Apple: em momento de queda de vendas de iPhones, companhia da maçã dá primeiro 'grande passo' no mercado de crédito (Jason Lee/file Photo/Reuters)
Karina Souza
Publicado em 10 de junho de 2022 às 12h56.
Última atualização em 10 de junho de 2022 às 12h57.
A Apple anunciou essa semana que vai começar a oferecer o crediário digital (Buy Now, Pay Later) como meio de pagamento para os consumidores. O que chamou a atenção do mercado é que a fabricante dos iPhones e iPads vai oferecer esse serviço de forma direta, sem envolver bancos como intermediários para as transações. O fato ganha importância especial diante da quantidade de dados que a big tech tem sobre clientes — conhecidos amplamente por serem um público premium — e a capacidade de mudanças aceleradas como um fator cultural, fatores que podem, em conjunto, trazer uma nova onda de transformações dentro do setor financeiro. Nesse novo ambiente, não são as fintechs as principais rivais dos bancos, mas as grandes corporações do Vale do Silício.
Não que as startups financeiras deixem de ser atingidas. Mas, antes delas, os bancos é que precisam se preocupar. Enfim, alguém realmente com capital. Com o anúncio de que a Apple vai entrar no mercado de BNPL, a Affirm, empresa especializada justamente em oferecer esse meio de pagamento para varejistas, viu o preço das ações cair 5,5% nesta quarta-feira. Outra companhia do setor, a europeia Klarna, também anda em baixa nos últimos dias — em um movimento de fuga do setor, de modo geral.
O movimento atual da Apple pode parecer recente, mas reflete uma estratégia já conduzida há alguns anos dentro da empresa. A companhia começou a se aventurar pelo mundo financeiro em 2014, com a criação do Apple Pay, opção de carteira digital que permite o cadastro de cartões de crédito de diferentes bandeiras e o pagamento utilizando o celular. Abrindo o leque para mostrar o potencial da companhia em serviços: a receita gerada a partir de apps pagos como Apple TV+, Apple Music e Apple Fitness teve um salto de 24% em receita no último trimestre de 2021, alcançando 19,5 bilhões de dólares. Hoje, são 785 milhões de assinantes. Em uma perspectiva financeira mais nichada, a companhia também disponibiliza o Apple Card, apenas nos Estados Unidos. O serviço foi lançado em 2019 e conta com o apoio do Goldman Sachs.
Dessa vez, o banco também fez certa contribuição para que o serviço fosse lançado, mas a principal contribuição foi a de permitir o acesso à rede Mastercard para torná-lo viável — uma vez que a empresa da maçã ainda não tem a licença para processar pagamentos de forma direta. Segundo o Financial Times, o arranjo atual vai permitir que a companhia de tecnologia possa ganhar interchange fees de cada transação, ter mais controle sobre o comportamento de consumidores e pode expandir a oferta internacional de produtos financeiros.
Não que a internacionalização seja uma tarefa necessariamente fácil. Um dos principais desafios citados por Jairo Saddi, advogado e pós-doutor por Oxford e um dos maiores especialistas em sistema financeiro no Brasil, é justamente a regulação, como o executivo afirmou em entrevista ao EXAME IN publicada em 2020. Há anos, ele fala que o setor financeiro vai estremecer de verdade quando as giant techs entrarem na mesma corrida. Ainda é impossível estimar com exatidão quais serão as mudanças necessárias para que companhias com muito mais poder de fogo possam ter, também, uma atuação financeira global.
O que se sabe, ao menos por enquanto, é que o momento para testar serviços financeiros dentro da big tech vem a calhar. Com projeções de vendas menores para os produtos ano a ano — somadas às dificuldades de suprimentos que já vêm da pandemia e foram agravadas com os novos lockdowns na China — parece propício começar a testar de forma mais intensa a operação financeira, mirando o longo prazo da companhia.
Esse movimento, por outro lado, reflete a competição mais acirrada que os bancos tradicionais vão enfrentar. “Essas empresas têm caixa para ameaçar qualquer banco e um foco ilimitado de atuação. Elas já começam a abrir o leque do que podem trazer ao consumidor, à medida que o mercado original delas se esgota. Por que elas não podem fazer serviços financeiros?”, diz Saddi.
Para colocar em uma perspectiva mais clara, no caso da Apple, o caixa está em US$ 73 bilhões (cerca de R$ 350 bilhões), de acordo com os dados mais recentes divulgados pela companhia. Em uma leitura simples: fôlego para testar, errar e lidar com a inadimplência existe. Especificamente em relação a esse último ponto, o Financial Times lembra que a companhia adquiriu no início desse ano a fintech Credit Kudos, que usa big data em função do crédito. Apesar das discussões sobre os parâmetros definidos por empresas como essa, não deixa de ser um pontapé inicial para testar o que pode funcionar ou não com o crédito.
Oferecer crédito e fazer o meio de campo entre pagamentos não é um objetivo exclusivo da Apple, aliás. O fato de a companhia ter ido direto para esse objetivo pode refletir tanto o aprendizado próprio ao longo dos anos quanto o de outras iniciativas fracassadas da concorrência ao longo do tempo.
Falando de forma mais clara, o Google testou um modelo de conta bancária entre 2019 e 2021. O projeto foi descontinuado porque, com a chegada de um novo chefe para a divisão, o foco passou a ser o de criar “um ecossistema de pagamentos”, em vez de tentar competir nesse aspecto com bancos tradicionais. A Amazon também divulgou, em 2018, que estava trabalhando em um modelo de serviço financeiro que focava principalmente na população jovem e desbancarizada – mas, até hoje, não houve lançamento do produto.
A Apple já deixou bem claro que não vai seguir pelo mesmo caminho. Em entrevista ao FT, a companhia afirmou que, por enquanto, não pretende tirar nenhuma licença específica para operar como um banco. Testar primeiro, depois evoluir.
No meio de toda a discussão sobre o que a companhia de tecnologia está fazendo, um último ponto que fica é: E os bancos? O que podem fazer para acirrar a competição ao longo dos próximos anos? Segundo Saddi, o trunfo de lidar com análise de crédito há muitos anos tem de ser considerado nessa jogada — mas não responde por 100% do sucesso no futuro. Falta, na opinião do especialista, mudar cultura e atitude para que elas possam adquirir um papel de protagonismo em meio ao ambiente atual. “Pode parecer ingênuo achar que um banco pode encantar o cliente, mas é claro que pode”, diz.
É a força que as big techs têm. As filas quilométricas para comprar o iPhone mais recente deixam isso claro até hoje — ainda que a expectativa de fabricação e venda dos aparelhos tenha diminuído consideravelmente ao longo dos últimos anos. Fato é que os fãs da marca continuam por aí e, agora, vão contar com mais uma forma de interagir com a Apple. Ainda restam dúvidas sobre quão bem-sucedida essa estratégia será e quanto tempo vai levar para a companhia ampliar o volume de serviços financeiros oferecidos, é claro. O que importa, ao menos por enquanto, é que a corrida pelo melhor serviço aos melhores clientes está ficando cada vez mais acirrada. É tempo de se mexer.
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