Jairo Saddi: se bancos mudarem cultura, digitalização é oportunidade e não uma ameaça (Divulgação/Divulgação)
Graziella Valenti
Publicado em 10 de dezembro de 2020 às 14h23.
Última atualização em 10 de dezembro de 2020 às 17h36.
O desafio dos bancos — ou bancões, no caso brasileiro, dominado por cinco grandes atores — não são as fintechs. Sem lucro e ainda sem a mesma experiência na concessão de crédito, essas instituições novatas não são a panaceia para o sistema financeiro que todos pensam que elas são. A ameaça aos bancos está dentro deles próprios, se não fizerem as mudanças que as fintechs evidenciaram ser necessárias.
Pelo menos, é o que acredita o advogado e pós-doutor por Oxford Jairo Saddi, um dos maiores especialistas em sistema financeiro no Brasil. As fintechs trazem, acima de tudo, a provocação que determinará quem sobreviverá ou não entre as grandes instituições a esse chacoalhão que a tecnologia e o mundo do big data estão trazendo a essa indústria.
Para Saddi, especialista em direito econômico e bancário, o que os bancos precisam conseguir nessa nova era é encantar o cliente e entender que devem ajudá-lo a ganhar dinheiro — e não “espoliá-lo” como é a crença do consumidor em relação a esse prestador de serviço. Para a pessoa física, cabe especialmente um trabalho voltado para a educação financeira, para ajudar o cliente na contratação do que é mais conveniente e acertado.
“A relação da Apple com o cliente, por exemplo, é absolutamente transparente. O cliente compra porque está encantado. Mas sabe que está pagando caro por isso. Banco precisa ter proposta de valor”, destaca ele.
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Em uma visão quase revolucionária, Saddi, que conhece os meandros do setor — e os segredos — como poucos, entende que os bancos deveriam ser agentes de geração e da democratização — e não do aumento da concentração — de riqueza. E traz uma definição quase poética para o crédito: “Não há uma forma de antecipar desejos futuros no presente se não com crédito”.
Saddi não vê nas fintechs — nem no Pix, diga-se de passagem — nenhuma mudança fundacional para o sistema, pois oferecem essencialmente os mesmos produtos bancários, com uma melhor apresentação e facilidade de uso pelo cliente. “Se olhar bem, nem a redução de custo é uma verdade.” Elas trazem, portanto, evoluções superficiais, diferentemente do que fizeram os ATMs, criados em 1962, e o cartão de crédito, pelo sistema financeiro.
Ainda que a digitalização traga junto um processo de desintermediação financeira importante, Saddi vê poucas ameaças externas aos bancos. “O avô do Pix foi o cheque pré-datado, uma experiência muito bem-sucedida, que chegou a representar 80% do crédito concedido no país. O pré-datado tirou do banco a capacidade de dar crédito e deixou a relação direta entre credor e devedor.”
Para Saddi, dar crédito é uma ciência que só o tempo aprimora, “com processos, repetição e experiência”. E, portanto, se assim desejarem, as grandes instituições financeiras têm a faca e o queijo na mão — se mudarem cultura e atitude — para liderar a transformação, com muito mais recursos para investir em tecnologia e esse conhecimento, que não está disponível no mercado. “Pode parecer ingênuo achar que um banco pode encantar o cliente, mas é claro que pode.”
Saddi acaba de compartilhar seus pensamentos — e dados, muitos dados — em um livro Fintechs — Cinco Ensaios. O livro, editado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), está disponível sem custo. Em uma conversa leve e solta, ele pensou alto nessa entrevista ao EXAME In sobre tudo o que vem ocorrendo.
Além de suas considerações e experiências, o autor compartilha diversas planilhas, com dados agregados que oferecem desde uma perspectiva histórica até fotografias incômodas. Os bancos privados nacionais, embora concentrem, 53,75% do patrimônio líquido das instituições financeiras do Brasil, respondem por apenas 37,71% das operações de crédito. Essas transações estão a cargo dos bancos públicos, que respondem por 19% do patrimônio líquido e 48,14% das transações de crédito.
Para Saddi, a preconização da morte dos bancos lembra o que ocorreu com o escritor americano Mark Twain (pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens), que se tornou mundialmente famoso pela obra As aventuras de Tom Sawyer. Diz a história que, durante seu café da manhã, em um belo dia, Twain leu seu próprio obituário no jornal. Ele teria sentenciado, diante da leitura: “As notícias de minha morte me parecem grave e grandemente precoces”.
Ex-conselheiro do Fundo Garantidor de Créditos (FGC), atual conselheiro do banco Votorantim, agora BV, Saddi acredita que muitos vão achar que está defendendo os bancos: “Não estou aqui para isso”, garante. Leia a seguir alguns trechos da conversa sincerona com Saddi e conclua você mesmo, leitor:
Por que é cedo falar na morte dos bancos? O que restará a eles para oferecer no mundo das fintechs e do Pix?
