No escuro: falta de visibilidade sobre futuro do setor faz Latam pedir proteção contra credores, logo após Avianca (Rodrigo Garrido/Reuters)
Graziella Valenti
Publicado em 26 de maio de 2020 às 13h02.
Última atualização em 26 de maio de 2020 às 14h22.
A decisão da Latam de pedir proteção contra credores nos Estados Unidos, o equivalente à recuperação judicial brasileira, amplia a pressão sobre todo setor no Brasil. É a segunda companhia na América Latina a recorrer a esse tipo de solução para reestruturar dívidas neste mês, devido às consequência da pandemia do novo coronavírus. A primeira foi a Avianca, com compromissos de 5,3 bilhões de dólares, há pouco mais de 15 dias.
Na B3, as ações da Azul caíam 3,26%, há pouco, para 14,83 reais. Já os papéis da Gol recuavam 0,95%, para 12,49 reais. Na bolsa de Nova York, para efeito de comparação, Latam valia ontem à noite 1,57 bilhão de dólares. Na sequência, vinham Azul, com 963 milhões de dólares de valor de mercado, e Gol, com 827 milhões de dólares. A Avianca Holdings marcava 110 milhões de dólares de capitalização.
Começará agora o bolão especulativo sobre se haverá próximas e quais serão. Mas, no lugar de olhar o preço das ações das empresas, o certo a fazer é acompanhar principalmente o valor dos bônus negociados no mercado internacional. Eles são o termômetro do que o mercado de crédito vê para o futuro dessas empresas. No Brasil, as companhias seguem com a maior parte da frota estacionada.
Os bônus da Latam com vencimento em 2026 eram negociados por cerca de 12% de seu valor de face. De forma simples, é como dizer que o mercado atribui um risco de 88% de calote para o título.
O papel da Avianca estava 18% do valor de face, com vencimento em 2023. Vale lembrar que esse título já reflete uma renegociação feita pela empresa no ano passado, pois tinha vencimento originalmente neste ano.
Já os bônus de Azul, para 2024, sofriam desconto de quase 60%. E o da Gol, com prazo para 2025, de 50%. Na prática, o menor risco atribuído pelos investidores está, nesse momento, na Gol. A situação de ambas no mercado de crédito é, obviamente, bem melhor que a de Latam e Avianca.
Mas, de forma geral, o tamanho dos descontos oferecidos aos papéis de todas as companhias indica que há risco de, no mínimo, 50% para as dívidas. Logo, não há nesse momento valor no capital das empresas — ou seja, nas ações.
Na prática, é como dizer que, neste momento, não se vê perspectiva de retorno para os acionistas. Os sócios só recebem recursos de uma companhia depois de pagarem os credores. Se a perspectiva atual é que não há riqueza para cobrir sequer todas as dívidas, tampouco há retorno do negócio para os acionistas.
Na verdade, o cenário é exatamente o contrário. Em nome da sobrevivência das empresas, é possível que os acionistas sejam chamados a colocar dinheiro nos negócios — seja comprando ações ou dívida —, se quiserem preservar o patrimônio no longo prazo.
Já é o caso da Latam. Ao anunciar a reestruturação, nesta madrugada, comunicou também que seus acionistas irão conceder financiamento de 900 milhões de dólares para fazer frente ao atual momento. De acordo com fato relevante da empresa, se comprometeram com os recursos a família Cueto, que possui 21,5% do negócio, os Amaro (ex-donos da TAM), que possuem fatia de 2% do capital, e a Qatar Airways, cuja participação é de 10%. O nome da Delta, que detém hoje 20% da Latam, não aparece na lista.
Os recursos novos, porém, não serão fornecidos como capitalização em ações, mas na forma de crédito — na modalidade Debtor in Possession (DIP). Esse tipo de dívida ganha prioridade em relação aos demais credores, na fila de pagamentos.
A segurança para esse mecanismo de financiamento nos Estados Unidos é uma parte do sucesso das recuperações judiciais na terra do Tio Sam. A Latam anunciou a proteção contra credores já com a chegada do dinheiro novo.
Por essas e por outras, entrar e sair de uma recuperação judicial nos Estados Unidos é algo bastante mais trivial do que no Brasil. No setor, não raro, as empresas sobrevivem. Saem menores, como não poderia de deixar ser, mas seguem voando.
