Cervejas: império com marcas Stella Artois, Becks, Budweiser, Corona, entre outras além das líderes brasileiras, é investimento direto do trio (AB Inbev/Divulgação)
Referências do mundo corporativo, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira ficaram ainda mais sob os holofotes após a Americanas (AMER3), a primeira grande empresa investida pelo trio, descobrir um rombo de R$ 20 bilhões e entrar em recuperação judicial. Não só o trio ou sua empresa de investimentos, a 3G Capital, mas também as empresas investidas ganharam atenção redobrada. Mas, afinal, o que é dos três sócios e quais empresas são do portfólio 3G?
Sim, é preciso separar o Pelé e o Edson, como gostava de brincar o rei do futebol ao falar de si mesmo. E eles já se encarregaram de fazer isso. Um grupo de profissionais de relações públicas foi contratado para ligar aos jornalistas e reforçar a importância dessa separação. O contato é quase misterioso e nada é enviado por escrito. Esses profissionais ligam e então explicam que é preciso diferenciar o que é da 3G, que conta com recursos de terceiros, e o que é dos três, diretamente. O maior investimento dos três, sem passar pela gestora 3G, é na AB Inbev, que vale aproximadamente US$ 120 bilhões na Nyse. O patrimônio dos sócios tornou-se, mais do que alvo de curiosidade, foco de credores e investidores que querem recuperar seus prejuízos causados pelo escândalo na varejista.
O trio se uniu ainda nos anos 70, no antigo banco Garantia, fundado por Lemann. Foi lá que começaram a investir em companhias. O primeiro passo foi justamente com a Americanas, e onde iniciaram o desenvolvimento da cultura 3G. Hoje, os três são donos de aproximadamente 31% da varejista, com investimentos em nome de cada um. O valor dessa participação hoje não chega a R$ 500 milhões. Antes do escândalo estava em quase R$ 3,5 bilhões. Mesmo antes do anúncio das “inconsistências contábeis”, a empresa havia perdido grande parte de seu valor de mercado, mais de 70% ao longo de 2022.
Até o fim de 2021, os sócios eram majoritários no poder de voto da empresa. Mas como Lojas Americanas e B2W foram unificadas e a sociedade resultante aderiu ao Novo Mercado da B3, a posição de controle do trio foi diluída na conversação de preferenciais em ordinárias. Os três, porém, ainda indicam a maioria do conselho.
Em 1989, os três deram o primeiro passo para o que resultaria na criação da maior cervejaria do mundo. Compraram, no Rio de Janeiro, a antiga Brahma, que disputava a liderança do mercado com a Antarctica. Anos depois, em 1999, em um movimento ousado, promoveram a fusão das concorrentes, criando a Ambev (ABV3).
Ali a ideologia do sonho grande começava, com olhar extremamente focado em eficiência, redução de custos e crescimento acelerado. Isso ficou especialmente evidente em 2004, quando a Ambev se uniu com a belga Interbrew, após diversas compras nos países vizinhos. Com isso, colocou os negócios do trio para fora da América Latina. Quatro anos depois, veio a fusão com a americana Budweiser, nascia a AB InBev, maior cervejaria do mundo e da qual Lemann, Telles e Sicupira são donos de 33,47%. Ainda mais tarde, veio também a aquisição da SAB Miller. Nesse império, possuem o equivalente a US$ 40 bilhões em ações.
Hoje, a base acionária da Ambev não tem presença direta do trio, mas, sim, de sua controladora, a AB InBev, que detém 61,8%.
Desses dois negócios que controlavam como investidores diretos, Sicupira era responsável pela Americanas, na qual inclusive possui assento no conselho de administração, e ao seu lado está Paulo Lemann, filho de Jorge Paulo. Já Telles é o guardião da AB Inbev. Ambos têm cerca de 10 anos a menos que o fundador do Garantia, que tem hoje 83 anos.
A varejista e a cervejaria são as empresas em que o trio é investidor sem participação da 3G. A gestora criada em 2004, em paralelo com a união de Ambev e Interbrew, tem, no entanto, alguns grandes nomes do mercado de consumo no seu portfólio e marca a parceria do trio com aquele que é um dos empresários mais conhecidos no mundo Warren Buffett.
