Eletrobras: desafio de conduzir empresa avaliada em R$ 100 bi tem de apresentar remuneração condizente (Nadia Sussman/Bloomberg)
Karina Souza
Publicado em 28 de novembro de 2022 às 16h59.
A Eletrobras quer tornar mais atrativa a oportunidade de trabalhar numa gigante de R$ 100 bilhões recém-privatizada. No caminho para tornar esse plano uma realidade, a empresa divulgou uma proposta de seus administradores na semana passada, em que aumenta consideravelmente os patamares de ganhos de executivos que integram a companhia. Foi este fato (e não a primeira frase que abre esta matéria) o que ganhou a maior repercussão ao longo da semana. Houve um barulho considerável de que a empresa estava sendo "agressiva demais" no que pretendia pagar.
Mas a história não contada é a de que o aumento dos salários proposto pela empresa não a coloca em um patamar nada distante de suas pares no setor elétrico, ainda que seja, ela sozinha, a maior empresa do setor na bolsa hoje. A preocupação com os valores absolutos e as consequentes variações na casa dos três dígitos, isoladamente, denotam como o Brasil ainda está muito distante de ter maturidade para o assunto. E não se trata de uma discussão acessória, mas de um ponto vital para a governança de uma companhia. O pacote de remuneração, seus detalhes e divisões são a força motriz do alinhamento da administração com a geração de valor para o negócio e pilar essencial da cultura de qualquer empresa.
No caso de uma companhia como a Eletrobras, que precisa ainda criar todo um novo modelo de gestão, uma vez que não pertence mais à União Federal (ainda que o Tesouro continue um relevante acionista), a remuneração é sim um tema urgente e central. E, para ajudar a definir as novas cifras submetidas aos acionistas, a empresa contou com um estudo realizado pela consultoria Korn Ferry, como aponta na proposta.
Administrar uma empresa de R$ 100 bilhões de valor de mercado, recém-privatizada, coloca os desafios impostos às lideranças em um patamar significativamente superior ao de outras no mercado. São pontos reconhecidos pela administração, inclusive, na proposta divulgada durante a última semana. O documento até mesmo enumera pontualmente uma série deles: a necessidade de enfrentar o novo modelo de comercialização de energia, a venda de ações de coligadas, além da modernização do parque gerador e de transmissão são apenas alguns. Do lado da cultura, há todo um espírito de empresa privada a ser incutido nos funcionários. Além disso, mais pragmático, há o fator óbvio de defasagem de salários. De 2015 a 2022, não houve reajuste por ordem da Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (a SEST).
De olho em todos esses desafios, a Eletrobras propõe um salário de R$ 35,9 milhões como compensação total somada de diretoria executiva, conselho fiscal e de administração. Hoje, vale lembrar, essa cifra é de pouco mais de R$ 15 milhões.
Para entender em uma perspectiva mais ampla como a nova remuneração proposta se encaixaria dentro desses desafios, sob um olhar de remuneração aplicada no setor, o EXAME IN analisou os dados de salários que constam nas versões mais atualizadas dos relatórios de referência de dez empresas abertas do segmento em que a ex-estatal está incluída (AES, CPFL Energia, Engie, Equatorial, Energisa, Neoenergia, Ômega, EDP Brasil, Copel e Cemig). Não há uma comparação 100% simétrica, é verdade, mas trata-se de um esforço que tem como objetivo entender se o que está sendo proposto desviaria significativamente do que é pago hoje em empresas do setor elétrico.
Partindo para a comparação propriamente dita, o valor novo se aproxima bastante do pago por CPFL Energia, Omega e Engie aos executivos. Os montantes de remuneração total ficam em R$ 30,1 milhões, R$ 29,3 milhões e R$ 26,5 milhões. A título de curiosidade, a maior remuneração entre as empresas analisadas está na Neoenergia, que soma um pagamento anual de R$ 67,2 milhões. As duas estatais da lista (Cemig e Copel) têm pagamentos anuais próximos aos praticados até então na Eletrobras, com R$ 16,7 milhões e R$ 8,3 milhões, respectivamente.
Numa comparação menos direta, com as maiores empresas da B3 — Vale e Petrobras — é possível ver que o pacote de remuneração é consideravelmente menor do que o das gigantes, avaliadas a mais de R$ 350 bilhões cada. Na mineradora, só a diretoria executiva recebe R$ 237 milhões, enquanto, na petroleira, o valor somente para a categoria é de R$ 37 milhões. Na Eletrobras, o montante que envolve salários de presidentes e de VPs deve somar R$ 30,5 milhões. Dentro da ex-estatal, a proposta é de aumentos significativos tanto para o presidente (que deixa de ganhar R$ 50 mil para ir aos R$ 300 mil mensais) e para os vice-presidentes, que também mais do que dobram o salário, ainda que não em igual proporção — passam de R$ 49 mil para R$ 110 mil.
