(Priscila Zambotto/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 27 de janeiro de 2023 às 08h00.
Última atualização em 27 de janeiro de 2023 às 14h52.
O retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), veiculado por meio da Medida Provisória nº 1.160 de 12 de janeiro de 2023, representa um retrocesso em termos de segurança jurídica e vai inibir os investimentos em empresas brasileiras.
Nos primeiros nove meses de 2022, os fundos de private equity e venture capital aportaram R$ 57,8 bilhões em companhias brasileiras. São recursos que financiaram o investimento em inovação, a geração de emprego e contribuíram para o crescimento da economia e para a arrecadação de tributos. São esses investimentos que corremos o risco de afastar com a medida recentemente anunciada pelo novo governo.
A estabilidade nas regras vigentes e na sua interpretação é um pilar fundamental para que se possa atrair a alocação dos gestores de recursos nacionais e globais em investimentos de longo prazo no país. Competimos com diversos outros países na atração desses investimentos de longo prazo.
O volume de aportes dos fundos de private equity e venture capital poderia ser muito maior não fosse a postura que, infelizmente, autoridades fiscais vêm adotando nos últimos anos, com interpretações indevidas sobre temas que afetam o retorno do investidor de maneira muito adversa. Exemplos disso são a dedução de despesas financeiras, o aproveitamento do ágio em compras alavancadas e, mais preocupante, o tratamento do retorno do investidor nos desinvestimentos.
Não se pretende neste artigo discutir cada uma dessas questões, que merecem um artigo próprio, mas vale citá-las, para demonstrar algumas das razões de estarmos perdendo para outras jurisdições os investimentos que poderiam vir para o país.
Quando colocamos esses temas em perspectiva dentro do ciclo de um investimento de private equity e venture capital (algo em torno de cinco anos), percebemos como estamos maltratando o investidor. Com questionamentos fiscais indevidos relativos ao aproveitamento do ágio e à dedução de despesas financeiras que afetam o fluxo de caixa futuro das companhias investidas e, por consequência, o valor que se pode obter em um evento de liquidez, estamos retirando valor do investimento no período de manutenção.
Pior do que isso, no momento do desinvestimento, regras que são interpretadas de maneira uniforme por toda a indústria há mais de 15 anos, que desoneram de tributação o ganho nos investimentos realizados por meio de fundos de investimento em participação, começaram a ser questionadas pelas autoridades fiscais por meio de interpretações indevidas que têm um impacto muito danoso para a atração de novos investimentos.
Temos as ferramentas em nossa jurisdição para atrair o investimento estrangeiro. Nossa lei promete ao investidor um certo regramento mais vantajoso que é considerado quando da decisão de alocação de recursos no Brasil e não em outras jurisdições. Nossa constituição federal promete segurança jurídica como um pilar fundamental, mas as autoridades fiscais muitas vezes retiram aquilo que foi concedido pela lei e a segurança jurídica prometida na constituição com questionamentos indevidos.
Nesse sentido, a mudança de uma regra de cunho processual, com objetivo meramente arrecadatório, por meio de medida provisória com eficácia imediata sobre os processos em curso, antes mesmo que se tenha um amplo debate no processo legislativo, com a participação da sociedade civil, representa uma grave ameaça à segurança jurídica, tornando nosso ambiente jurídico menos propício a geração de negócios e a captação de investimentos.
A reinstituição do voto de qualidade em favor do fisco, nas hipóteses em que ocorra o empate nos julgamentos do CARF, esbarra em dois entraves de grande magnitude.
O primeiro decorre de expressa vedação contida na Constituição Federal no sentido de que matérias de cunho processual não podem ser veiculadas por medidas provisórias. De fato, é intuitivo concluir que a alteração de regras e procedimentos relativos a julgamentos – normas processuais - não podem ser feitas com base em um instrumento de efeitos precários, ou provisórios, e cuja validação dependa da posterior concordância, ou não, do Congresso Nacional. Vale lembrar que este mesmo Congresso, há menos de dois anos, validou exatamente o contrário do se está propondo agora.
A iniciativa carece do elemento urgência, pressuposto constitucional necessário à edição de medidas provisórias, nos termos previstos no artigo 62 da Constituição Federal: na justificativa apresentada na exposição de motivos da Medida Provisória nº 1.160 de 12 de janeiro de 2023 consta, expressamente, como fundamento para sua edição, a necessidade de “reversão do entendimento do tribunal em grandes temas tributários” ocasionados pelo voto de desempate em favor do contribuinte.
Importante que se esclareça, desde já, que o pressuposto constitucional da urgência significa situação em que não se pode contar, sob pena de imediatos e graves prejuízos, com os cem dias de trâmite do regular processo legislativo de urgência. Influenciar nos resultados de um tribunal administrativo não é e nunca será pressuposto de urgência.
A segunda barreira à reinstituição do voto de qualidade como anunciado é o fato de que, havendo dúvida sobre a legitimidade do ato de lançamento, a exigência do tributo não pode ser mantida. O ato administrativo de lançamento é ato vinculado à lei e tem como baliza os limites desta. O argumento no sentido de que a exigência do tributo prevaleceria, mesmo diante do empate no julgamento no CARF, com base numa suposta prevalência do interesse público, já foi rejeitado por cinco Ministros do Supremo Tribunal Federal quando do início do julgamento das ações manejadas contra a instituição do voto de desempate em favor dos contribuintes. Vale destacar, inclusive, que o julgamento se encontra hoje com cinco votos prolatados em favor da constitucionalidade da lei que determinou que, em caso de empate, os julgamentos no CARF sejam definidos em favor dos contribuintes.
O contribuinte é elemento hipossuficiente na relação com o fisco. Na hipótese de o ato de constituição do crédito tributário não gozar de certeza, em especial quando revisado por julgadores que fazem parte do próprio Ministério da Fazenda, este deve ser afastado e o tributo declarado inexigível. Na dúvida interpreta-se em favor do réu/ contribuinte.
Não há dúvida sobre a necessidade de equilíbrio nas contas públicas para a retomada do crescimento sustentável da economia brasileira, mas a medida proposta apenas aumentará a litigiosidade fiscal que já é muito exacerbada, dado que o contribuinte que tiver julgamento desfavorável, por empate, certamente buscará todas as medidas cabíveis no poder judiciário (já assoberbado com um altíssimo número de disputas em curso, muitas delas de natureza tributária) e a esperada arrecadação poderá vir a não se concretizar, ou se concretizará após decisão final no poder judiciário que pode levar de cinco a dez anos ou até mais tempo.
Sem uma gestão responsável das despesas, não há legitimidade para se buscar o aumento da arrecadação, apenando ainda mais o contribuinte brasileiro, que já é duramente impactado pela complexidade e pelos excessos do sistema tributário nacional.
*Piero Minardi é presidente da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP)