Cidades equilibradas exigem como ponto de partida universalização do saneamento básico (Lasca Studio/Estúdio ABC)
Graziella Valenti
Publicado em 6 de janeiro de 2023 às 10h26.
Última atualização em 6 de janeiro de 2023 às 19h25.
Mudar a lógica de como pensar a agenda de investimentos em infraestrutura é fundamental para que possamos avançar no desenvolvimento econômico e social do Brasil. Investimentos em infraestrutura deveriam ser parte de políticas de Estado permanentes, independente dos governos e seus ciclos eleitorais, com planejamento de longo prazo e ampla participação dos entes públicos, investidores privados e da sociedade civil organizada.
De um modo geral, os cidadãos e os usuários afetados não estão, no dia a dia de suas vidas, preocupados se o capital é público ou privado ou se a empresa prestadora do serviço é estatal ou privada na realização dos investimentos, mas sim se a infraestrutura existe ou não e se o serviço é bom ou ruim, dentro de estrutura de custos que reflita um preço adequado. Esperamos que as pessoas estejam também cada vez mais preocupadas com a sustentabilidade da infraestrutura e seus impactos sócio-ambientais.
Com o objetivo de resolver os enormes gargalos de infraestrutura existentes, a origem do capital ou do prestador do serviço (se público ou privado) não deveria ser a prioridade nas escolhas públicas e sociais, mas sim a ampliação do acesso eficiente e sustentável à infraestrutura de qualidade, com o menor custo e no menor tempo possível.
Para que o Brasil chegue até 2033 a padrões minimamente civilizados de acesso ao saneamento pela população, próximos da média dos países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a nova Lei de Saneamento (Lei 14.026/20), aprovada pelo Congresso Nacional no final de junho de 2020, estabeleceu metas e criou uma oportunidade única de parceria entre o setor público e investidores privados. Para tanto, conforme estimativas, serão necessários investimentos da ordem de cerca de R$ 500 bilhões.
Os principais conceitos da nova Lei de Saneamento não foram definidos pelo Governo Bolsonaro, mas sim originalmente baseados em um projeto preparado há mais de 20 anos que serviu de base para formulação do projeto de lei de autoria do Senador Tasso Jereissati, tendo sido gestado com ampla articulação com o Poder Legislativo, órgãos de controle, estados e municípios e com a participação da sociedade civil. Em nenhum momento o texto aprovado fala em obrigação de “privatizar” o saneamento. Apenas define que municípios, empresas públicas e empresas privadas precisam cumprir metas. E para cumprirem metas, precisam demonstrar capacidade econômico-financeira.
Atualmente, mesmo com o ciclo recente de concessões, subconcessões e Parcerias Público Privadas (“PPPs”) com a iniciativa privada, aproximadamente 94% das operações no setor de saneamento continuam sendo estatais no Brasil. As empresas privadas estão hoje presentes em cerca de apenas 10% dos municípios do país. Desde a nova Lei de Saneamento, foram contratados investimentos privados no setor da ordem de mais de R$ 50 bilhões, além do pagamento de outorgas aos estados e municípios de aproximadamente R$ 30 bilhões.
No entanto, os investimentos privados estão apenas começando no setor. Apesar dos resultados já positivos com a aceleração de obras e melhorias na qualidade dos serviços, esse montante de investimentos está longe de ser suficiente e o saneamento no Brasil continua distante das metas da nova Lei, com graves consequências para a saúde pública e de contaminação do meio ambiente.
Segundo o Atlas de Saneamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país tem uma média de aproximadamente 11 mil mortes por ano por doenças infecciosas relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (especialmente no caso de idosos, crianças e mulheres). Apenas cerca de 50% do esgoto é coletado e um pouco mais de 30% tratado no Brasil, expondo as populações a fontes de águas inseguras, o que coloca o país posicionado com um dos piores índices de saneamento do mundo.
Compete à Agência Nacional de Águas (“ANA”), criada em 2000, emitir normas de referência sobre a regulação do saneamento e acompanhar o cumprimento das metas definidas pela Lei em conjunto com a fiscalização das agências reguladoras municipais e estaduais e, quando necessário, dar conhecimento aos órgãos de controle (Ministério Público, Tribunais de Contas, Conselho Nacional de Justiça) sobre o não cumprimento de metas.
Todos têm que cumprir metas. Empresas privadas, empresas públicas, estados e municípios. Todos têm que ter planejamento e demostrar capacidade econômico-financeira de cumprir metas. A ANA não faz distinção entre a origem do capital — se público ou privado. Sua função — técnica — é acompanhar e reportar sobre o cumprimento das metas da Lei.
No caso das empresas privadas, o não cumprimento de metas acarreta multas e, no limite, a perda dos contratos de concessão. No caso das empresas públicas, o não cumprimento de metas deveria também implicar multas e perda de contratos. No caso dos estados, que controlam empresas públicas, e municípios, que são os titulares do poder-dever de garantir o saneamento ao cidadão, o não cumprimento de metas e a incapacidade de financiar os investimentos necessários deveriam acarretar punições com base nas Leis de Improbidade Administrativa e Responsabilidade Fiscal.
Em nenhum país da OCDE os investimentos necessários à universalização do acesso ao saneamento são 100% estatais ou 100% privados. Houve sempre uma combinação de capitais e investimentos públicos e privados para garantir o enorme volume de investimentos necessários, além de compartilhamento de capacidades técnicas de gestão e tecnologia.
O Brasil é claramente um caso de insucesso na opção pela universalização do saneamento predominantemente estatal, o que tem como consequência os índices de saneamento tão precários que temos. Segundo dados estatísticos de montantes de investimentos em infraestrutura em relação ao percentual do PIB (i.e. comparado com o tamanho da nossa economia), o Brasil tem um dos índices mais baixos considerando os países da OCDE, especialmente no setor de saneamento. Isso significa, então, a obrigação de “privatizar” tudo? Não!
Novamente, a Lei de Saneamento e a ANA não falam em nenhum momento em obrigação de “privatizar”. Mas, por óbvio, as metas de investimentos e universalização têm que ser cumpridas por todos (dentro do prazo; meta sem prazo não é meta …). E se o setor público não tiver capacidade financeira e administrativa de dar conta, simultaneamente, de todos os investimentos necessários, a atração de investimentos privados sob a forma de concessões, subconcessões e PPPs é a única maneira de ampliar a oferta e a qualidade dos serviços de infraestrutura.
Contudo, isto depende da superação de barreiras corporativas e político-ideológicas e da garantia de regras claras e perenes para possibilitar políticas de Estado e investimentos públicos e privados no longo-prazo. Qualquer um que seja a favor do saneamento deveria preservar o “pacto social” que a nova Lei de Saneamento representa, sem alterações. Um pacto para que trabalhemos juntos (setor público e setor privado), somando forças e capacidades financeiras e técnicas, para atingirmos em 2033, ou antes, as metas de investimentos e universalização que podem colocar o Brasil perto no nível de saneamento dos países da OCDE, evitando, assim, que continuemos a ter os graves índices de mortalidade por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado e a poluição do meio ambiente.
*Paulo Mattos é presidente do conselho de administração da Iguá Saneamento e CEO da gestora de private equity IG4 Capital