Amigos do Bem: projeto integrado de cuidado com população do setor possibilita avanços há 29 anos (Amigos do Bem/Divulgação)
Karina Souza
Publicado em 27 de setembro de 2022 às 13h37.
Última atualização em 27 de setembro de 2022 às 14h00.
“Eu falo sempre que fazer o bem é algo que pode ser ensinado. Aprendi muito com a minha mãe a olhar as pessoas que tiveram menos sorte do que nós e fico feliz que, hoje, meus filhos também se sintam inspirados por isso”. É assim que começa um bate-papo com Alcione Albanesi, fundadora da ONG Amigos do Bem, um projeto que completará 30 anos em 2023. Tentar resumir três décadas em meia hora de conversa é um desafio e tanto. Mas longe de ser penoso. Certamente, menor do que o de fazer uma escola no sertão nordestino passar de uma pontuação de 3.8 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), em 2015, para 8.0 em 2022, de acordo com os dados divulgados na última semana. A conquista, comemorada com muita alegria pela fundadora, representa o fruto de um trabalho contínuo realizado em Inajá, município a sete horas e meia de Recife, e um dos 300 atendidos pela ONG hoje. Depois de ultrapassar essa meta, Alcione entrega qual é a próxima: chegar à nota 9 em breve.
A evolução ao longo do tempo é o resultado de um trabalho “de muito amor”, como define a fundadora do projeto ao EXAME IN. De esforço, também. Hoje, o Amigos do Bem atende 150 mil pessoas mensalmente, em um trabalho que envolve o ensino de crianças e adolescentes no sertão nordestino – com uma metodologia criada pelo projeto e totalmente adaptada à realidade desse público – bem como a nutrição dessas famílias e a alocação de postos de trabalho tanto para os pais de quem está na escola quanto para os jovens recém-formados. É essa ‘orquestra’, que hoje tem mais de 10,6 mil voluntários recorrentes para colocá-la de pé, o aspecto-chave para os resultados observados recentemente.
Conseguir chegar a esse ‘estado da arte’ de modelo sustentável para o desenvolvimento socioeconômico local levou tempo. Mais precisamente, vinte e nove anos. Em 1993, Alcione Albanesi decidiu tirar do papel um projeto que surgiu a partir de outras iniciativas de apoio à população criadas por sua mãe, Guiomar Albanesi, em São Paulo. A iniciativa da mãe (que existe até hoje) trata de 11 creches nas comunidades paulistanas, em que são atendidas mais de 2 mil crianças. Há quase 30 anos, quando colaborava com esse trabalho, Alcione ouvia das mães das crianças que a pobreza daqui nem se comparava à do sertão nordestino – local de onde muitas dessas mulheres, aliás, haviam saído.
De olho em entender essa realidade de perto, ela reuniu 20 amigos, 1.500 cestas básicas e foi visitar a região no Natal daquele mesmo ano. O sertão pernambucano foi o primeiro. Ao chegar lá, Alcione afirma que se deparou com o que define como “uma pobreza comparável à de países africanos”. Algo que a surpreendeu na dimensão em ser algo inimaginável no Brasil, para ela, até então. “A gente ia entrando nos povoados e as pessoas não sabiam em que ano estavam, não tinham acesso a energia elétrica, todas as casas de barro sem o que a gente considera o mínimo para viver”, diz.
Comovida com a situação local, ela tornou o que aconteceu naquele Natal um evento recorrente. Nos dez anos seguintes, passou a data e o Ano-Novo no sertão nordestino. A viagem com caminhões para chegar até aos locais mais remotos levava alimentos, roupa, brinquedos, médicos, remédios, e o que mais coubesse e fosse necessário. Nessas viagens, Alcione levava a própria família para ir junto. Hoje, os quatro filhos dela têm uma atuação relacionada ao projeto – algo que ela descreve com muito orgulho e que atribui a esse trabalho realizado durante tantos anos. Repassando, de modo geral, o ensinamento da própria mãe.
Uma década depois, a vontade de transformar o projeto de “Papai Noel” em algo maior moveu a fundadora. E, para tirar esse objetivo do papel, ela teve de abrir mão de algo igualmente importante: a FLC Lâmpadas, empresa fundada por ela e que, na época da venda, tinha 36% do mercado no Brasil, à frente de todas as concorrentes. Foi ela, Alcione, aliás, a primeira mulher a ir para a China e trazer a primeira lâmpada econômica e a primeira fábrica de leds para o país. Importante lembrar que não foi a primeira vez que a executiva se movimentou no empreendedorismo: quando ela tinha 17 anos, teve uma confecção de roupas que chegou a ter 80 colaboradores.