O setor vem sofrendo acelerada degradação de indicadores nos últimos dias no Brasil, com sucessivos rebaixamentos nas notas de risco de crédito. O BNDES mobilizou esforços para montar um programa de resgate — que começou com expectativa de oferecer 10 bilhões de reais em liquidez às empresas, mas ficou em 4 bilhões de reais. Porém, o programa ainda está distante de se concretizar.
Para que os recursos sejam liberados, as companhias precisam antes estruturar operações de mercado e assegurar a demanda. Os 4 bilhões de reais do BNDES estão garantidos, mas condicionados ao sucesso dessas empresas de encontrar interesse entre os investidores de mercado — as taxas virão também da precificação pública. Se não houver apetite pelos papéis, não haverá dinheiro do banco de fomento. Isso é o que está na mesa neste momento.
O encolhimento do valor do pacote, porém, já é um sinal do que as empresas vão enfrentar. O montante final ficou inferior ao esperado porque os bancos comerciais — chamados pelo BNDES a compor o esforço de salvamento — se recusaram a colocar volume proporcional ao do banco de fomento.
O modelo desenhado é uma combinação de debêntures simples e bônus conversíveis em ações, em uma proporção de 75% para 25%. O BNDES coloca 60% dos recursos totais, os bancos privados, 10% e o mercado, 30%. Só que tudo começa pelo mercado. E as companhias se perguntam, mas sem querer entrar em conflito com o governo brasileiro: que mercado?
O setor enfrenta grandes desafios para estruturar essas operações. O primeiro é o sistema de garantias. Companhias aéreas não possuem ativos relevantes para dispor. Os aviões pertencem aos arrendadores, chamados lessores, e os slots, as posições nos aeroportos, são de propriedade do governo.
O segundo é dar um preço para os bônus de subscrição em um cenário que as companhias perderam entre 70% e 80% de seu valor de mercado. Para a Latam, o desafio é ainda maior. A companhia só conseguirá acessar esses bolsos se fizer um programa de listagem de BDRs na B3 — mais uma tarefa, em meio à gestão da pandemia e da recuperação judicial.
As companhias aéreas têm grande peculiaridade. A maior parte de suas dívidas é com os financiadores de aviões, os chamados lessores. Na Azul, dos 20 bilhões de reais em dívidas reportados ao fim de março, 17 bilhões de reais eram dos contratos de arrendamento.
Na Gol, dos quase 17 bilhões de reais em vencimentos, 9 bilhões de reais eram relacionados a contratos de leasing de aviões mais financiamento de frotas e motores.
O grande fator de pressão para o pedido de proteção contra credores da Latam, além do óbvio aperto financeiro diante da crise, foi a exposição a uma modalidade de financiamento de aviões que não existe no Brasil: leasing financeiro de aeronaves via mercado de capitais.
A companhia, que já havia deixado de pagar juros de uma emissão de bônus há cerca de dez dias, tinha um compromisso de leasing financeiro vencendo nessa semana ainda.
Da frota total da Latam, 2/3 está exposta a leasing financeiro. Nesse formato, o financiador não é o detentor direto do avião, é um agente intermediário. Quando a operação é feita via mercado, fica pulverizada e a flexibilidade para negociações rápidas e privadas com esses credores é quase nenhuma.
No Brasil, a Azul possui leasings financeiros, num total de 1,3 bilhão. A Gol, que costuma também ter esse modelo de contrato, entregou em março as últimas aeronaves com esse formato de financiamento e atualmente só tem os chamados leasings operacionais. Mas, por aqui, os leasings financeiros não passam pelo mercado, ficam restritos a poucos agentes privados.
Como os lessores são os verdadeiros donos dos aviões, no fim do dia, serão protagonista no xadrez para definir os sobreviventes do setor. Já que representam a maior parte do crédito, eles definirão quais empresas acreditam que terão maior chance de sobrevivência no mercado pós-pandemia. São eles que decidem se deixam a frota com a empresa, para ela seguir voando, ou se tomam de volta para tentar realocar em outra companhia.
Quando os arrendamentos são operacionais, os especialistas apontam que há maior flexibilidade nas conversas. Como os financiadores são diretamente os donos dos aviões, eles têm mais interesse na relação comercial e na manutenção da operação — especialmente em meio à pandemia, onde não há demanda por novos aviões em nenhum lugar do mundo para realocação. Quando são agentes financeiros que fazem a transação, uma longa cadeia de gatilhos de compromissos e responsabilidades é acionada e o diálogo não é nada simples.
A cada dia que passa, com queima de caixa e sem dinheiro novo, o xadrez brasileiro só fica mais complicado.