Americanas: caso terá implicações em muitas frentes do Direito (Americanas/Divulgação)
Graziella Valenti
Publicado em 19 de janeiro de 2023 às 10h36.
O rombo de R$ 20 bilhões na Americanas está tirando das férias todos os advogados que pensaram que janeiro seria um mês tranquilo. O que mais têm espantado a todos, além do próprio fato em si, é a força com a qual as instituições financeiras estão atuando. E quem não está ainda está se preparando para. A companhia, que tinha R$ 7,8 bilhões em caixa, incluindo contas a receber, praticamente já não consegue movimentar mais nada de seus recursos que, claro, estavam em bancos. No fim de semana que passou, houve uma correria em busca de advogados especialistas em reestruturações financeiras e recuperação judicial. Mas, silenciosamente, agora é a vez dos criminalistas também passaram a ser muito demandados, pelos bancos e, claro, pela própria companhia e seus administradores.
O motivo, tanto da fúria dos credores, como da preocupação da Americanas e seus administradores, é a suspeita de fraude das demonstrações financeiras, por anos a fio. Não se trata esse de um caso em que um fator exógeno ou uma circunstância macroeconômica surpreendente teriam colocado a companhia em dificuldades. O cenário de estresse seria fruto de algo construído — por erro ou dolo, ainda não se sabe — por anos. A conclusão se houve ou não intenção de enganar ainda não existe e pode demorar, mas os cuidados para lidar com as possíveis implicações já estão sendo tomados.
A eventual fraude, se confirmada, pode levar companhia e administradores a serem acusados de estelionato. O estelionato se caracteriza, segundo especialistas consultados pelo EXAME IN, quando pessoas físicas ou jurídicas — bancos, fornecedores e toda sorte de envolvidos — tomam decisões com base em informações enganosas e são prejudicados por isso. A dúvida é como e se isso afetaria uma recuperação judicial.
Mas aqui vale lembrar que esse tipo de investigação leva tempo. O comitê que a companhia montou ainda nem teve condições de começar o trabalho corretamente. A condução será de Otávio Yasbek, ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas os outros dois anunciados como participantes têm o problema de serem conselheiros (inclusive um ex-auditor) e até participantes do comitê de auditoria. A expectativa é que só Yaskek siga.
Para complicar, o caso ainda traz a discussão sobre uso de informações privilegiadas — que também é crime, inclusive, com pena de reclusão. Depois que Sergio Rial foi anunciado como próximo presidente da Americanas, em agosto de 2022, para assumir a partir de janeiro de 2023, a diretoria da companhia acelerou as vendas de ações, como o EXAME IN mostrou já no dia 12, logo após a divulgação do fato relevante da empresa (início da noite do dia 11).
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Em janeiro, os diretores da companhia tinham pouco mais de 31 milhões de ações da Americanas. Ao fim de julho, esse total estava em 29,6 milhões. Esse volume recuou para 18,6 milhões até dezembro, ou seja, uma redução de 40% na posição, com movimentação de volumes financeiros superiores a R$ 200 milhões. Pessoas próximas à empresa reforçam que as vendas estão relacionadas a execução de chamadas de margem em contratos financeiros nos quais os papéis eram garantia. A ação tem uma trajetória contínua de queda desde a união entre Lojas Americanas e B2W, em dezembro de 2021.
Entretanto, de acordo com advogados, o fato não exime a discussão de “insider information”, uma vez que nessas circunstâncias, normalmente, o cliente da instituição financeira sempre possui a alternativa de fazer a cobertura em dinheiro. Ou seja, permitir a execução é uma opção. É preciso entender os contratos, se for mesmo o caso de chamadas de margem. Para completar, a posição de “vendidos” na ação da empresa aumentou em 600% nesse mesmo período.
O caso Americanas, portanto, ganha cada dia que passa, contornos mais dramáticos. E, até agora, o clima nas negociações entre os sócios da Americanas, o trio mais famoso do universo empresarial brasileiro — e mais rico — Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, e os bancos credores está longe de ser em direção a um consenso.
