Cervejas: balanço da companhia não tem ressalva do auditor, mas PwC tem dado destaque para volume de contingências tributárias (Ambev/Divulgação)
Graziella Valenti
Publicado em 2 de fevereiro de 2023 às 06h46.
Última atualização em 2 de fevereiro de 2023 às 08h34.
A Ambev (ABEV3) faz cerveja. A Americanas (AMER3), varejo. A Ambev tem geração de caixa positiva, a Americanas tinha queima de caixa. As diferenças são inúmeras, mas é o que as duas empresas têm em comum que está pesando para a maior companhia cervejeira brasileira: os donos, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira. A fabricante de bebidas, hoje avaliada em R$ 207 bilhões, já chegou a ser a maior empresa da bolsa brasileira, no auge de 2015. É o berço do império AB Inbev. Hoje, a operação brasileira (latino-americana) rivaliza com o Itaú pela terceira posição no ranking geral — pódio que lhe pertence quando consideradas apenas as companhias não-financeiras.
Desde que a crise da Americanas se instalou, com a divulgação de um rombo de R$ 20 bilhões, a Ambev já perdeu R$ 17,4 bilhões — mais do que uma Americanas inteira pré-crise, precisamente 1,55 Americanas. A varejista estava avaliada em R$ 11 bilhões antes do escândalo. A Ambev foi o produto da combinação entre Antarctica e Brahma, em 1999, e o começo de uma conquista que somaria Interbrew, Anheuser-Bush e SAB-Miller. O tal do Sonho Grande. A Americanas foi o berço da cultura do trio e a Ambev, o maior caso de sucesso — mesmo após toda perda de valor de mercado desde o pico do grupo.
O pregão de ontem, dia 1, foi uma síntese do que o dono em comum significa neste momento. A CervBrasil, uma associação que foi criada em 2012 pelas quatro maiores do setor (Ambev, Heineken, Brasil Kirin e Petrópolis), conseguiu gerar grande nervosismo. As ações da Ambev chegaram a cair 5% durante o dia, mas a queda diminuiu para 3,5% no fechamento.
Ambev e Heineken deixaram de compor a associação há quatro anos e criaram uma nova. Desde então, a CervBrasil fez diversos posicionamentos sobre discussões tributárias envolvendo a Zona Franca de Manaus (ZFM), atacando as empresas. Há anos, a associação tenta ganhar voz sobre isso. Ontem, conseguiu, mesmo sem trazer novidade em relação ao que aponta.
O texto da consultoria AC Lacerda, do relatório encomendado pela CervBrasil, — e a origem do medo disparado ontem — se concentra sobre os créditos fiscais registrados pelas fabricantes de refrigerantes. Quem produz xaropes na Zona Franca de Manaus e compra todos os insumos da região está isento de IPI. Mesmo sem pagar esse imposto, cuja alíquota seria de cerca de 6%, essas fabricantes geram crédito para as engarrafadoras que compravam seus concentrados. É o caso de grandes fabricantes como Coca-Cola e Ambev.
“Apenas no acumulado de 2021 e 2022, nossa estimativa é que os incentivos fiscais para essas empresas multinacionais de refrigerantes somem cerca de R$ 5,9 bilhões, sendo créditos presumidos de IPI de R$ 2,3 bilhões e crédito estímulo de ICMS de R$ 3,6 bilhões. Porém, além de tais incentivos não refletirem em geração consistente de emprego e renda na região e tampouco impulsionarem cadeias produtivas locais, tais práticas abusivas têm resultado em elevado contencioso tributário”, diz o relatório da AC Lacerda.
No documento, a consultoria destaca que a Receita Federal Brasileira tem intensificado a fiscalização sobre as fabricantes e acusa as empresas produtoras de bebidas dentro da ZFM de aumentarem “indevidamente os créditos recebidos através de manobras ilícitas”. Essas “manobras” seriam o superfaturamento das matérias primas e utilização de insumos não provenientes da Região Norte e advindas de outras regiões do país e mesmo do exterior. Segundo eles, esse contencioso tributário do setor chegaria a R$ 30 bilhões.
