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Além da Light: como o futuro da distribuição de energia no Brasil começa a ser definido

Nota técnica dá os primeiros passos para estruturar a renovação de concessões que envolvem 60% da distribuição de energia do país

EDP: empresa é a primeira na fila de concessões que devem vencer entre 2025 e 2031 (Rafael Marchante/Reuters)

EDP: empresa é a primeira na fila de concessões que devem vencer entre 2025 e 2031 (Rafael Marchante/Reuters)

Karina Souza
Karina Souza

Repórter Exame IN

Publicado em 26 de junho de 2023 às 19h21.

Última atualização em 13 de dezembro de 2023 às 19h30.

O Ministério de Minas e Energia liberou, na última semana, o tão aguardado documento que inicia as discussões sobre o futuro das concessões de distribuição de energia. A nota técnica nº 14/2023, que saiu na quinta-feira, 22, não trouxe números exatos, um ponto de frustração para analistas que cobrem o setor, como mostraram os relatórios de bancos. Mas deu uma direção para as discussões que virão daqui para a frente, na forma de consulta pública, a ser encerrada daqui 30 dias, aproximadamente. Advogados ouvidos pelo EXAME In apontaram alguns destaques no documento: a ambição de corrigir as distorções do Decreto nº 8.461, de 2015, o último que discutiu o tema, a ênfase em tecnologia e as (possíveis) saídas apontadas para o futuro da Light, a distribuidora de energia do Rio em recuperação judicial.

A forma como a norma de 2015 foi colocada em discussão foi criticada, na época, pelo Tribunal de Contas da União (TCU). “Na época, não houve uma discussão pública, em meio à pressa para definir o que aconteceria com essas empresas. Nesse documento, ficou decidido que as concessões seriam prorrogadas e, nos cinco primeiros anos após a renovação, seria identificado se as empresas estavam operando da melhor forma ou não. O TCU fez críticas a esse modelo, sob o argumento de que não havia comprovação de que era melhor prorrogar do que relicitar. Daí veio a proposta atual, de uma análise prévia das empresas", explica Frederico Accon, advogado do escritório Stocche Forbes e membro da Comissão Especial de Energia Elétrica da OAB/RJ, ao EXAME In

De olho em corrigir essa ineficiência, a nota técnica de 2023 propõe a análise prévia das empresas candidatas a renovar a licitação por meio de dois critérios: qualidade do serviço, avaliada “com base em indicadores que considerem a frequência e a duração média das interrupções do serviço público de distribuição de energia elétrica”, e, o segundo, com base em eficiência da gestão econômico-financeira das concessões (sem detalhes sobre os critérios a serem analisados, o que abre espaço para as empresas se posicionarem a respeito das métricas utilizadas nesse sentido). 

A norma também fornece alternativas para os casos em que esses dois pontos não forem cumpridos — como aconteceu com a empresa que atua no RJ — de modo a não levar diretamente ao fim dos contratos. A proposta é de que caso as empresas tenham um plano de recuperação e de correção das falhas aprovado pela Aneel ou uma troca de controle acionário por um controlador que comprove capacidade de gerir concessões de distribuição, possam se candidatar à prorrogação das concessões.

Extrapolando o universo da Light, a nota técnica aponta para a realização de uma investigação sobre “excedente econômico” nas concessões de distribuição, comparando o fluxo de caixa trazido a valor presente com a remuneração estabelecida pela regulação. 

Os analistas João Pimentel, Gisele Gushiken e Maria Resende, do BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da EXAME) apontam que a nota técnica não afirma qual período será observado para estabelecer esses critérios, o que deixa incerteza sobre a forma como serão analisados (se por tamanho de concessão ou por mediana, por exemplo). Para trazer alguma comparação a esse cenário, eles estimaram, em relatório, qual seria o efeito desse excedente sobre o volume de investimentos realizados pelas concessionárias (RAB, no jargão) considerando três períodos. Em três anos (2019-2021), a mediana de todas as concessionárias, incluindo a Light, apontaria para um excedente de 25%. Em quatro anos (2018-2021), seria de 17% e, num horizonte de cinco anos (2017 a 2021) seria de 4%. A comparação ilustra apenas a diferença que o horizonte de tempo pode fazer -- uma vez que não é intenção do governo promover redução de investimentos a partir do excedente, caso seja verificado.