Essa discussão nem deveria ser sobre bancos e fintechs, mas sobre as giant techs. Essa é a questão mais séria, no meu entendimento, e não tem ninguém dando a mesma atenção a isso.
Quais giant techs? As FAAMG?
Sim, todas essas. Apple, Google, Facebook... Elas têm caixa para ameaçar qualquer banco e um foco limitado de atuação. Essas empresas já começam a abrir o leque do que podem trazer ao consumidor, à medida que o mercado original delas se esgota. Por que elas não podem fazer serviços financeiros? A Apple já fez um ensaio com o Apple Pay. Não deu certo, mas com o caixa que elas possuem e o esgotamento dos mercados, não tenho dúvida que entrarão nisso.
Mas de que forma fariam?
O Google é dono do Waze, certo? Então: imagine que você busca uma concessionária próxima a você. O Waze te diz o endereço e, mais do que o caminho mais curto, ele já te oferece um financiamento no trajeto até lá. Você chega na concessionária com uma proposta de crédito aprovada. Não é aquele processo penoso, aquele calvário de juntar documento, provar renda. Você sai com um carro novo em meia hora. Detalhe: e ele pode operar sem estar no Brasil.
Mas essa concorrência não pode ser algo bom para o sistema?
É ótimo. Seria muito bom se todo mundo pudesse participar. Mas aí vem a pergunta: “Como regular isso? O Google nem no Brasil está.” É um risco e uma oportunidade, ao mesmo tempo.
Então, certo, o Google vai também dar crédito, é a isso que temos de nos acostumar?
Mais ou menos. Só sabe dar crédito direito quem tem experiência em crédito. Parece meio obvio, mas não é. Aí é que está a questão. É disso que venho tentando falar.
Que isso é uma grande ciência é o que mais se ouve por aí. Mas você acha que isso ainda é uma verdade na era do big data?
Ainda é. Com big data, passa a ser menos verdade, por um lado. Mas, mais verdade, por outro. De fato, você consegue melhorar o ambiente com big data. Mas achar que uma fintech que acabou de inventar um cartão vai saber fazer isso direito porque tem 20, 30, 40 milhões de clientes, sem nunca ter vivido crise e sem experiência com provisão, me parece exagerado.
Mas você não acha que elas podem lidar melhor com ambiente de big data do que os bancos?
Existe o argumento de cultura, é verdade. Mas o investimento em tecnologia necessário não é pequeno. E os grandes podem fazer melhor. Aqui é o clássico The winner takes it all. Por outro lado, o que se vê no mercado é que as fintechs estão sendo feitas para ser compradas. E, até agora, o único critério de medição de sucesso usado é o número de clientes. Mas, convenhamos, isso é pouco qualificável. O que é o cliente? O que cadastra? O que transaciona? O que dá lucro? Isso ainda não é claro no mercado. A discussão da lucratividade é central nessa atividade. Além de eu não achar que as fintechs podem tratar os dados melhor, o crédito exige experiência, para além da tecnologia.
Mas o que pode determinar sucesso tanto para fintechs quanto para bancos?
Ter uma visão muito clara de produto e, portanto, de nicho que você quer atingir. O Brasil ainda tem muita assimetria. Se você não tem uma estratégia e um projeto muito claro, não vai conseguir ter uma fintech que encante, nem um banco. No caso da fintech, ela pode encantar no cadastramento, na transação e no cartão colorido. Mas olhe os limites para o crédito. Elas não têm. Já os grandes bancos, por outro lado, têm os limites e a experiência, mas não encantam.
O que você chama de encantar?
A Apple não encanta o usuário? Você não tem esse encantamento em banco. E não há razão para não ter. Esse encantamento da jornada poderia existir na instituição financeira, mas não existe.
E é culpa de quem? Do banco?
Claro! A Apple gera encantamento porque, do começo ao fim da cadeia, ela se preocupa com isso, da embalagem ao uso. Tudo na Apple tem padrão. É muito caro porque ela cobra esse encantamento do usuário. E o cliente está disposto a pagar por isso. O cliente faz fila por isso. De novo: não tem isso em banco.
Mas isso não tem relação com supérfluo e essencial?
Não. A questão é a centralidade no cliente. A Apple transmite sinceridade. Os bancos ainda não construíram isso.
Com toda a digitalização, ainda dá tempo de os bancos correrem atrás?
Os bancos poderiam encantar. Poderiam ser amados pelos clientes. Claro que dá tempo. Obviamente tem custo de observância muito mais alto, que se desmontar isso tem crise. E isso torna os bancos especiais. Banco não é padaria. Tem uma coisa de muita confiança. Se ele quebra, quebra uma cadeia. Em 2008, o sistema fez uma série de alterações para ficar mais robusto. E o sistema está mais resiliente. Não teve nenhuma crise bancária no mundo com a pandemia, em razão dessa robustez.
Não entendi. No fundo, então, o preço da segurança é o desencantamento?