Mas, como destaca a equipe de analistas do BTG Pactual, esse valor é muito menor para a Ambev: R$ 5,6 bilhões. A maior impactada, neste caso, seria a Coca-Cola, que detém maior parte do mercado de refrigerantes. Além disso, a divisão de bebidas não alcoólicas da Ambev representaria menos de 7% da projeção do Ebitda da companhia, segundo o banco.
Nas notas explicativas do resultado da Ambev no terceiro trimestre, a empresa descreve as contingências tributárias relacionadas a esse assunto. Desde 2009, a Ambev tem recebido Autos de Infração glosando dos créditos relacionados as suas unidades que compram insumos fabricados na Zona Franca. Além disso, ao longo dos anos, recebeu cobranças da Receita Federal do Brasil exigindo tributos federais considerados indevidamente compensados com os créditos de IPI relacionados aos casos em discussão, e PIS/COFINS com relação às remessas da Arosuco, que é uma subsidiária da companhia.
Em abril de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento autorizando os contribuintes a registrarem créditos presumidos de IPI sobre aquisições de matérias-primas e insumos isentos oriundos da Zona Franca. Por conta disso, a Ambev reclassificou parte dos valores relacionados aos processos de IPI para perda remota, mantendo como perda possível apenas os valores relacionados com outras discussões adicionais que não foram objeto de análise pelo STF. As empresas estão discutindo a matéria nos tribunais administrativos e judiciais. “A companhia estima que o valor atualizado envolvido nestes processos, em 30 de setembro de 2022, é de aproximadamente R$5,6 bilhões, classificados como perda possível”, explica. Ao fim de 2021, era de R$ 4,9 bilhões.
Nas demonstrações anuais, a PwC, que faz a auditoria dos balanços da Ambev, tem aprovado sem ressalvas os números da companhia, mas tem dado destaque para as contingências tributárias, que ao fim do terceiro trimestre somavam R$ 86,9 bilhões. Esse montante envolve desde questões da Zona Franca até tributos relacionados a questões trabalhistas, mas a empresa não faz provisões em seu balanço por entender que a perda das ações e, consequente pagamento desses valores são possíveis, mas não prováveis. O provisionamento, como regra, é para prejuízos prováveis.
Ontem, dia 1, a Ambev respondeu, ainda que de forma resumida, o relatório da CervBrasil. "As acusações não têm qualquer embasamento. Calculamos todos os nossos créditos tributários estritamente com base na lei. Nossas demonstrações financeiras cumprem com todas as regras regulatórias e contábeis, as quais incluem a transparência do contencioso tributário. A Ambev está entre as 5 maiores pagadores de impostos no Brasil."
Para o BTG, o maior risco para a companhia está nos juros sobre capital próprio (JCP), por causa das potenciais mudanças da reforma tributária proposta pelo governo. Nos cálculos do banco, a Ambev deve economizar R$ 3,4 bilhões em Imposto de Renda neste ano com o pagamento de JCP, ou o equivalente a um quarto do lucro estimado para 2022. “Presumindo que a atual estrutura de capital continue igual, prevemos que a Ambev poderia continuar a poupar R$ 3 bilhões por ano em imposto”.
A extinção do JCP, portanto, prejudicaria a empresa, aumentando a alíquota efetiva de imposto de 2,5% para 27%.
Enquanto alguns se alarmavam com a velha novidade da CervBrasil, outros prestavam atenção na seguinte questão: o que isso quer dizer sobre a reputação e a credibilidade das empresas do trio e da 3G Capital, gestora de private equity criada no começo dos anos 2.000?
O que está em xeque nesse episódio não é exatamente o contencioso tributário da Ambev, mas a cultura implementada pelo grupo, o compromisso dos sócios com o negócio, a preocupação sobre como a disputa entre bancos credores de Americanas e o trio de sócios vai respingar na cervejeira. O saldo pode ser em custo de crédito ou até em discussões societárias, sobre ações em garantia – a depender do desenrolar do caso da Americanas?
O tempo é que vai dizer se o que era um prêmio, ser um ativo do trio de ouro, vai virar desconto sobre as companhias, tanto da 3G como aquelas detidas diretamente por Lemann, Sicupira e Telles. Ou se todo o temor é passageiro.