Daniel Goldberg: "No país dos cartórios, a parceria de estudos para a vacina de Oxford é um evento tão precioso quanto raro" (Germano Lüders/Exame Hoje)
Graziella Valenti
Publicado em 8 de julho de 2020 às 15h45.
Última atualização em 11 de julho de 2020 às 15h40.
Um misto de euforia e alívio tomou conta de grande parte da frente de batalha na pandemia da covid-19 aqui no Brasil quando nosso Ministério da Saúde anunciou uma parceria para o desenvolvimento da vacina contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2).
A vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca foi considerada pela Organização Mundial da Saúde uma das mais promissoras (há pelos menos outras 132 contendoras, dez em fase de testes clínicos) na corrida pela “solução” de uma pandemia que já matou mais de meio milhão de pessoas no mundo e é responsável pela maior queda da atividade econômica global nos últimos 90 anos.
Mais importante, a participação do Brasil nos estudos para o desenvolvimento da vacina garante que o país esteja na lista prioritária para a aplicação da vacina caso se comprove sua efetividade. Isso quer dizer que, num cenário otimista, nossos idosos e profissionais de saúde poderiam receber a vacina já em dezembro deste ano. Fantástico!
O secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Correia de Medeiros, afirmou que “no desenvolvimento de uma encomenda tecnológica, existe um risco associado a ele. Os estudos preliminares das fases I e II mostram que há uma resposta bastante significativa, mas, se os estágios clínicos não se mostrarem seguros, teremos aprendido com o avanço tecnológico”. Para grande parte da comunidade científica brasileira e dos envolvidos em pesquisa clínica, a construção da parceria com a academia e a indústria farmacêutica foi recebida com outro tipo de reação: em vez de alívio ou euforia, incredulidade e surpresa. No país dos cartórios, o que estamos vendo não é apenas inédito — para os pesquisadores clínicos brasileiros, a iniciativa mostra o país que poderíamos ser, que deveríamos ser... e definitivamente não somos.
Quando uma molécula nova que pode representar chance de tratamento ou cura é desenvolvida, o caminho da inovação biomédica é longo. Pesquisas pré-clínicas primeiro têm de estabelecer mecanismos biológicos básicos que fazem parte das hipóteses iniciais de pesquisa. No estágio seguinte, os estudos tipicamente vão a laboratório e esses mecanismos são testados. Depois de refinar o processo farmacológico, a corrida propriamente dita começa. Em média, menos de uma em cada sete moléculas novas acaba sendo introduzida como tratamento autorizado, uma taxa de sucesso inferior a 14%.
O teste clínico em humanos acontece em três etapas. Na fase I, os investigadores tentam descobrir em que dose o novo medicamento pode ser ministrado sem gerar efeitos adversos nos pacientes. Nessa etapa, só 39% dos medicamentos em desenvolvimento têm sucesso e passam à fase seguinte de investigação. Na fase II, pacientes que de fato têm a doença — são selecionados tipicamente de 100 a 300 — começam a receber o medicamento em desenvolvimento, em diferentes doses e indicações. Aqui, em média, apenas 38% das moléculas têm sucesso e passam para a etapa seguinte. Na fase III — em que a vacina de Oxford se encontra — é preciso estabelecer se o tratamento é seguro, eficaz e superior às alternativas (em geral, 33% das vacinas são aprovadas nesse estágio).
Para que as autoridades em saúde possam verificar se, de fato, o novo medicamento é superior às alternativas existentes, introduz-se o “placebo”. Parte dos pacientes no estudo recebe o tratamento tradicional, parte recebe o novo tratamento. Mas os próprios pacientes (e seus médicos) não sabem quem está recebendo o novo medicamento e quem está seguindo o curso “normal de tratamento”. Esse artifício estatístico é indispensável para uma melhor avaliação da eficácia do tratamento. Geralmente, milhares de pacientes são testados nessa fase — e cerca de 90% das moléculas são aprovadas.
Na jornada do laboratório até a aprovação para a venda de um medicamento (e o monitoramento pós-introdução no mercado, numa quarta fase), os custos e os riscos associados à inovação não são baixos. Um estudo da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, estimou em 2,6 bilhões de dólares o custo de desenvolvimento de um novo tratamento. Mas é graças a esse tipo de inovação que, depois de apenas seis meses do surgimento de uma doença completamente nova, já temos a perspetiva real de solução no horizonte.
Quando introduzimos um medicamento ou tratamento novo, considerações de ordem ética são importantíssimas: como lidar com os custos e os benefícios do novo medicamento — para os indivíduos que são parte do estudo e para a comunidade onde ele acontece? Como lidar com autonomia e consentimento em populações vulneráveis? Em que medida os pacientes que são parte de um estudo realmente conseguem entender as informações que recebem, e qual a extensão e formato das informações discutidas com os pacientes? Por exemplo, a chance de um novo tratamento oncológico ser aprovado como eficaz e superior às alternativas é de apenas 3,4%. Para muitos médicos, a baixa chance de que o novo tratamento seja eficaz — a priori — é motivo suficiente para a não inclusão do paciente em um estudo clínico que pode ter efeitos adversos importantes e impactar a qualidade de vida do paciente pelo tempo que ainda lhe resta. Já para a família desencantada com um prognóstico terrível qualquer chance de sucesso parece atraente. Por fim, assumindo que o tratamento funcione, por quanto tempo o laboratório que desenvolveu a molécula deve torná-la disponível para o paciente que participou do estudo? E quanto aos demais pacientes que acabaram excluídos? São muitas as questões — e nenhuma é fácil de responder.
