BC reconhece falhas e acena com “aprimoramentos” de cunho estrutural no mercado de recebíveis (Joe Raedle/Getty Images)
Angela Bittencourt
Publicado em 14 de julho de 2021 às 12h53.
Dois é bom, três é demais. O ditado descreve à perfeição o fim de uma tumultuada lua de mel entre os diversos participantes do mercado de recebíveis de cartões de crédito que, há um mês, passou a seguir novas regras impostas pelo Banco Central (BC). Atuam no segmento, bancos, fintechs, credenciadoras de cartões, três câmaras registradoras e milhões de lojistas. Acomodar tantos atores deu trabalho e as operações não parecem azeitadas, como apurou o EXAME IN com quatro profissionais. Tem areia na engrenagem. Fontes do setor criticam o BC. Avaliam que a instituição prioriza a autorregulação desse mercado. E consideram pouco eficiente ou até impossível que isso aconteça em um segmento marcado por diferenças de funções exercidas e sobretudo de porte entre seus integrantes. Contudo, o BC não deixou o mercado à deriva.
Em resposta a questionamento enviado por e-mail pelo EXAME IN, o BC reconhece problemas observados nesse primeiro mês de vigência das novas regras que passara a disciplinar o mercado de recebíveis e espera que “nas próximas duas semanas todos os imprevistos identificados até o momento estejam totalmente sanados, sem prejuízo de que outros aprimoramentos de cunho mais estrutural possam ser realizados”.
Para entender a história: em 7 de junho, depois de dois adiamentos, entrou em vigor a legislação que permite aos lojistas registrarem os recebíveis de cartões de crédito em um sistema único e compartilhar a agenda dessas faturas a receber com vários bancos. Os valores envolvidos não são pequenos e são disputados. O mercado estima que, em 2020, quase R$ 300 bilhões foram antecipados ao comércio tendo recebíveis como garantia das operações.
A atualização normativa conduzida pelo BC abriu esse mercado para ampliar a oferta de crédito principalmente para micro e pequenas empresas e propiciar a redução dos juros praticados, como efeito de maior concorrência bancária. Até a entrada em vigor da nova legislação, a possibilidade de o lojista utilizar a receita futura dos cartões estava restrita às instituições em que os estabelecimentos têm suas contas bancárias e às credenciadoras responsáveis pelo processamento das transações de pagamento das vendas realizadas. Essa amarra foi quebrada pelo BC.
Três registradoras passaram a atuar como uma espécie de ‘cartório digital’ dos recibos de cartões de crédito: a Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP), fundada em 2001 e controlada pelos grandes bancos; a Central de Recebíveis (Cerc), criada por um grupo de ex-executivos do mercado financeiro em 2015; e a TAG, criada pelo grupo Stone em 2018. E estão atuando nesse novo contexto que pretende facilitar o crédito.
Participantes do mercado de recebíveis, na condição de anonimato, relatam que existem divergências de dados registrados, que domicílios bancários "pactuados entre clientes (lojistas) e instituições credoras não têm sido respeitados pelas ‘maquininhas’ e garantias supostamente deixaram de ser inscritas e respeitadas”.
Uma instituição que antecipa recursos ao comércio, mediante essas garantias, também informa que inúmeros estabelecimentos não conseguiram pagar as cifras devidas e estão inadimplentes. “Se negativados, perdem direito ao crédito em qualquer instituição. Houve uma grande perda de qualidade de informações, a ponto de não estar ocorrendo a constituição de novas garantias para a antecipação de novas operações de crédito”, comenta um dos gestores ouvidos pelo EXAME IN.
Para esse interlocutor, o BC deveria ter desenvolvido ou assumido a liderança da implantação do sistema tecnológico como ocorreu com a adoção do Pix – meio de pagamento instantâneo – e do open banking e não esperar que um sistema tão complexo de autorregule.
“Os riscos estão aumentando para os players desse mercado porque há participantes relevantes setorialmente que não reconhecem contratos dados como garantia. Inclusive, contratos antecedentes a 7 de junho, data de entrada em vigor da nova legislação. Não há uma mobilização jurídica em torno de discrepâncias de dados, mas podemos chegar a isso”, pondera um segundo entrevistado que atesta ter a autoridade monetária basicamente consultado participantes desse mercado de recebíveis – “perguntando em questionário genérico” – se as regras estão sendo cumpridas.
Consultado pelo EXAME IN, o BC, por meio de sua assessoria de imprensa, informa que “para correção das falhas estão sendo realizadas reuniões diárias entre os participantes, sob a condução do BC e um plano de ação está sendo implantado. Muitas melhorias já estão em andamento com ganhos de performance sendo alcançados a cada dia”.
O BC detalha, em três pontos, o que precisa ser feito:
1.Os mecanismos de interoperabilidade, por meio dos quais as registradoras trocam informações sobre as agendas de recebíveis e os contratos de negociação de recebíveis, precisam ser aperfeiçoados, tanto em aspectos tecnológicos quanto procedimentais;
2.Os procedimentos de conciliação entre as entidades credenciadoras e as registradoras precisam ser executados com frequência diária, de forma a assegurar a qualidade e integridade das informações sobre as agendas e os efeitos de contratos;
3.Completar o cadastro de estabelecimentos comerciais na base centralizada pelos participantes, de forma a reduzir a quantidade de operações negadas em decorrência da inexistência de estabelecimentos cadastrados.
Para o BC, o primeiro objetivo, implantar a norma com o menor impacto possível no dia a dia dos estabelecimentos garantindo a fluidez do canal de crédito, foi alcançado, com a superação de muitos desafios. Ao longo do primeiro mês, informa a instituição a pedido do EXAME IN, vários tipos de problemas foram enfrentados.
O BC pontua as ocorrências:
1.Lentidão de resposta da base centralizada de estabelecimentos comerciais que consiste em um cadastro de todos os estabelecimentos que operam nos inúmeros arranjos de pagamentos;
2.Base centralizada com heterogeneidade no cadastro de estabelecimentos dado que é a primeira vez que se implanta um cadastro único;
3.Inconsistências no preenchimento do leiaute de troca de informações entre registradoras e participantes e entre as registradoras, o que ocasionou atraso no ‘tombamento’ [listagem] de contratos, dificuldade de interoperabilidade com a necessária convergência e compatibilidade de sistemas e dificuldade de disponibilidade completa das agendas de recebíveis;
4.Ocorrências de situações de práticas comerciais no relacionamento financiadores versus estabelecimentos comerciais que não estavam no radar das registradoras e cujas soluções estão tendo que ser construídas com o processo já em andamento.
O BC reconhece a elevada complexidade desses processos, pelas transformações tecnológicas e a quantidade de entidades participantes que envolve. E destaca que todos os participantes – estabelecimentos comerciais, credenciadoras, financiadores e registradoras – precisam passar a operar e a funcionar com novos modelos e estruturas. O BC não tem dúvida, porém, que “a implantação do registro de recebíveis de cartão traz grandes vantagens para o mercado de crédito, sendo esperado avanços no processo de gestão de garantias e maior concorrência para o mercado com a consequente redução do custo do crédito”.
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