Setor de manutenção da Gol em Congonhas: com aviões parados, empresa acelera cuidados (Germano Lüders/Exame)
Graziella Valenti
Publicado em 6 de julho de 2020 às 10h50.
Última atualização em 6 de julho de 2020 às 16h41.
A companhia de programa de benefícios Smiles vai continuar sendo uma fonte de caixa e dor de cabeça para a controladora Gol. Nesta segunda-feira, um grupo de investidores com 4% do capital da controlada apresentou um pedido de convocação de assembleia. A pauta do encontro proposto é nada menos do que a anulação da antecipação de compras de passagens da Gol feitas em março pela Smiles, no total de 425 milhões de reais — com a respectiva devolução dos valores — e o ressarcimento de mais 15 milhões de reais gastos com análises e preparativos para incorporação da companhia, operação que acabou não ocorrendo.
O pedido dos minoritários, por coincidência, chegou às companhias no mesmo dia em que divulgaram um acordo comercial que tem por objetivo promover alívio financeiro à Gol. As empresas acabam de anunciar uma operação pela qual a Smiles vai adquirir 1,2 bilhão de reais em passagens antecipadas da Gol, com descontos previamente acordados. Era exatamente o que os investidores da empresa diziam temer. Por isso, conforme o EXAME IN atualizou há pouco, esses investidores devem acrescentar à iniciativa um pedido de liminar para tentar paralisar a transação desta segunda-feira.
O valor equivale a todo o saldo de caixa da Smiles ao fim de março. A remuneração combinada é de 115% do CDI, aproximadamente 3,5% ano ano. O negócio, ainda que vital à Gol, em meio a um momento sem precedentes na história da aviação comercial devido à pandemia da covid-19, promete ampliar a polêmica com os minoritários da controlada. A remuneração é substancialmente mais atrativa do que o custo de captação que a Gol encontraria no mercado, mas acima do rendimento do caixa da Smiles, estimado em 98% do CDI, segundo fontes próximas às empresas.
No comunicado, a Smiles ressalta a relação financeira e comercial umbilical das empresas. "A operação é um investimento estratégico e incremental para a Smiles e sua geração de valor decorre primordialmente da manutenção dos negócios e da sua geração de caixa atual e futura através do fortalecimento da Gol, sua principal parceira comercial e operacional e companhia com a qual ela tem uma interdependência intensa, em um momento ímpar de instabilidade". A empresa afirma que a transação foi aprovada por um comitê independente especial.
A margem operacional da Smiles, forte geradora de recursos, decorre principalmente da compra de passagens da Gol e 'venda' de milhas a clientes, ainda que a companhia venha ampliando a atuação em outras frentes comerciais. Os usuários do programa de benefícios podem utilizar seu estoque de pontos com a Gol e suas parceiras comerciais, como Delta e American Airlines, mesmo que a companhia de benefícios não tenha acordo direto com as empresas internacionais — um dos motivos de seu sucesso com consumidores. Quanto maior for o desconto que a empresa obtiver nas passsagens, mais sua margem pode aumentar.
O grupo de acionistas da Smiles que levou questionamento hoje às empresas reúne a soma da participação dos fundos Samba Theta, CSHG Suprassumo e Centauro I. Os investidores são representados por Cesar Augusto Fagundes Verch e Márcio Louzada Carpena, do escritório Carpena Advogados, com sede no Rio Grande do Sul.
Eles propõem ainda uma ação de responsabilidade civil contra os administradores da Smiles e contra a Gol, se não forem devolvidos os valores solicitados, conforme a correspondência obtida com exclusividade pela EXAME IN. Como é praxe nessas situações, o conselho da Smiles tem um prazo de oito dias para convocar o encontro. Caso não o faça, os minoritários podem chamar eles próprios a assembleia.
Com todo cenário de indefinição sobre setor aéreo, a Smiles também está sentindo o drama. A companhia valia em bolsa 1,9 bilhão de reais, pouco mais do que tem em caixa, conforme fechamento de sexta-feira (3/7). Considerando a linha de “contas a receber”, a empresa de milhagem fechou março com saldo de quase 1,6 bilhão de reais — sem dívidas financeiras.
A Gol levou a Smiles à bolsa em oferta pública inicial (IPO) realizada em 2013. Tudo ia bem até 2018, quando algumas companhias aéreas decidiram unir novamente seus programas de benefícios à operação de aviação — foi assim, por exemplo, que a Multiplus saiu da bolsa e foi absorvida pela Latam.
A partir de então, a relação entre os minoritários da Smiles e da Gol tem sido de choques recorrentes. A primeira frustração veio em março de 2018, quando foi modificada a política de dividendos da Smiles. Depois, em outubro daquele ano, a Gol anunciou uma complexa operação de incorporação da empresa e de migração para o Novo Mercado da B3. Informou na ocasião que não tem planos de renovar o contrato comercial entre as companhias, que vence em 2032.
