Fusões e aquisições (Getty Images/Getty Images)
Graziella Valenti
Publicado em 3 de novembro de 2020 às 08h31.
Última atualização em 3 de novembro de 2020 às 08h50.
As fusões e aquisições da pandemia estão cheias de novidades. Uma coleção de cláusulas e modelos estão sendo importados para o Brasil e fazendo barulho. Os "break up fees" ou "terminations fees" estão, de repente, por todo lado. Também estão estreando por aqui estruturas para regular competição em transações como o “go shop” e o “stalking horse”. Os investidores vão precisar atualizar os estrangeirismos da moda. Tudo indica que vieram para ficar. Pelo menos uma dessas novidades já esteve no acordo entre Natura e Avon sem que ninguém comentasse, e agora estão em diversas outros negócios bilionários em andamento, como a venda das operações da Laureate no Brasil, a ruidosa operação entre Stone e Linx e a venda dos ativos da Oi. Quase nada se falou também sobre os 500 milhões de reais que Localiza e Unidas podem pagar uma à outra se a assembleia de acionistas rejeitar a fusão.
No início, essas ferramentas só eram encontradas em transações envolvendo grupos internacionais, mas começam a se difundir também em negócios apenas entre companhias brasileiras. A transparência quanto à existência desses itens nos contratos deve aumentar, pois vai entrar na rotina dos investidores questionar a existência dessas condições.
Os tais "break up fees" ou "termination fees" são aquelas multas usadas para tentar proteger negócios e regular riscos sobre desistências ou negativas de aprovação de acionistas e órgãos reguladores. Essas letrinhas miúdas dos contratos ganharam fama com a polêmica operação entre Linx e Stone. Mas essas estão por aí há mais tempo e quase ninguém havia se dado conta.
Essas cláusulas dão cobertura para o intervalo entre a assinatura de um acordo e sua liquidação. São especialmente adotadas em companhias de capital pulverizado, mas também aparecem com frequência em negócios com empresas de dono — basta lembrar os mais de 280 milhões de reais desembolsados pela Ultrapar à Petrobras, após o veto do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para a compra da Liquigás.
A cada operação esse ingrediente vai estar relacionado, é claro, aos maiores riscos específicos daquele negócio. Não tem receita de bolo. Eles também servem para afastar competidores que queiram entrar no meio de um negócio contratado, mas ainda não concluído. Se algum interessado quiser atravessar um contrato assinado, vai ter de arcar com esse custo da desistência de uma das partes, o que torna o desembolso total mais salgado. É a situação da Totvs na briga pela Linx, que já está questionando a validade dessa obrigação.
Por outro lado, estimulam que compradores ofereçam sua melhor proposta em um acordo. Já que o vendedor vai se comprometer em não desistir, fará de tudo para buscar o melhor preço possível. É o esperado, pelo menos. A Stone recorrentemente bate nessa tecla.
Há outras ferramentas, porém, que visam exatamente o oposto: no lugar e evitar a competição, estimular. É aqui que se enquadram as estruturas do “go shop” e do “stalking horse”. O modelo "go shop" virou assunto depois que foi usado no contrato entre Laureate e Ser Educacional e acabou na Justiça, por uma divergência de entendimento do contrato. Já a estratégia do stalking horse ganhou fama por ser o pilar da estrutura de venda de ativos da Oi.
Essas estruturas são formas de um vendedor tentar atrair a maior competição possível para seu negócio, mas a partir de um valor já assegurado por algum interessado. O comprador, por sua vez, aceita esse papel porque contrata preferência para igualar sua oferta, se surgir outra mais interessante, e recebe uma multa caso a operação seja assinada com um terceiro. É um casamento aberto com algumas regras mínimas. Normalmente, em operações com essa estrutura, o aumento de preço e novos lances são esperados.
Ainda falta cultura de mercado e empresarial no Brasil para lidar com tais instrumentos. O princípio da autonomia da vontade é algo muito mais consolidado nos Estados Unidos, o maior mercado de capitais do mundo, e na Inglaterra, pátria mãe do liberalismo econômico.
Também falta por aqui outra noção muito difundida em mercados mais desenvolvidos: a análise se uma operação é, em seu todo, justa. Lá fora essa doutrina é chamada de "entire fairness". Assim, o negócio pode ter pontos específicos incômodos, mas ainda assim ser considerado bom e vantajoso para seus acionistas.
