Doação de sangue: atualmente, única fonte possível para obtenção do plasma, no Brasil (iStock/Thinkstock)
Editora Exame IN
Publicado em 18 de abril de 2023 às 12h39.
Última atualização em 18 de abril de 2023 às 21h12.
Enquanto a pauta fiscal domina o imaginário do mercado, na tentativa de se estabelecer uma previsão para quando a taxa de juros irá enfim cair, muitas outras discussões micro e relevantes acontecem em Brasília. É o caso da PEC Nº 10 de 2022, que trata da possibilidade da coleta e teste do plasma não apenas pela rede pública, mas também pela rede privada. Trata-se de debate tão essencial, quanto sensível. O assunto é alvo de audiência pública nesta terça-feira, dia 18. A proposta traz mudanças boas para a saúde e para a economia.
Para a saúde, por duas razões: o Brasil depende da importação de hemoderivados, feitos a partir do fracionamento do plasma, e ao mesmo tempo em que existe um cenário de desperdício do material no país há deficiência na oferta da substância para transfusões. O plasma, embora sempre coletado junto com o sangue, também pode ser colhido separadamente, mas isso não é feito no país – nem pelo governo, nem por agentes privados. A primeira coisa que a PEC faz, portanto, é resolver essa questão e tornar a coleta possível.
O plasma hoje utilizado no Brasil é fruto da separação do sangue coletado. E essa divisão pode ser feita apenas pelos hemocentros públicos. Somente nisso já se perde 30% da coleta total de sangue do país, que hoje é feita por hemocentros privados. Essa é a divisão do mercado, conforme Paulo Tadeu de Almeida, médico e presidente da Associação Brasileira de Hemocentros.
O Brasil coletou, em 2020, último dado público da Anvisa, 3 milhões de bolsas de sangue e transfundiu cerca de 1,5 milhão. Os dados da Anvisa são confusos, mas é possível ver o elevado percentual de descarte do plasma: entre 73% e mais de 81%.
O plasma tem dois usos: a transfusão do material e o uso mais industrial e tecnológico, por meio do qual é feito o fracionamento de seus componentes. Esses hemoderivados - como albumina, imunoglobulina, concentrado fator 8, concentrado fator 9 e complexo protrombínico – são usados em diversas situações. Podem precisar desses compostos pacientes de câncer, em situação de UTI, após grandes cirurgias, além de hemofílicos e doentes do fígado. Essas substâncias são usadas ainda para tratamentos de queimaduras graves, insuficiência renal, HIV e doenças neurológicas e imunes. Alguns desses tratamentos podem custar cerca de R$ 300 mil a R$ 400 mil - detalhe, por semana.
A PEC é boa para a economia porque o mercado atual de hemoderivados no país movimenta cerca de R$ 10 bilhões, segundo estimativas das indústrias farmacêuticas. Esse é o tamanho de toda uma indústria a se desenvolver no país, com investimentos, geração de empregos e tributos. Isso porque toda essa demanda hoje é aproveitada por companhias internacionais.
O Brasil, nem se quisesse hoje, poderia produzir os hemoderivados do plasma por uma razão muito simples: falta de matéria-prima. A PEC, além da coleta, permitirá o uso do plasma para abastecimento da indústria - pública ou privada.
Em 2020, o Tribunal de Contas da União (TCU) chegou a notificar o Ministério da Saúde pelo desperdício de quase 600 mil litros de plasma sanguíneo, que não foram viabilizados para a produção de hemoderivados. Isso, segundo o Ministério Público, equivale a mais de 2,7 milhões de doações de sangue. De acordo com a procuradoria, o prejuízo pode chegar a R$ 1,3 bilhão de reais por ano. A informação consta da análise realizada pela relatora da PEC na comissão especial, Senadora Daniella Ribeiro (PSD).
Do ponto de vista do potencial industrial e tecnológico, o mercado brasileiro é ainda maior do que isso: esse valor considera apenas o mercado atual, que é absolutamente sub-atendido, conforme explica Tadeu de Almeida. Proporcionalmente, é como se o consumo per capita de hemoderivados na América Latina fosse de 1 grama, ante 25 gramas nos Estados Unidos, conforme explicou Almeida.
Para suprir a demanda nacional integralmente, de sangue e de plasma, seriam necessárias 3,5 milhões de bolsas de sangue e, adicionalmente, mais 1 milhão de bolsas de coletadas diretamente de plasma, segundo o presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue. Aqui vale uma explicação de que, a cada doação de sangue, de quase 500 ml, se extrai cerca de 200 ml de plasma. Na coleta direta do plasma é possível recolher uma bolsa completa, de 600 ml. Além disso, a doação do plasma pode ser feita com muito mais recorrência do que a de sangue.