“Vender a empresa foi a decisão mais difícil da minha vida. Eu assinei o contrato de venda chorando, tanto que até hoje o papel está meio borrado das lágrimas que caíram. Mas vendi a empresa muito consciente da decisão que tinha tomado e de saber que o que eu queria, nesta vida, era poder transformar a vida das pessoas”, diz Albanesi.
Na época, o primeiro trabalho, em poucos deles, foi o de construir casas de alvenaria para as famílias, a fim de substituir as casas de barro em que moravam. Para isso, Alcione comprou terrenos – usando grande parte de recursos próprios, além de poucas doações – para contratar equipes que construiriam as casas. Mais do que isso, também começou, junto com esse projeto, uma plantação de caju. Hoje, são mais de 100 mil pés plantados em Pernambuco e outros 100 mil no Ceará, que geram postos de trabalho. Além disso, ao longo do tempo, o projeto também construiu fábricas de beneficiamento de castanha de caju, que geram os produtos vendidos para grandes supermercados – e se tornam fontes de renda tanto para as famílias quanto para o projeto em si. São, ao todo, 15 unidades produtivas que geram mais de 1.500 empregos.
Hoje, ao contrário do início, em que todos os recursos vinham praticamente da fundadora, o projeto conta com três fontes de renda: as parcerias com empresas, doações de pessoas físicas (sendo estas principalmente alimentos) e o dinheiro que vem a partir das vendas dos produtos das fábricas.
“Essa foi a primeira parte, mas daí constatamos que todos os trabalhadores eram analfabetos. Famílias inteiras que não sabiam ler e escrever há gerações, e quando olhamos para os jovens, era claro que eles seguiram esse mesmo caminho. Foi então que tomamos a decisão de romper esse ciclo com educação”, diz Albanesi.
Então, em 2010, o projeto passou a construir o que hoje são os chamados Centros de Transformação. Ou seja, locais em que as crianças e adolescentes poderiam ter acesso ao ensino e a atividades extracurriculares. São quatro, ao todo, sendo que cada um tem 25 salas de aula. As disciplinas ensinadas vão desde as tradicionais – a partir de um projeto de cooperação com as escolas municipais já existentes – até às extras, completando um turno integral na escola. A gestão de tudo, da merenda ao ensino, é totalmente feita pelo Amigos do Bem.
“Nós pegamos Idebs muito baixos, de 2.0, 3.0, crianças que realmente não sabiam nada. E começamos a trabalhar muito. E foi muito difícil. Primeiro porque elas não tinham base nenhuma, segundo porque tinham um elevado grau de desnutrição. Tivemos de fazer uma força-tarefa junto com os voluntários médicos para que as crianças pudessem comer melhor e ter a chance de aprender. Ano a ano fomos trabalhando e hoje temos mais de 500 jovens formados na universidade. É a primeira geração dessas famílias a ter um diploma”, diz Albanesi.
E para onde vão esses jovens formados? Alguns vão para as fábricas, outros para a área de tecnologia e outros, os que vão para a educação, viram os ‘multiplicadores do bem’, ou seja, se tornam os professores dos centros de transformação. Bom ressaltar que os 350 educadores que fazem parte do projeto, hoje, não são voluntários. São profissionais da região capacitados pelo Amigos do Bem e que passam por uma revisão mensal. O material didático e os planos de ensino, esses sim, foram criados por voluntários pedagógicos que acompanham a metodologia criada para o projeto.
“Qual é o nosso diferencial? É uma forma de ensinar que se aprofunda na história das crianças. Quando você vai ensinar alguém que é desnutrido, cujo pai e avô foram analfabetos, é necessário ter um trabalho ainda mais próximo das famílias, capaz de ‘falar com elas’”, diz Albanesi.
Além de desenvolver a metodologia e de contar com as escolas com cardápio adequado, o Amigos do Bem também conta com uma frota de 100 ônibus, que levam e buscam todos os dias 10 mil crianças. Os veículos chegam a percorrer distâncias de 30 quilômetros entre um local e outro para os dias letivos.
