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Disputa pela AES Tietê cria debate de R$ 375 bilhões na B3

“Ação preferencial do Nível 2 vota e decide, sim”, diz Maria Helena Santana, a mãe do Novo Mercado

AES TIETÊ: discussão sobre a governança podem respingar em outras 20 empresas, como Petrobras, Gol e Azul (Divulgação/Divulgação)

AES TIETÊ: discussão sobre a governança podem respingar em outras 20 empresas, como Petrobras, Gol e Azul (Divulgação/Divulgação)

GV

Graziella Valenti

Publicado em 22 de abril de 2020 às 10h15.

A disputa entre AES Tietê, AES Corp. e Eneva, que estampa manchete nos últimos dias, teve um efeito secundário: colocar as regras do mercado brasileiro de capitais em discussão.

Uma polêmica foi criada pela AES Corp. ao dizer que aceitaria o direito de voto da ação preferencial, mas não a capacidade de decisão a respeito da proposta de incorporação lançada pela Eneva a sua controlada no Brasil AES Tietê, listada no Nível 2. Se não estivesse de acordo com o negócio, ainda que a maioria do capital aprovasse, não reconheceria a operação.

Para defender seu entendimento, a AES Corp. contratou Paulo Aragão, do BMA Advogados, e Carlos Mello, do Lefosse Advogados. Eles sustentam que o voto da preferencial no Nível 2 seria, na verdade, um veto. E que a regulação teria mirado principalmente incorporação de controlada por controladora.

A posição pode ter implicações que vão muito além de uma disputa que poderia criar uma empresa de 20 bilhões de reais em valor de mercado. Sobre seus desdobramento, o EXAME IN foi ouvir a executiva conhecida como mãe do Novo Mercado e dos segmentos especiais de governança da bolsa, Maria Helena Santana.

Hoje conselheira em diversas companhias, ela é categórica. “A ação preferencial vota sim, decide sim. O Nível 2 foi feito para replicar, nas maiores situações possíveis, o efeito do Novo Mercado, onde o regime é de uma ação, um voto.”

Há exatos 20 anos, Maria Helena era diretora de relações com empresas da bolsa quando a então Bovespa decidiu chacoalhar o mercado ao criar segmentos especiais de listagem. Neles, as companhias poderiam adotar padrões de governança superiores ao garantido pela Lei das Sociedades por Ações, e com isso buscar um melhor preço para suas ações. O objetivo era reativar a confiança dos investidores no mercado de capitais brasileiro. Ela não apenas estava lá como foi protagonista das decisões e escolhas.

Os “selos” da B3 levaram quatro anos para decolar de verdade mas foram considerados peça fundamental na revitalização do mercado nacional, que recebeu uma enxurrada de novas companhias e dinheiro estrangeiro a partir de 2004. O Nível 2 é o segmento para empresas se diferenciarem por sua governança mesmo sem ter só ações ordinárias como no Novo Mercado. Nele, as ações preferenciais estão acima da lei, permitem voto em determinadas situações e prêmio de controle em caso de venda da companhia. Estão nele, entre outras, Petrobras, Klabin, Gol e Azul.

“Eu sempre achei o Nível 2 mais oneroso aos controladores. Havia esse debate na época e estava tudo muito claro. Lá, já estava evidente que nesse segmento o controlador não teria todo o bônus de ser percebido como Novo Mercado, mas teria vários ônus, como era o caso da decisão compartilhada nas incorporações”, disse ela. “Não consigo compreender como companhias podem dizer que não entenderam isso.”

Como complemento ao voto em situações importantes para maior aproximação possível do Novo Mercado, a ação preferencial do Nível 2 tem ainda a garantia de venda conjunta em casos de alienação de controle – o famoso “tag along”. Se o dono de ação ordinária vende, a preferencial recebe oferta também, previsão que não existe na Lei das S.As. Resultado: controlador divide prêmio em caso de venda.

Maria Helena relembra que o Nível 2 foi pensando, em grande medida, para permitir que companhias com impedimentos regulatórios de terem apenas ações ordinárias - como era o caso de empresas aéreas, de educação e saúde - pudessem oferecer o máximo de governança possível.

 

“Tanto era isso que, em 2002, a Petrobras tentou ser Nível 2 substituindo o direito de voto por direito de veto das preferenciais, por conta da Lei do Petróleo, e nós não aceitamos”, conta ela, que também presidiu a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), de 2007 a 2012. A petroleira estatal só conseguiu aderir ao segmento com saída semelhante ao veto muitos anos depois, em 2018, diante do esforço político de provar que tinha evoluído sua governança após o maior escândalo mundial de corrupção com a Operação Lava-Jato.

A situação da Petrobras é a única exceção e seu estatuto social, para deixar isso claro, prevê que um comitê de minoritários tem de fazer uma avaliação e emitir um parecer prévio em situações de incorporação, cisão e fusão – as previstas no regulamento do Nível 2 para voto das preferenciais.

“Estou muito preocupada com tudo isso”, disse ela. “A gente já viu no passado que as companhias burlaram o princípio de ‘uma ação, um voto’ ao criar sistemas de controle por pirâmide fora do Brasil, agora teria esse teste”, disse, referindo-se ao banho de água fria que o empresário Rubens Ometto deu no Novo Mercado quando listou a Cosan Limited, em 2007, na Bolsa de Nova York, usando ações com “supervotos” para alavancar sua posição de dono. Maria Helena lamenta a falta de desfecho para a proposta da Eneva. “Ficou essa nuvem escura”, disse, sobre as dúvidas levantadas pela AES Corp.

O futuro de 375 bilhões

A discussão em torno da proposta de 6,6 bilhões de reais que a Eneva fez pela AES Tietê se transformou em algo muito maior. No mínimo, de 375 bilhões de reais, que é o valor de mercado somado das 20 companhias listadas nesse segmento.

Esse debate não morre com o negócio, após a Eneva desistir da proposta. A AES Corp. lançou a bomba para impedir a transação. Mas a gigante americana deixou uma pergunta entre os banqueiros de investimento e os advogados que trazem as companhias para abrir capital na B3 e também os investidores é: Qual o futuro do Nível 2 diante de tudo que veio à tona?

O modelo de oferta à AES Tietê trazia uma aplicação do regulamento do Nível 2 que há 20 anos dormia nos estatutos das empresas sem que ninguém tivesse antes adotado.

Na cronologia dos eventos, primeiro, controladores majoritários de ações ordinárias, mas com menos de 50% do capital total, acordaram surpresos depois de finalmente entenderem o que seria a aplicação prática de seus estatutos – após o modelo de oferta usado pela Eneva. Compreenderam, enfim, que para determinadas situações o Nível 2 é como se estivessem no Novo Mercado - caso de incorporação, fusão e cisão, quando as preferenciais votam.

Depois, a AES Corp. trouxe pânico entre os investidores. Se o voto da preferencial não vale como está escrito, o preço pago pelos papéis listados no Nível 2 também não é esse?

Agora, começam a surgir opiniões para todos os lados. Gente que diz que está tudo errado e que diz que ambos estavam certos. É cedo para prever o impacto sobre o Nível 2. Não é só a mãe do Novo Mercado, Maria Helena Santana, quem está preocupada.

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