Esse volume atenderia tanto a necessidade de transfusões de sangue como de plasma e ainda seria suficiente para abastecer uma indústria local que produzisse os hemoderivados.
Se a PEC de número 10 de 2022 é boa para a saúde e para economia, onde o assunto fica difícil? Afinal, tudo em Brasília possui um grau de complexidade. A proposta do texto original foi feita por iniciativa de um grupo de 25 senadores, liderados por Nelsinho Trad (PSD-MS). No início de sua análise, a relatora da proposta, senadora Daniella Ribeiro, incluiu um pedaço polêmico. Para lá de polêmico: a permissão da remuneração ao doador do plasma.
Desde os anos 80, foi vedada a remuneração de doadores de sangue – o mesmo vale hoje para outros órgãos e tecidos. O tema é de extrema sensibilidade porque o pagamento aos doadores foi suspenso em meio às preocupações com a disseminação AIDS. Assim, o que o sistema de saúde hoje paga em caso de transfusões não é o material, mas o serviço envolvido, ou seja, coleta, testes (inúmeros exames são realizados para impedir as diversas contaminações) e distribuição.
Tadeu de Almeida contou que a Associação Brasileira de Hemocentros, que reúne a atividade privada, já se manifestou contrariamente à cobrança, bem como a Sociedade dos Médicos. Dessa forma, a supressão apenas do trecho que trata da remuneração de doadores retiraria a polêmica da PEC e permitiria que o tema avançasse no Congresso com mais tranquilidade, uma vez que a expectativa é que suas consequências sejam positivas.
O Brasil tem, desde 2005, uma empresa pública dedicada ao desenvolvimento de hemoderivados do plasma, a Hemobras. Em 2001, a Lei do Sangue estabeleceu que o material derivado das coletas de sangue que não fosse transfundido deveria ser encaminhado à empresa. Essa, por sua vez, pegaria o material e abasteceria uma parceria internacional que processaria e forneceria de volta os hemoderivados. Ocorre que, em 2020, por exemplo, apenas 278 bolsas foram encaminhadas à Hemobras, conforme dados da Anvisa. Em 2019 e 2018, apenas alguns milhares. Não há nenhum acompanhamento ou fiscalização do que é fornecido à Hemobras, nem supostamente do que ela recebe de volta, em medicamentos, dos parceiros internacionais (nem como é feita a conta de equivalência entre matéria-prima e produto final). Tampouco há transparência ou dados abertos ao público.
Por enquanto, o Brasil sequer é autossuficiente para abastecimento do sistema público de saúde, que atende mais de 160 milhões dos mais de 210 milhões de brasileiros. E, junto com outras nações, passou um susto durante a pandemia da covid-19, pois os Estados Unidos passaram a controlar e reduzir as exportações. O país domina 80% do mercado de hemoderivados do mundo, explicou Tadeu de Almeida.
O motivo para essa concentração é a existência da remuneração aos doadores naquele país. Apesar de efeitos potencialmente benéficos da possibilidade dos pagamentos, o assunto é ainda um tabu na saúde. A sociedade brasileira, bem como diversas outras no mundo, podem ainda não estar maduras o suficiente para essa discussão, na visão do presidente da Associação Brasileira dos Hemocentros.
No entanto, na visão de Tadeu de Almeida, não há nenhuma razão para a PEC Nº 10 deixar de avançar por essa razão. Basta, segundo ele, excluir esse trecho.
O desenvolvimento da indústria de hemoderivados tem diversos atores interessados e potencialmente beneficiados na cadeia da saúde, desde fabricantes de medicamentos até laboratórios de diagnósticos (dada a demanda pela testagem do material). Além disso, existem investidores atentos à questão, devido à grande demanda e, além disso, ao potencial do Brasil. Com mais de 210 milhões de habitantes, a oferta é abundante. Um prato cheio para a indústria do venture capital.
Por isso, a PEC também requer alguns cuidados com eventuais jabutis - aqueles que não sobem em árvore, só chegam lá porque alguém os coloca. O texto atual da proposta diz que o plasma coletado pode ser fornecido para indústrias nacionais e internacionais. Os agentes brasileiros que estão atentos a oportunidades, mas que preferem não se revelar nesse momento, já sabem o que isso significa: em um país onde a coleta é não remunerada (e tudo bem), grandes indústrias estrangeiras poderiam montar centros de captação para obtenção de matéria-prima.
Daí, portanto, a evidência de que a oportunidade que a PEC Nº 10, de 2022, traz é grande, mas é preciso planejamento e organização do país. Ou seja, política pública e saber quais são os objetivos.