BOLSA: o regulamento do Nível 2 prevê que divergências sejam resolvidas pela via arbitral e não pela via judicial (Rahel Patrasso/Reuters)
Graziella Valenti
Publicado em 27 de abril de 2020 às 07h32.
A B3 está preparando para breve uma posição a respeito do direito de voto dos acionistas preferencialistas em operações de incorporação, previsto no Nível 2 de governança corporativa. Mas, antes de se tornar público, o assunto será avaliado pelas mais elevadas instâncias da casa. Consultada, a bolsa não comentou.
A discussão surgiu a partir da tentativa da Eneva de incorporar a AES Tietê, após uma proposta encaminhada ao conselho de administração da empresa e divulgada ao mercado em 1° de março. Após rivalizar com a AES Corp, controladora da Tietê, a Eneva retirou sua oferta, que equivalia a 6,6 bilhões de reais. Mas as questões levantadas no caso não desapareceram com a desistência do negócio.
O dilema da B3 é maior do que o debate se a ação preferencial vota de forma decisiva ou apenas com efeito de veto, conforme questionamento que surgiu com o desenrolar do caso, como parte do entendimento da AES. A bolsa terá de confrontar os interesses de acionistas controladores e de minoritários, para além do caso específico. E cada vírgula e palavra das regras da casa ganharão um peso novo a partir de agora. Todo detalhe importará.
A Tietê é uma companhia listada no Nível 2 da B3 e, portanto, os acionistas preferencialistas têm garantido pelo regulamento e pelo próprio estatuto social o direito de votar em situações de incorporação, cisão e fusão.
A configuração da proposta da Eneva transformava a AES Corp. em apenas mais uma acionista da Tietê, como os demais do mercado. A gigante americana de energia tem quase 62% das ações ordinárias da controlada brasileira, mas apenas 24% de seu capital total. Com isso, não conseguiria, sozinha, garantir maioria em uma assembleia sobre uma incorporação para barrar o negócio.
Em teoria, se o BNDES, maior acionista com 28% do capital total, quisesse fazer a transação e outros minoritários também, eles conseguiriam. Dessa forma, o interesse econômico da maioria poderia prevalecer sobre o do controlador, que ficaria com poder diluído nessa situação. É a primeira vez que essa circunstância aparece no mercado brasileiro, em uma companhia de Nível 2.
A garantia do direito de voto da ação preferencial como decisivo estava assim entendida até a AES Corp., na segunda-feira à noite da semana passada, divulgar uma carta enviada ao conselho de administração da Tietê na qual afirma que não reconheceria a transação, mesmo se aprovada em assembleia de acionistas com maioria absoluta, mas sem sua concordância. Seria, a seu ver, “uma inversão do direito societário brasileiro”. Uma situação em que acionistas sem nenhuma responsabilidade assumiriam o futuro da companhia no lugar do controlador, que possui deveres legais.
A companhia americana contratou os advogados Paulo Aragão, do BMA, e Carlos Mello, do Lefosse, para enfrentar a discussão. O argumento deles é que o direito de voto da ação preferencial é, na verdade, de veto, quando aplicado em uma incorporação que não nasceu dentro da administração da empresa. Contudo, não foram divulgados detalhes sobre essa interpretação.
Para um especialista de mercado, diante do ineditismo da situação, o tema precisa mesmo ser arbitrado pela B3, em razão das inseguranças que ficaram para eventuais transações futuras – com a própria AES Tietê e outras. Diversos investidores institucionais, incluindo nomes de peso do mercado brasileiro, escreveram à bolsa em cartas encaminhadas diretamente ao presidente, Gilson Finkelsztain, pedindo o esclarecimento dos direitos do Nível 2 – para além do caso específico. Há temor, segundo as correspondências, com a segurança jurídica do mercado.
Quanto mais o tempo passa, mais as dúvidas aumentam e começam a se empilhar – ampliando a sensação de confusão.
O Nível 2 representa um segmento intermediário entre o mercado tradicional e o Novo Mercado, ambiente em que são listadas empresas apenas com ações ordinárias.
Controladores que listam nesse espaço o vêem como uma forma de oferecer direitos adicionais aos seus sócios minoritários, mas mantendo ações preferenciais na formação do capital. Dessa forma, podem manter o poder de controle mesmo sem maioria absoluta da companhia.
Já os investidores de ações preferenciais do Nível 2 entendem – ou entendiam – que têm ações com direto de voto em incorporação, cisão e fusão e mais a garantia de venda conjunta com o controlador (o tão famoso “tag along”). Tudo isso sem restrições ou senões.
O regulamento do Nível 2 também prevê que a saída desse ambiente depende de aprovação em assembleia de acionistas – e não está garantido voto das ações preferenciais nessa matéria.
A aplicação que a Eneva propunha para incorporar a Tietê não é nova. O inusitado está na situação de divergência do controlador. A incorporação da Vivax pela NET, em 2007, foi a primeira transação relevante na qual uma incorporação dependia de maioria do capital total. A votação foi feita com votos de todos, sem polêmica. A diferença é que não havia na ocasião um controlador resistindo à operação.
Para o caso concreto, um parecer da bolsa pode dar robustez, para um lado ou para outro, mas pode não encerrar a questão. Em um cenário no qual Eneva retome a transação – como sugeriu que faria – e ela seja aprovada em assembleia de acionistas, a AES deixou clara a disposição de contestar. A questão pode virar uma longa batalha na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM), da B3 – o regulamento do Nível 2 (sempre ele) prevê que divergências sejam resolvidas pela via arbitral e não pela via judicial.