"Faca: Reflexões sobre um atentado" está disponível nas livrarias (Thomas Lohnes/Getty Images)
Diretor de redação da Exame
Publicado em 16 de abril de 2024 às 11h19.
Última atualização em 16 de abril de 2024 às 12h33.
Faz 35 anos que o escritor britânico Salman Rushdie foi alvo de uma fatwa do Aitolá Khomeini o condenando à morte por blasfêmia. Rushdie havia publicado em 1988 o romance Os Versos Satânicos, uma ficção insipirada na vida do profeta Maomé que enfureceu o regime iraniano. Faz dois anos que Rushdie foi esfaqueado dez vezes enquanto participava de um evento em Nova York, ataque que, entre outras sequelas, tirou a visão de um olho.
Pois Rushdie está de volta, com um livro emblemático pelo conteúdo, e pelo timing. "Knife: Meditations After an Attempted Murder", lançado hoje em todo o mundo e editado no Brasil pela Companhia das Letras com o título "Faca: Reflexões sobre um atentado". É um relato pessoal de Rushdie sobre o ataque sofrido e como impacta sua visão de mundo. Chega às livrarias no momento mais quente das tensões entre Irã e Israel. A mão dura do regime iraniano pouco mudou em 35 anos. E o mundo segue tão complexo quanto em 1989.
Como o conflito entre Irã e Israel pode se tornar um barril de pólvora no mercadoAntes do lançamento de "Knife", Rushdie concedeu uma entrevista ao programa 60 Minutes em que falou pela primeira vez sobre o ataque. "Às vezes imaginei meu assassino aparecendo em algum fórum público e vindo atrás de mim desta maneira. Meu primeiro pensamento quando vi essa forma assassina correndo em minha direção foi: 'então, é você'", disse.
O evento em que Rushdie foi atacado debatia justamente a ameaça a escritores. A sorte do britânico, segundo seu médico lhe confidenciou, foi que o agressor "não tinha a menor ideia de como matar uma pessoa com uma faca". Num evento de lançamento do livro quinta-feira passada em Nova York, relatado pelo The New York Times, Rushdie contou que tentou reestrear escrevendo uma nova ficção. Mas que o ataque não saía de seus pensamentos. Decidiu, então, enfrentar "o elefante na sala".
Em "Knife", o autor, hoje aos 76 anos, fala sobre o ataque sem meias palavras. Uma resenha publicada nesta terça pelo NYT relembra uma frase do também escritor Roy Blount Jr., de que é preciso às vezes deixar o livro de lado para "limpar o suor". Rushdie adverte o leitor que não espere o menor sinal de remorso. "Eu sou orgulhoso do trabalho que fiz, e isso inclui certamente Os Versos Satânicos", escreve, numa tradução livre do texto original em inglês.
Sobre o ataque, conta que "ainda posso ver o momento em câmera lenta. Meus olhos seguem o homem que corre em meio à audiência e se aproxima de mim". Destaque que nunca deixou de olhar o agressor nos olhos, tanto que "não há lesões nas minhas costas".
Nos conflitos do Oriente Médio, a 'ordem do caos' favorece o IrãEnsanguentado, com as pernas para o alto como primeiro socorro, se sentiu humilhado. "Na presença de tantas lesões, a privacidade de seu corpo deixa de existir", escreve. "E havia a facada no olho. Essa foi a lesão mais cruel, e era profunda. A lâmina invadiu até o nervo óptico, o que significava que não havia possibilidade de salvar a visão. Já era".
"Knife" é um livro recheado de citações a escritores como Ítalo Calvino e William Shakespeare, a cineastas como Roman Polanski e Georges Méliès e até a séries como Law & Order, que mostram que a vivacidade de Rushdie segue onde sempre esteve.
Mas é, acima de tudo, um livro duro para tempos ásperos, como no título do grande livro de Mario Vargas Llosa. Llosa tratava com humor sobre tempos ditatoriais que seguem atuais. Rushdie afirma que se pergunta com frequência "por que agora, depois de todos esses anos?". "Com certeza o mundo avançou, e o assunto está encerrado. Ainda assim aqui, se aproximando rapidamente, havia um viajante do tempo, um fantasma assassino do passado".
Enquanto Rushdie segue escrevendo e bebendo coqueteis em eventos como na última quinta-feira, o regime iraniano segue tentando calar seus críticos, como muitos regimes mundo afora. A disputa de narrativas sobre que liberdade queremos está no auge. O número de conflitos armados, também -- são 55 mundo afora neste momento. "Knife" não poderia chegar em melhor hora.