Para referência, o salário fixo de diretores estatutários, de acordo com uma análise do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) para a 8ª pesquisa "Remuneração dos Administradores", é de R$ 1,3 milhão por ano, considerando as empresas do novo mercado. Em relação aos conselheiros, o montante é de R$ 470,5 mil. Ambos os valores ficaram praticamente estáveis na comparação com 2018, o ano anterior usado para referência na pesquisa.
As comparações que o leitor encontrou acima com a remuneração da Eletrobras e de uma média de salários no Novo Mercado não vêm à toa. A companhia já sinalizou ao mercado que está conduzindo estudos a fim de migrar para o mais alto nível de governança na B3. No comunicado em que deixa explícita a condução de estudos para tornar esse 'sonho' uma realidade, há mais um fato curioso, como o de agora: um bônus de 10% para a conversão de ações PNB (ELET6) em ON (ELET3), algo inédito no mercado de capitais brasileiro.
Voltando à proposta de salários na Eletrobras, a proposta da empresa comandada por Wilson Ferreira Jr., ainda prevê incentivos de curto e longo prazo, formados por planos de opções de compras de ações e por pacotes de ações restritas, cujos limites são de até 1,1% do capital social da companhia e de até 0,2%, respectivamente. Para uma fonte ouvida pelo EXAME IN, não há motivos para preocupação em relação ao programa de opções, uma vez que há uma visão de que critérios adequados e coerentes para que esses patamares (lembrando que são os máximos previstos) sejam atingidos.
Isso sem falar que, mais uma vez, não se trata de algo descolado do mercado. Ao olhar pares do setor, não é difícil encontrar companhias que também apresentem planos de opções de compra de ações. No caso da Equatorial, eles não podem exceder um limite até bem maior, de 3,18% do capital social da companhia. EDP e Omega estabelecem o parâmetro de 1% do capital social, cada, e, a Energia, de no máximo 0,5%. Nas estatais, os pacotes são inexistentes e há, ainda, quem prefira estabelecer programas de remuneração baseados em phantom shares.
Por último, é necessário lembrar o quão comuns os planos de opções de compra são em casos de reestruturações profundas — e, claro, privatizações. A diretoria da Via, por exemplo, quando aceitou assumir o cargo após a gestão do Casino, negociou um pacote de 4% das ações da companhia (você lê a reportagem completa sobre esse caso na edição de Julho de 2020 da Revista Exame, aqui).
O caso da privatização indireta da BR Distribuidora, hoje Vibra Energia, é absolutamente emblemático e uma importante comparação para a Eletrobras. A Petrobras pulverizou o controle da companhia de distribuição de combustíveis na bolsa em 2019. Naquele ano, pagou aos executivos pouco mais de R$ 11 milhões. Em 2021, o valor pago foi de R$ 39 milhões e o montante aprovado para 2022 (ainda não se sabe quanto será executado, de fato) beira os R$ 68 milhões.
A comparação com a Vibra não vem ao acaso. A companhia viveu e, em alguma medida, ainda vive o desafio de criar uma identidade própria após a privatização. Não se trata de tarefa fácil, mas um esforço colossal — o que torna vital as escolhas de quem serão os líderes desse processo. Para coroar, é onde estava Wilson Ferreira Jr. Depois de preparar a Eletrobras para a privatização, entre 2016 e janeiro de 2021, a demora no processo de venda da empresa acabou levando Wilson a aceitar o cargo de CEO na BR Distribuidora. Por um ano e meio, ele conduziu a transformação para Vibra, uma companhia focada em transição energética e não mais apenas na pura e simples distribuição de combustíveis como era vista a BR. Para o futuro da governança da ex-estatal, seria bom olhar o caso da Vibra, dizem algumas fontes de mercado.
Wilson Ferreira tem respeito do mercado e também é um líder forte por onde passa. Não por acaso, para ter profissionais capazes de trocar experiência realmente de igual para igual, a Vibra constriu o que os investidores resolveram apelidar de conselho de administração estelar: com nomes como Nildemar Secches, Walter Schalka e Sérgio Rial, como chairman.
A Eletrobras ainda carece de um colegiado que consiga realmente ter representantes que consigam colaborar com Wilson Ferreira. Essa é uma interpretação que pode ser obtida a partir de uma análise da proposta da administração. Contudo, não é com isso que o mercado se preocupa, mas sim com números absolutos que não dizem nada sozinhos.