Com a 3G Capital, Lemann, Telles e Sicupira são sócios de Buffett na gigante de alimentos Kraft Heinz desde 2013, quando a gestora do trio e a gestora do megainvestidor americano, a Berkshire, arremataram por US$ 28 bilhões a Heinz, de molhos e condimentos. Dois anos mais tarde, a companhia se uniu à Kraft, com quem concorria, se tornando a Kraft Heinz. A 3G já deteve mais de 20% do capital social, mas depois de vendas de blocos de ações no mercado, incluindo um feito em maio de 2022, passou a ter 8% de participação. A companhia total é avaliada em pouco menos de US$ 50 bilhões em Nova York.
Mas a companhia não foi a primeira investida da 3G Capital. Em 2010, a gestora comprou a rede de fast-food Burger King, por US$ 4 bilhões. Hoje a rede está sob o guarda-chuva da Restaurant Brands International (RBI), que também é dona da rede de cafeterias Tim Hortons. A 3G detém 29,3% do capital votante da RBI, segundo uma convocatória de assembleia publicada pela empresa na Security Exchange Commission (SEC), que é a CVM dos Estados Unidos. No Brasil, a RBI tem contrato com a Zamp, que é a master franqueadora das bandeiras Burger King e Popeyes, e uma participação da ordem 5%.
Por fim, a 3G Capital também é investidora da fabricante de cortinas e persianas de escritório Hunter Douglas, aquisição mais recente da gestora. A compra foi realizada no fim de 2021, fazendo a gestora deter 75% da empresa, que foi avaliada em US$ 7,1 bilhões. A transação, em setor tão pouco evidente, foi alvo de comentários no universo corporativo, que se habituou a ver o grupo investir em grandes marcas de consumo.
Não é conhecido quanto do patrimônio da 3G Capital pertence ao trio ou mesmo quanto os fundos da casa já distribuíram para resgates. Também não se conhece quanto os sócios possuem em investimentos fora da gestora ou mesmo em bens. A fortuna listada pela Forbes, por exemplo, reflete praticamente apenas a posição em AB Inbev.
Desde que o problema na Americanas começou, os sócios e os bancos credores entraram em uma dura batalha que deixou a companhia exposta à troca de medidas judiciais e acusações mútuas. As instituições financeiras, com mais de R$ 20 bilhões em créditos a receber dentro do processo de recuperação da varejista, têm questionado o isolamento do trio da 3G e a demora dos sócios em assumir a frente da situação para resgatar o negócio.
Houve uma proposta inicial de um aporte de R$ 6 bilhões por eles, combinada a uma conversão de dívida em ações por parte dos credores. A ideia foi rechaçada com veemência desde a largada, uma vez que o valor foi considerado muito baixo. Depois disso, o diálogo em torno de montantes ficou estanque e medidas de governança tanto do processo de recuperação judicial como da empresa passaram a ser exigidas pelos credores. Exemplo disso foi o afastamento de seis diretores de longa data da empresa. A demora nessa medida, que só veio 23 dias após o problema se tornar público gerou grande incômodo e desconfiança, inclusive, sobre a integridade dos documentos da companhia, que passa por uma investigação. Há forte suspeita de fraude no caso.
É por isso que diversos credores, entre eles Bradesco e Santander, já adotaram medidas para produção de provas, com objetivo de processar administradores e controladores a fim de que arquem com os prejuízos. Separar a 3G e os sócios, é essencial para lidar com esse cenário.
A negociação seguirá aos cuidados do Rothschild e os três não vão tomar a dianteira do diálogo pessoalmente. A ideia é que alguns encontros e vistas mais estratégicos possam ser feitos pelos sócios, mas nada indica, até agora, que eles participarão de uma reunião com todos os credores.
O EXAME IN apurou que parte da demora na evolução das negociações está ligado a um debate – que ninguém sabe se pacífico ou mais acalorado – entre os três a respeito de quanto cada um deve colocar para lidar com a situação. Sicupira sempre esteve à frente da Americanas. Ainda não há um novo valor para ser sinalizado aos credores ou um plano mais concreto para ser apresentado.
De mais urgente, o que está em andamento é a possibilidade de os três fazerem um empréstimo para colocar, no mínimo, R$ 1 bilhão em dinheiro novo dentro da varejista, para que consiga manter o negócio rodando — essencial para conter uma deterioração da empresa. O conselho de administração aprovou a realização de uma operação na modalidade DIP, debt in possession, que significa que aquele que se dispor a dar crédito neste momento recebe na frente e não entra na fila da recuperação judicial.
Apesar da grande e generalizada insatisfação entre os credores com toda a situação, a expectativa é que DIP consiga aval para se concretizar. Sem ele, o que é terrível consegue ficar ainda pior, uma vez que a própria geração de caixa da companhia poderá ser comprometida.