentativa de intervir em assuntos domésticos brasileiros. O sentimento nacionalista lhe favoreceu, e Lula conseguiu algum alento nas pesquisas de aprovação e popularidade. Algum alento, não um apoio apaixonado. Será apenas natural que, em busca desse apoio, o presidente se veja encorajado a antagonizar Donald Trump mais ainda.

Não é esse o apelo que vem do mundo empresarial. Resta ver o que fará o presidente Lula nesse novo quadro internacional, uma vez que se aproxima a corrida eleitoral de 2026.

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