Mais do que refletir sobre a possibilidade de os valores representarem “muito” ou “pouco”, é necessário analisar a quais métricas estão relacionadas. É essa a visão de Fábio Coelho, presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais e professor da FGV, como explica em uma live feita pelo IBGC neste ano. A remuneção é essencial para compreender como os administradores estão incentivados e se estão devidamente alinhados aos interesses da companhia de curto e longo prazo.
Coelho cita o exemplo da remuneração de Tim Cook, CEO da Apple, que foi alvo de questionamentos depois da divulgação que o executivo recebia um salário de US$ 3 milhões, somado a bônus de US$ 12 milhões. No fim do ano, a diferença entre o CEO e a média de colaboradores era de mais de 1,5 mil vezes. “As questões sobre o alinhamento desses valores com metas de longo prazo apareceram durante o ano”, diz o executivo, no vídeo.
Definir esses critérios, entretanto, passa longe de ser uma missão fácil. Se atrelar uma remuneração variável ao curto prazo pode acarretar consequências de tentar reduzir custos para trazer balanços — e bônus — melhores, o longo prazo ainda apresenta um desafio enorme de previsibilidade, especialmente depois de dois anos de pandemia. Enquanto isso, investidores seguem cada vez mais ávidos por entender ‘os porquês’ de mudanças relacionadas à governança corporativa de empresas abertas.
No Brasil, o tema "remuneração" só passou a ser debatido com maior transparência há pouco mais de uma década. Somente a partir de 2009, quando a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tornou obrigatória a primeira divulgação do Formulário de Referência é que o assunto ganhou notoriedade. Ainda assim, durante muitos anos, importantes empresas, incluindo a Vale, não davam abertura de seus dados mais detalhados, com base em uma decisão liminar obtida na Justiça, que alegava preservação da segurança dos administradores.
Apesar de o assunto ter conquistado transparência, ainda existem deficiências. Primeiro, o Brasil não abre a remuneração por nome de diretor e conselheiro. A informação sobre o CEO pode ser inferida, mas não é dada. As companhias divulgam os valores máximo, mínimo e médio dos pagamentos a executivos e conselheiros, separados por órgão.
Também há falha na falta de interesse do mercado: está distante de ser um assunto amplamente debatido entre os investidores antes de votarem. Um sintoma de como a remuneração é pouco discutida é a quantidade abstenções de investidores estrangeiros nesse tema, nas assembleias, sob alegação de falta de informações suficientes. Motivo: o que os acionistas aprovam é o pacote global, e não o detalhamento. A forma como o montante geral é dividido e como são estabelecidos bônus e planos de opções fica ao cargo do conselho de administração. A praxe da legislação societária é que o conselho proponha o pacote e as empresas aprovem em assembleia geral ordinária (a que ocorre uma vez por ano, até o fim de abril, para aprovar o balanço do exercício anterior, eleger conselho e dar o aval à remuneração global).
Contudo, um fator tem trazido mais luz a esse debate: o aumento do número de companhias brasileiras que não possuem a figura de um controlador majoritário, ou seja, que o capital está disperso no mercado. Nesses casos, a atenção deveria ser redobrada, pois o pacote de compensação anual é proposto e aprovado (seu detalhamento) pelos próprios beneficiários. A administração propõe, aprova e executa. Cabe aos acionistas apenas o aval panorâmico. Daí, a importância de um maior engajamento dos investidores, para o bom funcionamento do mercado.
Para apontar como o Brasil está atrasado nessa temática, vale lembrar que a Sarbanes-Oxley, lei que melhorou a qualidade dos relatórios anuais das empresas americanas, é de 2002. A nova lei veio na esteira dos escândalos da Enron e WorldCom, empresas que foram à falência após a revelação de fraude contábil. O diagnóstico, de ambos os casos (e mais diversos outros de menor porte da mesma época) é que os executivos foram envenenados pela ganância e tentação de prejudicar a qualidade contábil em troca da valorização das ações no mercado, com a intenção de ganharem mais com seus planos de opções.
No mar de dúvidas, o que fica clara é a intenção de a Eletrobras se manter competitiva para superar os desafios que vê à frente. Assumir uma estatal tão pouco tempo depois de ser privatizada e tirar ‘os esqueletos do armário’ vai exigir capacidade de sobra de execução. A companhia foi procurada para comentar as questões relacionadas à proposta de aumento de salários para esta reportagem, mas preferiu não se posicionar. Ainda assim, a mensagem está clara, destacada graficamente na proposta submetida aos acionistas: "a atual estrutura remuneratória precisa ser imediatamente revisada, não sendo possível sequer aguardar a Assembleia Geral Ordinária de 2023, sob pena de graves prejuízos associados à perda de talentos, à incapacidade de atração de novos profissionais e aos potenciais atrasos nos projetos e iniciativas associados às alavancas de valor da desestatização".