A companhia anunciou na segunda-feira a contratação do Rothschild, que no Brasil é conduzido por Luiz Muniz, para liderar as negociações. A fama da instituição para essas situações vai longe, tanto emreestruturações financeiras, como casos envolvido conflitos. Pois não foi essa a casa que liderou as conversas para que o Casino conseguisse comprar a participação de Abilio Diniz no Grupo Pão de Açúcar para acabar com um conflito entre eles? Ou ainda representou os bondholders da antiga OGX no auge da crise? Para completar, o banco, nacional e internacionalmente, tem a confiança do trio 3G.
Mas nem mesmo o Rothschild está conseguindo, até o momento, fazer os ânimos esfriarem. Ninguém quer arredar pé de seu ponto. Nem os credores, que querem ver os o trio de sócios aporte mais do que os R$ 5 bilhões ou até R$ 6 bilhões sugeridos — e esse valor ainda contém no racional que os bancos também convertam dívida em ações, alcançando um total entre R$ 15 bilhões e R$ 18 bilhões em capitalização. Nem os sócios, pois não querem ir sozinhos como salvadores, sem conversão de dívida dos bancos, porque a tese deles é resolver o problema da Americanas e não dos bancos isoladamente, ou seja, a empresa precisa sair bem do outro lado, viável.
Agora, a Americanas adotou um tom de que vai para recuperação judicial porque está sendo empurrada pelos bancos, demonstrando que dos R$ 7,8 bilhões que possui em caixa, praticamente nada disso pode ser movimentado. Ou seja, não possui recursos realmente disponíveis. Mas o que mais causa estranhamento, na verdade, é como o caixa caiu tanto de setembro até agora, sendo que no meio do caminho houve Black Friday e Natal — historicamente o melhor trimestre da empresa.
Ao fim de setembro, a companhia tinha quase R$ 8,5 bilhões em valores disponíveis e aplicações em títulos e valores mobiliários e mais cerca de R$ 5 bilhões em contas a receber de clientes (como parcelamento via cartão de crédito). Pelo que a empresa comunica agora, houve uma queda nesse total superior a R$ 5,5 bilhões no caixa desde setembro. Os recebíveis, por exemplo, foram substancialmente reduzidos e estariam em R$ 3 bilhões. Eles poderiam ser descontados antecipadamente, mas nenhum banco está disponível para tal. Em aplicações e caixa, haveria agora R$ 4,8 bilhões, mas tudo bloqueado.
Na sexta-feira passada, durante a reunião ainda conduzida por Rial, houve a solicitação de que fosse feita a antecipação de R$ 1 bilhão ao menos. Ninguém topou. Aliás, essa reunião azedou tudo. Não pelo debate propriamente, mas porque logo após veio a decisão da companhia de pedir uma medida cautelar protegendo seus recursos, uma espécie de decisão de urgência até um pedido de recuperação judicial ou um acordo privado (cada dia mais distante). E durante a conversa as instituições financeiras não teriam sido alertadas de que essa iniciativa já estava em curso, enquanto conversavam.
Tudo parece ser apenas o começo de uma longa batalha. Ela será, pelas indicações, mais demorada e mais dura quanto mais distante parecer o caso distante de uma solução, no que diz respeito à disposição de Lemann, Sicupira e Telles de capitalizarem a empresa.
Todos estão em um clima de perseguir e encontrar culpados antes de garantirem a própria sobrevivência ou recuperação de valores. Mesmo os bilhões que a empresa possui em caixa hoje, quando bloqueados, não garantem que os bancos vão receber todos os créditos. Já o trio, não entendeu ainda o tamanho da onda que se levanta. Esses mesmos bancos são credores de Ambev, Burguer King, AB Inbev, Kraft-Heinz, pois instituições internacionais como BofA e Goldman Sachs foram afetadas também.