Não faltam advogados — e dos bons — que questionam alguns usos dos "break up fees" em companhias de capital pulverizado. A dúvida é se a administração das empresas ou um pequeno grupo de acionistas pode assumir responsabilidades que afetam a vida de todos os demais e, em algumas situações, afetar a independência na análise da transação. Mas há outros tantos especialistas — igualmente bons — para apontar que essas estruturas são especialmente importantes nos acordos entre companhias sem dono.
Muitas vezes os break up fees ou não são divulgados ao mercado ou não são divulgados com todos os seus pormenores. São consideradas partes privadas de um contrato. Quando a Natura comprou a Avon, dando origem à Natura &Co, as multas estavam lá e foram informadas ao público no fato relevante de forma genérica. Era preciso ler os contratos para encontrar que, se assembleia da companhia brasileira não aprovasse o negócio, seria necessário pagar 242 milhões de dólares à empresa americana. E caso o conselho de administração fizesse uma recomendação negativa, havia penalidade de 133 milhões de dólares. As multas eram recíprocas.
No contrato com a Laureate, a Ser assumiu um compromisso de não desistir da transação. Caso o fizesse, teria de pagar 400 milhões de reais à companhia americana. A Ânima, que acabou vitoriosa na disputa pelo negócio, acabou herdando essa pena, mas já entregou à Laureate uma carta compromisso com o ‘sim’ — antes mesmo da assembleia que aprovará a transação — de acionistas que somam cerca de 54% do capital. Não é pouca coisa: o maior sócio da empresa é Daniel Castanho, presidente do conselho de administração, com uma fatia de apenas 11,5% do total. Os outros dois maiores investidores são os fundos Dynamo e Atmos, com cerca de 6% cada.
Na combinação entre Localiza e Unidas, as empresas se comprometeram a pagar 500 milhões de reais caso haja desistência da operação ou negativa da assembleia. Os detalhes da incidência dessa cláusula não foram divulgados, mas está claro que sair da mesa ou negar a operação tem um custo salgado. Pelo acordo, a Localiza vai incorporar a Unidas. Ambas as empresas têm blocos de fundadores relevantes, mas que não fazem a maioria absoluta do capital.
A multa que a Stone e Linx negociaram, contudo, gerou muito mais ruído. As companhias estão obrigadas a pagar, uma a outra, 453 milhões de reais se desistirem do negócio. Mas o que mais incomodou nesse item era a pena de 112,5 milhões de reais que a Linx teria de pagar se a assembleia rejeitasse o acordo — essa mesma que está nas companhias de locação de veículos e estava na Natura. A Linx tem o capital bastante pulverizado, diferentemente do que ocorria com a Natura quando fez a compra da Avon. Mas na empresa de software, a cláusula acabou perdendo a validade, pois a Stone abriu mão dela, devido aos questionamentos da B3 e à pressão de investidores.
Muitos acionistas da Linx alegaram que ela criava um dilema entre governança e preço. Mas o mal estar com a multa da Linx deve-se muito mais ao fato de ter sido negociada e aceita pelo trio de fundadores da empresa, Alberto Menache, Nércio Fernandes e Alon Daylan, que tem uma vantagem extra com a oferta da Stone: um acordo de não competição por cinco anos que lhes garantirá um saldo adicional equivalente a 20% do que vão embolsar com a venda de suas ações – juntos eles têm 14,4% do capital e as chaves da empresa. Fernandes é presidente do conselho e Menache, da companhia. Os três fazem maioria no colegiado da empresa, que tem mais dois membros independentes.
Até que se construa um histórico de usos para essas cláusulas, elas prometem muita discussão. Uma forma de dar algum contexto a esses contratos seria levá-los ao CAF, o Comitê de Aquisições e Fusões, criado há anos, mas quase que sem uso. O órgão foi feito no meio de um monte de operações ruidosas de incorporações após a chuva de aberturas de capital de 2007 e inspirado no Takeover Panel da Inglaterra. Mas as companhias brasileiras ainda não entenderam a função e as possíveis vantagens desse órgão, que não regula e não penaliza as transações, apenas atesta se estão de acordo com alguns princípios básicos. Talvez o próprio regulamento precise de algumas atualizações, mas seria um caminho para lidar com as constantes novidades, importadas ou criadas especialmente para a vida societária brasileira.