Livro oferece um amplo espectro para lidar com a principal dúvida que ronda a Huawei: afinal, a empresa está a serviço do governo chinês? (Divulgação/Divulgação)
Diretor de redação da Exame
Publicado em 8 de fevereiro de 2025 às 08h43.
Última atualização em 8 de fevereiro de 2025 às 09h31.
Num momento em que o Ocidente ainda se pergunta como foi possível a startup chinesa DeepSeek desenvolver uma inteligência artificial gastando uma fração da OpenAI, um mergulho no modus operandi de uma gigante da terra de Xi Jinping pode ser especialmente valioso.
É o que se propõe o recém-lançado "House of Huawei: The Secret History of China's Most Powerful Company", escrito pela jornalista do Washington Post Eva Dou. Num calhamaço de 450 páginas, a obra mostra como poucas o funcionamento do sui generis mundo de negócios chinês.
Segunda maior economia do mundo, a China comunista se consolidou nos últimos 40 anos como uma fábrica de grandes histórias capitalistas. Huawei, BYD, Xiaomi, LeNovo, Tencent, Alibaba, Baidu e, agora, Tiktok e DeepSeek: sobram histórias de companhias chinesas com ambição global.
Em comum entre elas, uma eterna sombra de questionamentos sobre qual é a real conexão entre a estratégia de negócios e as estratagemas do partido comunista que comanda a política chinesa desde a revolução que levou Mao Zedong ao poder em 1949.
Nos últimos anos, as dúvidas cresceram tanto que uma leva de países vem proibindo negócios com empresas chinesas, sobretudo com a Huawei, banida dos Estados Unidos e proibida de utilizar qualquer componente desenvolvido por americanos.
Eva Dou conta detalhes da fundação da Huawei com revelações como qual foi o verdadeiro grupo de empreendedores que criou a empresa, ou quais foram as reais atribuições militares de seu principal acionista, Ren Zhengfei. Mostra, também, que desde sua fundação a empresa respeita determinações de contar com um representante do "partidão" em sua liderança.
No início, o próprio Zhengfei dividiu a atribuição. Mais tarde, o posto foi ocupado por veteranos com liberdade de vetar promoções, determinar demissões e acompanhar relevantes reuniões de negócio no exterior.
"House of Huawei" mostra como a história do fundador está intimamente ligada à política local. Seu pai, um ex-professor universitário, foi promovido e depois perseguido por conexões ideológicas com adversários de Mao Zedong. Ainda assim, no fim dos anos 60 Zhengfei entrou para o exército numa carreira técnica ligada à engenharia que o levou, em 1978, a ingressar oficialmente nos quadros do partido.
No começo dos anos 80, ele foi transferido para uma nova zona econômica criada para ser um marco no desenvolvimento, Shenzhen. Chegando aos 40 anos, Zhengfei viu o primeiro supermercado de sua vida e provou Pepsi pela primeira vez; também encontrou a oportunidade de fazer algo improvável por lá: empreender.
Junto com cinco sócios, ele criou uma pequena empresa focada em montar e vender switches telefônicos, aqueles equipamentos que conectavam linhas de edifícios, empresas, cidades. Aos poucos, a empresa criou do zero seus próprios equipamentos, sempre sob suspeitas de copiar modelos de concorrentes nacionais e internacionais.
O maior mérito da Huawei em seus primeiros anos foi o trabalho duro. Na matriz, funcionários eram incentivados a dormir no escritório e ficavam meses sem rever suas famílias, numa cultura mais tarde suavizada para se adequar a padrões, digamos, do século 21.
Zhengfei montou um exército de vendedores que passavam meses no interior do país dispostos a tudo para fechar novos contratos.
Nas regiões mais afastadas, conquistar a confiança dos clientes envolvia banquetes regados a tanto baiju, a cachaça chinesa, que a matriz precisava enviar remédios para o fígado a suas equipes. “O protocolo envolvia ficar mais bêbado que seus clientes para mostrar respeito a eles”, diz o livro.