Além disso, os analistas ressaltam que, durante 2020 e 2021, a diferença entre o IGP-M e o IPCA causou uma distorção no setor entre aqueles que eram corrigidos por um ou por outro índice. “Na nossa visão, um período mais longo de observação parece mais preciso. Mas faz sentido o governo capturar ganhos de eficiência baseados em um evento que foi mais uma exceção do que qualquer outra coisa? Nós defendemos a visão de que a Aneel já faz o trabalho de capturar esses ganhos de eficiência em cada revisão de tarifa. Mudanças deveriam ser feitas via Aneel”, afirmam.

De olho em equalizar essas diferenças entre índices de reajuste, o documento propõe que todas as concessões sejam reajustadas pelo IPCA. “Traz uniformidade, tem sido o índice usado em todos os contratos de mercado regulado”, diz Ana Karina Souza, sócia do Machado Meyer, ao EXAME In.

As dúvidas de um mercado em transformação

Voltando à questão do excedente econômico, o documento aponta que, independentemente de ser comprovada a ‘sobra’ de dinheiro além do esperado com a operação, algumas questões novas devem ser endereçadas para as companhias do setor, como a contrapartida social.

Aqui, novamente não foram definidos critérios rígidos. A informação base é a de que a destinação dos recursos deverá ser realizada de forma coordenada pelo Ministério de Minas e Energia, com apoio das próprias distribuidoras, para serem destinados à sociedade. As fontes dos recursos, em uma primeira análise, poderiam ser quatro: o excedente econômico, os recursos de programas de eficiência energética, outras receitas relacionadas às atividades acessórias e excedentes do custo de capital em razão de benefícios fiscais concedidos a determinadas regiões do país. Os montantes devem ir para temas relacionados com eficiência energética e modernização das redes de distribuição — com o racional de garantir ganhos para a empresa e para a sociedade ao mesmo tempo.

Em uma linha similar, vêm os investimentos em digitalização do setor, de olho em ampliar a gama de serviços a serem oferecidos por essas empresas, como “informações em tempo real sobre consumo, gestão financeira e novas possibilidades de arranjos tarifários”, afirma a nota. São mudanças que vêm na esteira de um mercado em transformação, com a abertura do mercado para consumidores do grupo A (a partir de 500 kW) com início em janeiro de 2024, e com perspectivas de abertura para os demais grupos entre 2026 e 2028. Isso sem falar no avanço da geração distribuída, que já soma 26 GW no país.

Para Raphael Gomes, sócio da área de Energia do Lefosse Advogados, apesar de a nota técnica trazer essas questões, traz insegurança jurídica, uma vez que os critérios que vão definir o funcionamento do setor ainda estão sob discussão no Projeto de Lei nº 414, que tramita há oito anos e deve ditar as regras para todo o setor. O ponto é substituir a Lei nº 10.848, de 2004 (que cumpre o mesmo papel) acompanhando os avanços tecnológicos dos últimos 20 anos.

“O negócio da distribuidora é o que está mais sensível às mudanças do setor elétrico. A gente está discutindo os próximos 30 anos de concessão, sendo que nos primeiros seis anos essas empresas têm um potencial de perder uma parte relevante de seus consumidores. Há uma desconexão que não precisava existir, caso o PL já tivesse saído do papel. Inclusive porque ele já endereça algumas questões, como o fato de essas empresas serem mais prestadoras de serviços e não tanto ‘revendedoras de energia’”, diz, ao EXAME In.

Além dessa dúvida sobre como a situação será resolvida, restam outras, a serem endereçadas pela consulta pública. Outro ponto, por exemplo, tem a ver com o processo de renovação de concessões. A norma técnica abre espaço para que empresas possam entrar com o processo antes dos 36 meses habituais, além de apontar um processo de cerca de um ano e meio de análises e consultas públicas para que seja concluído. O que não ficou claro, nessa primeira etapa, é a quem esse novo processo se destina: a todas as concessionárias ou apenas às que decidirem renovar antes do prazo? Ainda não há resposta.

Daqui a um mês, as novas diretrizes sobre o funcionamento do setor devem ficar mais claras, com a divulgação dos resultados da consulta pública sobre o tema. Por enquanto, investidores se ocuparam de fazer cálculos com os dados disponíveis na Aneel, mas ainda aguardam uma definição exata a respeito do que deve vir pela frente. A questão da Light é apenas a ponta desse processo, que envolve a concessão de 60% da distribuição de energia no país.

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