Nesse caminho já tortuoso, a pandemia foi o maior desafio de todos os tempos para o projeto, segundo a fundadora. A ONG, que atendia 70 mil pessoas mensalmente, passou a atender 150 mil. Com o isolamento social, os desafios da fome e, é claro, do ensino à distância, foram multiplicados.
Para solucionar o problema da fome, o projeto fez uma força-tarefa de doações de alimentos a serem doados. Em dois anos, foram 1,5 milhão de pessoas atendidas durante a pandemia, com mais de um bilhão de litros de água que chegaram ao sertão.
Resolver a questão do ensino foi bem mais complexo. Isso porque o EAD não era uma realidade em locais que nem mesmo acesso à internet têm. A solução encontrada foi a de, literalmente, levar a escola para casa de milhares de crianças. Spoiler: em 2020, o projeto alfabetizou 300 crianças em três meses. Como isso foi feito?
Em cada um dos 300 municípios atendidos pelo projeto, hoje, foi criada a figura do agente educador. Era um profissional de educação que acompanhava as dificuldades pedagógicas de cada criança atendida ali. O agente era treinado pelo próprio projeto e, junto a um pequeno grupo de professores, passava de casa em casa levando o material didático e ensinando às crianças. Nesse pequeno ‘comboio’ também estava incluída a figura do padrinho motivador, um profissional dedicado a estimular as crianças a não desistirem, que passava de casa em casa com psicólogos do grupo que faziam um apoio aos pais e às crianças.
Em 2021, com a flexibilização das restrições, as escolas passaram a receber pequenos grupos de sete crianças, em que era feita uma sondagem para avaliar o impacto da pandemia na defasagem de cada um deles. A partir dessas conclusões, foram trabalhadas aulas particulares.
“Criamos essa metodologia de ensino e hoje, depois de passar por todos os desafios que enfrentamos, ter esse resultado do Ideb é uma satisfação e tanto. Quanto trabalho, quanto esforço, horas de dedicação da equipe local… Tem de ter muito amor. Formamos uma corrente de amor e dedicação para alcançar esse índice hoje”, diz Albanesi.
O trabalho corpo-a-corpo é o que a fundadora do projeto define como um dos diferenciais para fazer com que as comunidades atendidas evoluam ao longo do tempo. A própria Alcione passa metade do mês, em média, visitando cada um dos três estados atendidos pelo projeto. “Para mudar a vida das pessoas é preciso conhecer a realidade delas e ter proximidade nesse acompanhamento do dia a dia”, diz.
Diante de um trabalho tão árduo ao longo de tanto tempo com as famílias na região, a fundadora do projeto quer expandir ainda mais a ‘rede de amor’ sob a qual o projeto opera. Hoje, são 10,6 mil voluntários ativos – que vão pelo menos uma vez por mês ao sertão. De olho em uma meta palpável, ela afirma que o próximo desafio que mira é chegar à nota 9 no Ideb.
Isso e um novo sonho que já começa a ganhar forma: a inclusão digital. Hoje, o projeto tem o primeiro ‘piloto’, o Praça Digital, que conta com contêineres espalhados no meio do sertão, em que jovens são preparados para empreender na tecnologia e poderem sair dali como programadores, aptos a prestarem serviços para qualquer empresa. O ponto aqui é dar vazão para mais uma oportunidade de geração de renda dos jovens. Hoje, o projeto ainda não tem uma visão exata de quantas pessoas já passaram por ele. O Amigos do Bem está em busca desse número em parceria com o Instituto de Desenvolvimento e Investimento Social (IDIS) e deve tê-lo em breve.
Ampliando ainda mais a visão sobre esse tipo de resultado, questionada a respeito de como tornar o Amigos do Bem um projeto nacional, Alcione destaca que o modelo de desenvolvimento social proposto é sustentável e que a própria expansão dele ao longo do tempo reforça isso. “É um modelo que pode ser replicado para promover transformação de vidas, educação, de pilares de saúde. Então acredito que ele pode em algum momento ser um modelo de política pública e ajudar não somente ao nordeste mas muitas regiões que ainda precisam de desenvolvimento e crescimento social”, diz.
Em última análise, a meta é conquistar cada vez mais. No país em que 33 milhões de brasileiros ainda vivem sob insegurança alimentar, o objetivo final – nada fácil – é fazer com que a fome seja lembrada como um fato histórico. No que depender de Alcione, a estratégia deve continuar a mesma: ensinar a fazer o bem.
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