Não. É possível pensar em mercado, em regulação e em encantamento. Mas precisa ter proposta de valor clara. E aí precisa cobrar.
Mas o problema no Brasil não é que essa relação está invertida? Quanto menos oferece mais cobra?
Não dá para falar que é mentira. E nem precisamos falar só das tarifas. Taxa de administração de fundo também é assim. Quantos produtos de varejo não cobram taxas muito altas? Mas o mundo digital é uma oportunidade de criar essa transparência e trazer confiança também nisso. É a velha máxima: o sol é o melhor desinfetante. O digital é um caminho para esse encantamento.
Mas será que o banco quer mesmo encantar?
Há uma imagem, uma ilustração, bem conhecida de que banco empresta guarda-chuva só em dia de sol e para quem tem pelo menos uns três. E, na hora em que começa a chover, recolhe do mercado. A oferta de crédito no Brasil mostra isso um pouco. Já melhorou: saiu de 29% do PIB para quase 60%, em 20 anos. De 2.000 até agora. Mas, no Chile, aqui ao lado, já é quase 100%. Os bancos têm um encontro marcado agora com a realidade, com os juros a 2% ao ano. Ainda que a taxa [Selic] possa subir, não dá mais para cobrar spreads de 15% a 20%.
Mas continua sendo cobrado. Até mais, às vezes.
Sim. Pelo lado do governo, achar que só Pix e concorrência vão resolver isso é um engano. O custo bancário cai com certeza jurídica. Concorrência é um capítulo. Inadimplência e provisões em banco ainda são as contas mais altas. Precisa ter certeza jurídica de recebimento. Se não tiver isso, crédito sai caro. Risco é algo que pode ser precificado. Incerteza, não.
Mas que tipo de melhoria de sistema acha possível e importante?
Não há razão para o Brasil não ter um sistema unificado de garantia escritural online. Mas, não temos. Ao contrário, escolhemos aqui reconhecer firma, fazer cessão fiduciária. Isso para não falar nos tipos de garantia. Não é simples. Achar que sim é uma bobagem.
E como aproveitar as inovações possíveis?
Não há nenhuma razão para não colocar o blockchain nessa história e acabar com cartório no Brasil. Sistema financeiro sempre foi elite. Você mudar o poder com o que você tem, deveria ser regra número 1. A Colômbia fez reforma no sistema de garantias e implantou uma série de coisas via internet. Você tinha lá um movimento da ordem de 30 mil escrituras por ano. Hoje tem 800 mil. Governo está aí também para reduzir custo, não é só para cobrar imposto. Esse é outro papel que sistema financeiro deveria entrar, não ficar defendendo interesses setores. Mas isso é outra conversa.
Bom, no fim, tudo é sobre crédito, então?
Crédito é uma maneira de redistribuir riqueza. Crédito e microcrédito são uma forma importante de progresso. E achar que outros produtos podem fazer isso é uma ilusão. Só com crédito você vai tirar pessoas do nível de pobreza.
Mas a percepção da população sempre foi que o banco tira dinheiro delas, nunca dá.
Bom ponto. Mas não deveria ser. Essa visão, se ela aconteceu no passado, não deveria ocorrer no futuro. Se isso acontecer, será o prenúncio da própria morte dos bancos. Os bancos não deveriam tirar riqueza do cliente. Eles deveriam gerar riqueza para o cliente. Se isso foi assim no passado, no futuro isso não vai ser igual. Você gerar riqueza para seu cliente mediante o serviço é a ideia. Talvez seja a coisa mais nova de todo esse processo. Cooperação. Bank as a service é uma forma de cooperação.
Certo, e qual o papel da fintech nesse processo?
Pode ser que seja mostrar tudo isso ao provocar o banco. Pode fazer o sistema acordar. Acho que o sistema está preocupado. É só ver o que acontece no mercado de ações, com as ações de bancos. Essa provocação é real. Os bancos vão reagir. Mas reação implica em melhor jornada, melhor tratamento e coisas mais óbvias. Fazer produtos de capitalização em banco é o fim do caminho. Tem tudo de errado lá: mascara objetivo e extrai renda. Não consegue ser pior produto. Tudo errado.
E, então, de volta ao começo, entre as fintechs e os bancos, quem vai sobreviver?
Papel sempre vai ter para todo mundo. Nem que seja de nicho. Mas pouca gente sabe o que vai acontecer no futuro. Também não tenho todas as respostas. Mas o que me preocupa mais não é não ter modelo, é não ter instrumento para garantir que tudo isso vai ocorrer da melhor forma. Você precisa dar ao cliente o que ele quer quando ele quer e ainda fidelizá-lo. Mas, em geral, você acaba empurrando coisas que seu cliente não quer, não precisa e acha caro. Já pensou se reinventar tudo isso: dar coisas que ele precisa, quer e está disposto a pagar?
De fato, parece que as fintechs, são, de fato, o menor dos desafios dos bancos. O sonho dos clientes é o verdadeiro desafio.