O nacionalismo sempre foi parte essencial da cultura. "A companhia requeria que todo empregado amasse sua terra natal", dizia o empresário.
Ele também usava suas conexões políticas para mostrar a importância de o estado beneficiar companhias locais. "Um país sem seu próprio programa de switches é como um país sem exército", costumava dizer, numa declaração que ganha especial atualidade se aplicada para os projetos de 5G e inteligência artificial.
Em muitas cidades, mostra a autora, a Huawei criava subsidiárias e convidava autoridades locais como sócias.
Elas acabavam se beneficiando dos próprios contratos que assinavam, aproveitando-se de um ambiente em que acordos público-privados ainda eram novidade. A matriz da empresa, por sua vez, se estabeleceu como um negócio "coletivamente controlado", uma jabuticaba chinesa que não era "nem privada", "nem estatal".
Atualmente, a Huawei tem 150.000 funcionários como acionistas, num modelo de gestão que, segundo Eva Du, é muito similar ao da própria China. Comitês locais, ou departamentais, escolhem seus representantes, que por sua vez vão elegendo seus líderes numa escada que leva até o topo. No fim das contas, cria-se uma estrutura de liderança centralizada, mas opaca.
A ambição internacional está na história da Huawei há 30 anos, desde que chegou a países da Ásia, da América e da Europa. A desconfiança sobre suas intenções, também. A empresa sempre afirmou seguir rigorosamente a lei, e ao longo de sua história sempre negou acordos com governos sob embargo americano, como Irã e Coreia do Norte.
Eva Dou mostrou que a Huawei fechou negócios com esses governos, muitas vezes se valendo de outras empresas para driblar possíveis punições. Conta, inclusive, uma visita de Kim Jong il à sede da Huawei, em 2006.
O volume de contratos foi crescendo à medida em que a empresa entrou em negócios como cabos submarinos, serviços, smartphones, a ponto de assumir a liderança global tanto em serviços de telecom quanto de telefonia, desbancando Apple e Samsung. O escrutínio internacional cresceu junto, ampliando o número de denúncias e crises com os quais a empresa teve que lidar.
Uma das mais severas veio em 2018, quando a filha de Ren Zhengfhei, Meng Wanzhou, foi presa no Canadá acusada de infringir leis americanas ao fechar negócios com o governo iraniano. A companhia sempre negou as acusações, e a batalha diplomática durou três anos.
O vaivém é contado em detalhes, incluindo uma fatídica reunião de Wanzhou com o banco HSBC, em Hong Kong, em que ela supostamente mente sobre os negócios no Irã para abrir novas linhas de financiamento.
Eva Dou não responde categoricamente o grau de alinhamento entre Huawei e China, mas leva o leitor a olhar um espectro mais amplo.
O grau de ingerência de governos sobre empresas de telecomunicações é muito maior do que se imagina, argumenta, mesmo em lugares como Estados Unidos e Reino Unido. Um vazamento de 2009, por exemplo, mostrou que hackers do governo americano entraram em servidores da Huawei e leram e-mails inclusive da liderança da empresa.
“A agência americana de segurança (NSA) acessou o código fonte dos produtos da Huawei, sua propriedade intelectual mais valiosa”, diz o livro. “Agora estava claro por que Washington estava tão confiante de que Pequim poderia usar equipamento da Huawei para espionar: a NSA vinha fazendo exatamente isso por anos”.
Sobre o vazamento, Ren Zhengfhei comentou publicamente apenas que tudo estava “dentro das expectativas”.
De lá para cá, a guerra dos chips e a batalha pela IA generativa vêm mostrando que fica cada vez mais difícil separar mocinhos de bandidos. Com 80 anos de idade, 40 de empresa e 70 de experiência em todo tipo de batalha narrativa, o fundador da Huawei sabe muito bem disso.