Além de desagradar os minoritários da Smiles, a reestruturação não passou no crivo da própria B3, que não permitiu a listagem da Gol no segmento máximo de governança. Foram idas e vindas, com adaptações, e a operação não vingou.
Mais de um ano depois da primeira tentativa, em dezembro de 2019, uma nova proposta partiu da Gol: dessa vez era uma incorporação em que só os minoritários da Smiles votariam em assembleia sobre o negócio, com troca de ações mais uma fatia em dinheiro. A transação já não ia com a popularidade nas alturas quando veio a pandemia e, então, a Gol decidiu cancelar a reorganização.
Desde a mudança da política de dividendos, a compra de passagens da Gol pela Smiles passou a ser acompanhada mais de perto pelos acionistas de mercado, atentos à relação comercial com a controladora. Antes a Gol lucrava com a empresa pelos gordos dividendos distribuídos — e todos os sócios sem exceção saíam de bolsos cheios e felizes. Depois, na visão dos investidores, o acesso ao caixa passou a ocorrer de uma forma mais perversa com os minoritários da Smiles: apenas pela compra de passagens.
Na visão de uma fonte próxima às companhias, há um desconhecimento dos investidores a respeito da operação da Smiles e da forma como gera caixa. O entendimento é que se a relação comercial fosse ruim, a companhia de milhagem não seria forte geradora de recursos.
A carta encaminhada pelos investidores da Smiles, para toda administração da empresa, da Gol e com cópia para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), tem 30 páginas. Entre argumentos e citações de juristas, os investidores destacam que a compra de passagens de março foi feita em condições muito vantajosas à Gol, melhores do que seu custo de captação na ocasião — e que os processos (ou a falta deles) diante desse cenário teriam infringido as regras de governança e do estatuto da Smiles. Embora o isolamento não tivesse sido decretado ainda no Brasil, as ações das companhias já antecipavam o cenário difícil devido aos acontecimentos internacionais.
Além disso, o grupo aponta que durante a pandemia a Smiles declarou que estava estimulando os clientes a usarem o saldo de milhas com outros produtos, no lugar de passagens, uma vez que os aviões do mundo estão em sua maioria aterrissados e o turismo suspenso. Portanto, não faria sentido comprar algo que ela saberia que não poderia revender.
Os minoritários da Smiles atentam ainda que a proposta da empresa para a assembleia geral ordinária (AGO) pré e pós-pandemia mudou sensivelmente. O encontro regulamentar anual de acionistas que antes ocorreria em 30 abril foi adiado devido à crise do coronavírus, conforme permitiu a CVM. A assembleia ficou para este mês.
Na primeira proposta de pauta, a Smiles previa destinar para reserva retenção de lucros cerca de 238 milhões de reais e o valor subiu para 440 milhões de reais. Na primeira proposta, não havia perspectiva de novas aquisições de passagens e agora, na nova pauta, lá está esse item como destino possível dos recursos guardados.
Apesar de na proposta da AGO que ocorreria em abril não haver previsão de compra de passagens da Gol, os três conselheiros independentes da Smiles manifestaram voto contrário à destinação dos resultados — em reunião realizada em fevereiro. Apontavam como preocupação que a controladora estivesse retendo os resultados da Smiles sem justificativa, para benefício próprio e recomendavam a distribuição de todo lucro de 2019 como dividendo. Na época, ainda havia perspectiva de incorporação pela Gol e a pandemia e suas consequências não estavam tão evidentes no Brasil.
Os investidores da Smiles estrearam a nova regra da CVM de quóruns menores exigidos tanto para convocação de assembleia como para propositura de ação de responsabilidade contra os administradores — a Instrução 627, de 22 de junho. Empresas com valor de mercado entre 1 bilhão de reais e 5 bilhões de reais, dependem da organização de acionistas com uma fatia de 3% do capital social. Antes da edição dessa norma, a fatia mínima de capital era sempre 5%, independentemente do valor de mercado da empresa.
Entre os pleitos apresentados pelos minoritários à Smiles — e abordados na nova regulação da autarquia — está o acesso à lista completa de acionistas.
A Gol tem 52,6% do capital votante e total da Smiles. Essa participação serve de garantia (na forma de penhora) para um empréstimo da ordem de 300 milhões de dólares da Gol que vence em agosto e que a Delta Airlines, sua antiga parceira societária e comercial, é a garantidora fiduciária. Na prática, é uma triangulação. A Gol captou com credores tradicionais da Delta, com garantia da companhia americana. Em contrapartida, deu em penhora o controle da Smiles.
Até o momento, não há uma definição a respeito desse vencimento — se será rolado ou pago. Parte do mercado vê risco de que a Delta execute o penhor sobre a Smiles. Contudo, até o momento, nada coloca esse risco de fato no radar. Predomina a percepção de que o vencimento será alongado, ao menos, parcialmente.
A participação da Gol na Smiles está distante de cobrir o valor do compromisso, após a forte desvalorização da bolsa e do real frente ao dólar. A dívida equivale a mais de 1,5 bilhão de reais e a garantia vale hoje pouco mais de 950 milhões de reais na bolsa.