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Em documentário, Oliver Stone traz retrato didático e romantizado de Lula

Apesar de montagem eletrizante, como filme, Lula é um tanto básico, para quem não conhece a trajetória do ex-presidente; não espere imparcialidade: “admiro esse homem profundamente”, diz o diretor

Documentário do diretor norte-americano fez sua estreia mundial nas Sessões Especiais do 77º Festival de Cannes (Documentário Lula/Divulgação)

Documentário do diretor norte-americano fez sua estreia mundial nas Sessões Especiais do 77º Festival de Cannes (Documentário Lula/Divulgação)

Publicado em 25 de maio de 2024 às 10h15.

Última atualização em 27 de maio de 2024 às 17h55.

CANNES – A política sempre fez parte da carreira de Oliver Stone, até em seus filmes de ficção. Entre seus primeiros longas como diretor estão Salvador (1986), Platoon (1987) e Nascido em 4 de Julho (1989), todos sobre intervenções dos Estados Unidos em El Salvador e no Vietnã.

Stone também vem fazendo documentários sobre líderes mundiais muitas vezes controversos, como Fidel Castro (Comandante, de 2003), Hugo Chávez (Mi Amigo Hugo, de 2014) e Vladimir Putin (The Putin Interviews, de 2017).

Em Ao Sul da Fronteira (2009), ele viajou pela América Latina visitando os presidentes da cha

mada Onda Rosa, de governos à esquerda, incluindo Evo Morales na Bolívia, Cristina Kirchner na Argentina e Lula no Brasil.

Agora, em parceria com Rob Wilson, Stone lançou um documentário dedicado ao presidente brasileiro. Lula, que fez sua estreia mundial nas Sessões Especiais do 77º Festival de Cannes, no último dia 19, foca na Operação Lava-Jato, na prisão, na soltura e eleição do presidente.

Como filme, Lula é bem básico e didático. Um filme para estrangeiros e para quem não conhece a história entender a trajetória do presidente. Mas com um claro viés positivo e romantizado, sobre Lula – e, em certo grau, ingênuo em relação ao Brasil.

O diretor não esconde sua simpatia: “Este filme é sobre uma pessoa muito especial no mundo hoje”, disse Stone antes da sessão oficial.

Como se trata de um documentário e não de jornalismo, não é um problema em si. Mas é um disclaimer importante sobre o que o espectador vai encontrar nas telas.

“Eu acho um líder único, admiro esse homem profundamente. Sei que muitas pessoas das classes ricas o odeiam, sei que alguns de vocês estão aqui hoje, mas por favor não odeiem demais porque ele tem uma alma maravilhosa.”

No documentário, Stone tem grande interesse na relação de Lula com os presidentes George W. Bush e Barack Obama e ouve que o trabalho foi mais produtivo com Bush, conservador, do que com Obama, progressista.

Durante o governo de Barack Obama, o Wikileaks revelou que diversos brasileiros, inclusive a presidente Dilma Rousseff, foram espionados.

Além de Lula, os diretores falaram com os advogados do presidente na época da Lava-Jato, Cristiano Zanin e Valeska Martins, o hacker Walter Delgatti Neto, que expôs ligações entre o juiz Sergio Moro e promotores da força-tarefa colocando em dúvida a imparcialidade da investigação, e o jornalista Glenn Greenwald, que publicou o conteúdo das chamadas que ficaram conhecidas como Vaza-Jato.

O documentário defende que o presidente Lula foi alvo de “lawfare”, o uso de mecanismos e instituições jurídicos para afastar adversários políticos. Depois de atuar na Lava-Jato e mandar prender Lula, Sergio Moro tornou-se Ministro da Justiça do presidente Jair Bolsonaro.

Mesmo sem nada de muito novo, o diretor demonstra seu talento na montagem eletrizante do dia da eleição, que deixa o espectador no suspense mesmo sabendo o resultado.

No dia seguinte à exibição, Oliver Stone e Rob Wilson participaram de mesas-redondas com jornalistas do mundo todo. O INSIGHT estava presente em uma delas – que atraiu repórteres da Espanha, Itália, Arábia Saudita, Dinamarca, Portugal, México e Inglaterra, demonstrando o apelo do diretor e do personagem.

A seguir, alguns trechos da entrevista:

Você está tendo uma segunda carreira conhecendo figuras mundiais?

Stone: Segunda carreira? Não. Conheci o Lula em 2009 com Ao Sul da Fronteira e fiz Comandante em 2002. E fiz filmes de ficção ao longo desse período, como Snowden, de 2016. Mas, à medida que envelheço, estou mais interessado em realidade. Criar um filme de ficção inteiro é muito artificial. Não é que seja ruim, é interessante. Mas você eventualmente vive em um mundo de artifícios. Eu quero sair para o mundo real e conversar com pessoas que estão lidando com a realidade, como o Lula.

Por que gosta de Lula?

Stone: Acho que ele é o líder político mais voltado para o povo que conheço. Sinceramente, ele é a pessoa da classe mais baixa que eu já conheci, porque nasceu naquele barraco que aparece no filme. Nunca teve moleza. O pai dele foi embora e, quando a mãe se mudou para São Paulo, descobriu que ele tinha outra família.

Lula permaneceu humilde. Passei alguns dias com ele e não vi nenhum sinal da riqueza que comentam, da corrupção. Ele é um homem muito modesto. Sempre está totalmente presente no momento. Qualquer pessoa que passe um tempo com ele gosta dele. E ele é engraçado também.

Wilson: Você tem uma boa noção de quem ele é no filme, como é um ser humano caloroso. Nesse tipo de filme, fica evidente quando alguém é autêntico ou inautêntico e para mim ele é especial. Sempre foi meu personagem favorito dos presidentes de Ao Sul da Fronteira.

Em Ao Sul da Fronteira, vemos a ascensão dos partidos de esquerda. E agora o Lula é exceção na América do Sul. Na Argentina, está o Milei.

Stone: Os Estados Unidos têm muito a ver com isso. Os documentos de Edward Snowden nos dizem muito mais do que vocês prestam atenção. É preciso olhar para o geral. No Egito, por exemplo, Morsi foi destituído do cargo. Ele estava mudando as coisas no Egito e foi removido pelos americanos.

No Brasil, os Estados Unidos estavam espionando todo mundo, incluindo a presidente Dilma. O Obama pediu desculpas para a Angela Merkel (que também foi espionada), mas para a Dilma, não.

Eu odeio Obama. Ele me soa falso. Lula é real e age com autenticidade. Pelo menos é o que meu lado diretor me diz. Claro que é subjetivo.

Existe uma possibilidade muito real de Donald Trump voltar à presidência dos Estados Unidos. Como você acha que isso vai funcionar com a América Latina?

Stone: Trump apoia Bolsonaro, certo? Então, se ele entrar, acho que haverá alguns golpes de estado fascistas por ali. Bolsonaro gosta da ditadura e fica falando em golpe de Estado. É tão bizarro. Não sei se o povo brasileiro irá apoiá-lo. 49% o apoiaram. Eles são malucos? Quando você coloca a classe trabalhadora de um país contra a classe trabalhadora de um país, você tem problemas. Me parece que foi isso que aconteceu no Brasil.

Wilson: Também temos isso nos EUA. Esse é o melhor truque: fazer com que as pessoas lutem por migalhas sem saber que, se fizessem como Lula faz, a maré alta ergueria todos os navios.

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