No campo da bioética, o protocolo fundamental, resultado de muita discussão e que reflete a experiência acumulada de dezenas de países na tentativa de responder a essas perguntas — é a Declaração de Helsinque, redigida pela Associação Médica Mundial em 1964. O protocolo foi atualizado diversas vezes — a mais recente em Seul em 2008 — e incorporado a um manual de boas práticas clínicas que tem sido utilizado por instituições de pesquisa e comitês no mundo todo para avaliar novos tratamentos. Na maioria dos países, esses princípios de bioética em pesquisa foram transformados em lei e regulamentação e são aplicados pelas autoridades sanitárias — coadjuvados por comitês de ética em pesquisa que avaliam os projetos propostos pelas instituições.
E no Brasil? Aqui, como sempre, inovamos no campo institucional. Os 846 Comitês de Pesquisa (CEPs), a Anvisa e o Ministério da Saúde não podem avaliar nem aprovar novos estudos sozinhos. Um novo estudo clínico precisa da aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), uma instância adicional que monitora todos os projetos de pesquisa “de forma independente de influências corporativas e institucionais”, como atesta em seu site. A Conep, por sua vez, reporta-se ao Conselho Nacional de Saúde (CSN), cuja função é exercer o “controle social” sobre a política de saúde. Para exercer seu “controle social”, o CSN conta com 48 conselheiros titulares e diversos suplentes. Para zelar pela nossa política de saúde, contamos com os “conselhos” de seus titulares, como João Donizeti Scaboli, membro da Força Sindical, ou Vitoria Davi Marzola, componente dos quadros da União Nacional dos Estudantes — e que atualmente cursa enfermagem em Santa Catarina. O conselho agora é guiado pela mão firme e experiente de Fernando Pigatto, representante da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), que, segundo anuncia seu currículo, “desde jovem trabalha na agricultura e depois se tornou comunicador no jornal Gazeta de Rosário”.
No campo da bioética, cada novo estudo clínico precisa passar pelo crivo desse “tribunal da bioética” formado no âmbito do CNS, composto de membros supostamente especialistas em bioética — indicados por “segmentos da sociedade civil” e comandados por Jorge Venâncio, candidato a deputado federal derrotado em 2018.
Como no Brasil estudos clínicos têm de passar por CEPs, Anvisa e Conep, historicamente a pesquisa de novos medicamentos no país tem passado por trâmites muito mais longos do que em outros países — em que, usualmente, há um único órgão primordialmente responsável pela aprovação do estudo. Um trabalho que avaliou 46 estudos clínicos submetidos a esses guichês múltiplos entre 2007 e 2013 mostrou que 39% dos estudos foram interrompidos por desistência dos patrocinadores por causa da demora. Os estudos que foram aprovados, por sua vez, tiveram tempo médio de resolução em 378 dias. O resultado disso é que no Brasil, na época do estudo, a conclusão da pesquisa clínica demorava 11 meses mais do que a média dos países em desenvolvimento.
Mas o pior do sistema brasileiro não é a morosidade (ao que consta, a Conep tem investido na redução desses prazos). A existência de uma instância de “controle social” menos técnica do que seria ideal leva a situações bizarras. Um pesquisador me contou que diversos de seus estudos tiveram problemas — “pendências’’, no jargão da Conep — por causa da introdução do placebo. Como discutimos acima, todo estudo fase III precisa ter pacientes recebendo um medicamento inócuo, de forma a servir de “grupo de controle.” Em doenças graves, esses pacientes continuam a receber o tratamento tradicional — e, além disso, um medicamento que pode ou não ser o testado. Ao final do estudo, os pacientes que receberam o medicamento “verdadeiro” são revelados e inferimos se o remédio “funciona” ou não. Sem placebo, não há estudo. A Conep, segundo esse pesquisador, questionava “qual o benefício recebido” pelo paciente que recebeu o placebo! O absurdo do raciocínio dispensa maiores comentários.
Talvez o aspecto mais paradoxal de todos da epopeia da pesquisa clínica no Brasil seja o fato de que temos autoridades demais e leis de menos no país. Incrivelmente, uma área tão importante não tem uma lei que defina a moldura normativa para a atividade. Isso quer dizer que o Conselho Nacional de Saúde e a Conep definem sozinhos, por mera resolução, todo o conjunto de regras que delimitam a pesquisa clínica no país. A senadora Ana Amélia (PP/RS) propôs um projeto de lei — o PL nº 7.082/2017 — que resolve esse problema e firma em lei as regras e os princípios para o desenvolvimento de novos medicamentos no Brasil. O projeto não é perfeito, mas é moderno e muito melhor do que o que temos hoje. Depois de tramitar no Senado e em diversas comissões da Câmara, o PL está parado, ao que consta por pressão da própria Conep e de alguns legisladores, como os deputados Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e Alexandre Padilha (PT-SP).
No país dos cartórios, a continuidade dos guichês e a ausência de lei infelizmente tornam a parceria de estudos para a vacina de Oxford um evento tão precioso quanto raro. Com sorte, a Câmara dos Deputados mostrará que o Brasil pode entrar definitivamente no círculo dos países que protegem seus pacientes e estimulam a pesquisa clínica, aprovando o novo marco regulatório. Ainda que as guildas organizadas para o “controle social” da saúde se incomodem com isso.
*Daniel Goldberg é sócio-gestor da Farallon Capital no Brasil, ex-presidente do Morgan Stanley e ex-secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça