Multidão: companhias passam a depender mais e mais da participação dos investidores de bolsa (5xinc/Thinkstock)
Graziella Valenti
Publicado em 28 de setembro de 2020 às 02h04.
Última atualização em 28 de setembro de 2020 às 10h08.
Talvez poucos tenham se dado conta. Mas é bom que se saiba: a estrutura de propriedade do Brasil está em transformação. Não é de hoje, mas o ritmo é cada vez mais acelerado. Cresce todos os dias a quantidade de companhias que não têm um controlador, um sócio que seja dono de mais de 51% das ações votantes da empresa e que, com isso, consiga imprimir sua vontade sobre os negócios. Muitas têm um sócio, um grupo ou família, de referência, ou seja, com uma fatia relevante, mas não mais majoritária. E muitas também têm as ações totalmente dispersas na bolsa, em um estilo para lá de americano.
Quer uma prova dessa tendência? Nem a Vale tem dono mais e até a tradicional família Feffer abriu mão de ter o controle da Suzano para comprar a Fibria. Mas há muito mais do que isso acontecendo. Para não falar das ofertas públicas iniciais (IPOs) que estão, em sua maioria, trazendo à B3 empresas com essa estrutura (como a Lojas Quero-Quero, que foi pulverizada em mercado), é possível se concentrar nas companhias já listadas.
Por exemplo, das três maiores operações de fusão e aquisição anunciadas na pandemia, duas envolvem apenas empresas “sem dono”. Na briga de 6 bilhões de reais pela Linx, entre Stone e Totvs, nenhuma das companhias tem controlador. A combinação entre Localiza e Unidas, uma transação de 50 bilhões de reais, também é um negócio entre empresas com capital pulverizado na bolsa. Mesmo na compra da Laureate pela Ser Educacional, a expectativa é que a empresa resultante seja uma companhia sem dono.
O Brasil era um país marcado pela presença do controlador, concentradores do capital. Não por acaso a Lei das Sociedades por Ações dá especial atenção à relação entre donos e minoritários. Mas há um aumento da dispersão do capital. É cada vez mais comum fundadores entenderem que uma fatia menor de um bolo maior pode ser mais do que o todo.
Essa modificação de estrutura de propriedade altera profundamente a dinâmica das transações e combinações de negócios. Cada vez mais, as operações dependerão da concordância da maioria dos acionistas. A opinião dos investidores de mercado ganha relevância. Não apenas para esse tema, é certo, mas especialmente para esse.
Nesse ambiente, conselhos de administração e executivos se tornam os grandes donos das chaves das empresas. E precisam de mais e mais fiscalização dos acionistas, desde a aprovação da remuneração e seus incentivos até a reação diante de propostas de combinação de companhias. Das empresas com dono para as de capital pulverizado, os investidores trocam o risco do abuso do controlador pelo risco do encastelamento dos administradores, quando gestores ruins ou medianos recusam modificações ou até mesmo transações que ameacem suas posições.
No hall de novidades que são consequências dessa mudança na estrutura de propriedade está o tal break-up fee, a multa prevista em caso de insucesso das operações de fusão e aquisição. Anotem aí: mais um anglicismo para adotar e, especialmente, ficar atento. Trata-se da penalidade prevista pelo fim de um negócio anunciado, devido à quebra de um combinado. Nas companhias sem dono majoritário, os break-up fees tentam desincentivar a concorrência a entrar na briga por um ativo, pois implicam um custo extra. Nas empresas com dono, o objetivo desse tipo de cláusula é bem mais simplista: evitar a desistência do negócio. Por isso, tinham menor importância e, muitas vezes, sequer chegavam a ser conhecidos, embora já existissem.
Essas multas também têm uma função secundária: cobrir custos ligados ao trabalho para uma fusão que, de repente, possa ser cancelada. A Embraer, por exemplo, foi bastante criticada por ter estabelecido junto com a Boeing uma penalidade de apenas 75 milhões de dólares, para uma transação de 5,2 bilhões de dólares. A companhia brasileira teve um custo superior a 500 milhões de reais para se preparar para a transação, cancelada em sua data final. Agora, as empresas brasileira e americana disputam em arbitragem compensações pelo fim da operação.
Todas as três transações anunciadas no mundo pós-pandemia têm a tal cláusula chamada de break-up fee. As multas estão previstas tanto no acordo entre Stone e os acionistas fundadores da Linx, como na operação entre a Ser Educacional e a Laureate e ainda entre a Localiza e a Unidas.
Entre todas, a da Stone segue a mais restritiva e severa. Por isso, a mais criticada. A companhia inicialmente havia estabelecido uma multa de 605 milhões de reais caso a Linx decidisse assinar um acordo com outra companhia ou se ela própria desistisse da operação — 10% do valor da oferta inicial, de 6,04 bilhões de reais. Depois, esse montante foi reduzido para 453 milhões de reais. Agora, o acordo prevê um pagamento de 112 milhões à Stone, caso a assembleia da Linx rejeite a oferta. E, se após a negativa qualquer outro negócio for selado em prazo de doze meses, o depósito precisa ser completado até o total.
Na operação entre Ser e Laureate, o modelo usado é diverso e, por isso, a previsão da multa também. A Laureate tem direito de receber outras propostas ao longo dos próximos 30 dias. Se nesse período decidir vender para um terceiro, terá de pagar 180 milhões de reais à Ser, que garantiu preferência na compra.
Por fim, em Unidas e Localiza — ambas, companhias com acionistas fundadores relevantes, mas sem maioria absoluta do capital — há previsão de uma multa de 10% do valor da fusão, que é de 50 bilhões de reais, ou seja, 500 milhões de reais. Ficou combinado que caso alguma das assembleias não aprove a incorporação necessária, a multa poderá ser cobrada pela outra parte. Contudo, apenas se ficar provada a existência de dolo para influenciar o resultado do encontro. Dessa forma, os acionistas de mercado não precisam se sentir pressionados a consentir com o negócio. O pagamento também é devido se alguém desistir ou não cumprir as condições precedentes.
A crítica à Stone é que, da forma como foi estabelecido o contrato, a Linx sofrerá uma punição se os acionistas de bolsa não aceitarem a proposta, independentemente do contexto. E isso dentro de um quadro que inclui compromisso de voto a favor dos acionistas fundadores, que somam 15% do capital, e o pagamento a eles de uma indenização de 185 milhões de reais que garanta a não competição por cinco anos — o que equivale a um adicional de 20% sobre o que receberão com a venda de suas posições. O quadro não foi considerado bonito pelo mercado. Ainda que os acionistas da Linx estejam animados com a oferta da Stone, queriam mais é ver o circo da concorrência pegar fogo.
O tema vai ter que deixar de ser tratado pelos investidores como a letrinha miúda do contrato. E as companhias serão cobradas a serem cada vez mais claras e transparentes a respeito dessas condições.