Magalu: companhia não recorre ao 'risco sacado' e, como prêmio, ações lideraram as altas do Ibovespa ontem (Magazine Luiza/Divulgação)
Graziella Valenti
Publicado em 13 de janeiro de 2023 às 06h28.
Última atualização em 13 de janeiro de 2023 às 10h50.
O mercado começou o dia de ontem de queixo caído e tentando entender como a Americanas (AMER3) têm, segundo estimativas superficiais, R$ 20 bilhões em inconsistências contábeis, acumuladas anos a fio. Sérgio Rial, CEO da companhia por um período relâmpago, começou o dia contando aos investidores o que encontrou, nesse breve período de nove dias em que ficou à frente da companhia. A explicação trouxe algum pânico aos mercados também para outras varejistas, como Magazine Luiza e Via. Elas começaram o pregão de ontem com quedas de 8% e quase 7%, respectivamente. Depois, a situação mudou ao longo do dia de tal forma, que Magalu (MGLU3), por exemplo, terminou o pregão sendo a maior alta do Índice Bovespa. Via (VIIA3) ainda terminou em baixa, de 5,38%. Os papéis da Americanas tiveram um tombo de 77,33%, o que tirou R$ 8,6 bilhões do valor de mercado da empresa — dos R$ 11 bilhões tinha antes de anunciar o problema.
O que separou Magalu, Via e Americanas ao longo do pregão de ontem foi a contabilidade, ou melhor, não a ciência contábil em si, mas os riscos que ela traduz. Olhar o balanço das três ajuda a entender o assunto que ferveu os miolos dos investidores ontem. E deve continuar fervendo por um bom tempo. O motivo do contágio inicial foi a explicação que as inconsistências no balanço da Americanas ocorreram na contabilização do financiamento aos fornecedores, o chamado ‘risco sacado’. Uma operação para lá de tradicional, espalhada pelo varejo, mas também usada pela indústria.
Especialmente investidores estrangeiros correram para vender o que tinham de exposição ao setor, para aí então terem tempo de entender o que é esse tal de ‘risco sacado’. O Brasil é o país do prazo, do crédito e da parcela. Assim que perceberam a situação, Magalu e Via colocaram as áreas de relações com investidores para explicar que não havia motivo para medo. O esforço de comunicação não se deu apenas com acionistas de mercado. A preocupação se alastrou até os bancos credores. E foram necessárias conversas.
O balanço do terceiro trimestre mostra que a Magalu não recorre a financiamentos bancários para pagar fornecedores com prazo adicional. Ao contrário, a companhia ajuda, com bancos parceiros, fornecedores anteciparem seus recebíveis. Dessa forma, se torna devedora das instituições financeiras, mas o pagamento ocorre no mesmo prazo concedido pelo fornecedor. Daí, então, que tudo é lançado sempre nessa mesma linha de fornecedores, que ao fim de setembro somava um passivo de R$ R$ 8,6 bilhões.
Na Via, assim como recomenda a boa prática contábil, sempre que a empresa usa o financiamento bancário com prazo extra para quitar a compra do fornecedor, os compromissos entram na conta passiva como “fornecedores convênio”. A empresa tinha, ao fim do terceiro trimestre, cerca de R$ 9,6 bilhões relacionado a fornecedores, sendo R$ 2,5 bilhões em compromissos com instituições financeiras devido a alongamentos. Proporcionalmente, a adoção da modalidade subiu de 20% para 26% da totalidade da conta, na comparação anual.
Sempre que uma varejista pede a bancos prazo extra para pagar o fornecedor, essa pendência precisa ser colocada no balanço patrimonial de forma diversa, mas sempre como um passivo. A Via, por exemplo, aponta isso como “fornecedor convênio”. Isso porque a ponta credora muda e, portanto, a natureza do risco também. Uma coisa é dever para fornecedores e outra, para bancos.
A média do setor, quando faz esses contratos, é estender por algo entre 60 e 90 dias o pagamento. No caso da Americanas, esse prazo estava em 360 dias. Seja como for, tanto Magalu, como Via abordam, em seus balanços, as operações financeiras relacionadas aos fornecedores. Americanas, não.
Mais uma diferença entre Magalu e Via, de um lado, e Americanas do outro é a despesa financeira. Todas as vezes que o banco dá prazo extra ao varejo para o pagamento do fornecedor, ele cobra juros. O pagamento desses juros pode ser lançado no balanço de duas formas, conforme reza a contabilidade: ou como um aumento do custo de produtos, que reduz a margem bruta, ou como despesa financeira. Mas é sempre um fator redutor do lucro líquido.
Em Magalu, uma vez que a companhia não usa prazos adicionais, quando seu fornecedor desconta um recebível com bancos parceiros, ela chega a computar uma receita, uma espécie de comissão que a instituição financeira paga. Por que o banco paga essa taxa? Porque está descontando um recebível com risco de crédito da Magazine Luiza, portanto, mais seguro. Mas os valores não chegam a ser relevantes financeiramente.
O que não houve especialista em contabilidade que conseguisse entender é a forma adotada pela Americanas. A companhia usa um prazo extra substancialmente maior, o que implica em custos maiores. No caso da Via, por exemplo, as notas explicativas do balanço apontam que atualmente a taxa de juros implícita nesses contratos chega a quase 19% ao ano, na média. Isso para uma média de 90 dias.
A prática adotada há longos anos pela empresa do trio 3G, Beto Sicupira, Marcel Telles e Jorge Paulo Lemann, é pegar os juros pagos pelo alongamento do prazo com o fornecedor por meio de financiamento bancário e abater isso do valor absoluto do passivo com fornecedores do balanço patrimonial.
Essa prática trouxe dois efeitos: um é a majoração do lucro pelo não lançamento no demonstrativo da despesa financeira e o outro, uma redução artificial do passivo com fornecedores.
Para se ter uma ideia, apesar de não ser tão menor do que Magazine Luiza e Via, a Americanas reportou em setembro R$ 5 bilhões em compromissos com fornecedores, enquanto as outras duas R$ 8,6 bilhões e R$ 9,5 bilhões, respectivamente. Quanto mais usa o risco sacado, mais juros paga, mais o valor absoluto da dívida com fornecedor cai no cômputo adotado pela empresa.
Na apresentação do caso a investidores, Rial sinalizou que atualmente a conta de fornecedores, considerando os compromissos bancários, estaria em algo como R$ 15 bilhões a R$ 16 bilhões.
Mas como esse montante é tão superior às concorrentes? A explicação é o alongamento dos prazos muito acima da média do setor, o que faz os pagamentos se sobreporem. Fica mais fácil assim entender porque Rial falou em alto e bom som que a empresa não terá como, neste ano, pagar todo os juros devidos. Pediu aos bancos que "prendam a respiração e segurem firme".
O conserto dessas incorreções levaria a companhia a apresentar lucros menores, ano após ano, ou até mesmo, prejuízo na demonstração de resultado, e também passivos maiores no balanço patrimonial. A foto, portanto, estaria bem diferente. Não custa lembrar mais uma vez que o patrimônio líquido da empresa, ao fim de setembro, estava em R$ 14,7 bilhões.