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A crise bilionária da Americanas e o conveniente paraíso da 'desgovernança'

Relatório de administrador judicial mostra ambiente sem preocupação com registros internos

Americanas: companhia afirmava que registrar decisões da diretoria em ata traria perda de agilidade e nenhum ganho em governança (Dado Galdieri/Bloomberg/Getty Images)

Americanas: companhia afirmava que registrar decisões da diretoria em ata traria perda de agilidade e nenhum ganho em governança (Dado Galdieri/Bloomberg/Getty Images)

Graziella Valenti
Graziella Valenti

Editora Exame IN

Publicado em 27 de março de 2023 às 11h30.

A pandemia colocou duas das três letrinhas do ESG em evidência: como as empresa e investidores encaram os fatores ambientais (Environment) e sociais (Social) das empresas. Dizem que daqui para frente é só evolução. Tomara! Porque essa não é a rotina com a terceira letra, o “G”, de governança. A crise do buraco de R$ 20 bilhões escondido da Americanas (AMER3) chega para (re)lembrar a todos da importância da governança.

Volta e meia um escândalo corporativo acontece, todo mundo fica chocado, boas práticas são defendidas, algumas regras e parâmetros evoluem. Mas, basta um afrouxo monetário para fazer o mundo – sem exageros - esquecer das lições básicas. Esquecer de como se pratica a boa governança.

Se alguém ainda tinha dúvidas, o relatório produzido pelos administradores judiciais da Americanas, a empresa especializada Preserva-Ação e o escritório de advocacia Zveiter, escancara como a falta de boas práticas – até mesmo as mais básicas – pode transformar uma empresa em uma Disneylândia para mal feitos. O documento se tornou público na semana passada e tem mais de 450 páginas.

Desde 2017, a KPMG alertou formalmente a administração da Americanas a respeito da falta de registro e de formalidades sobre as decisões da diretoria. Sobre isso, a Americanas  reiteradas vezes respondeu que se devia a um ambiente ágil para tomada de decisões e que mudar não traria nenhum ganho, sequer de governança. O questionando ocorreu repetidamente, até 2019.

Sobre o balanço de 2016, a KPMG apontou em relatório privado para a empresa que houve atrasos e problemas na conciliação de informações de caixa e saídas para pagamentos de fornecedores e que havia falha de controles internos a esse respeito. Entretanto, os números foram aprovados sem ressalva da auditoria.

Foi a partir dos resultados de 2017 que a KPMG fez o apontamento grave, quase profético. Mas, ao que tudo indica, não reverberou em mudanças de práticas internas. “Observamos que são realizadas reuniões pela diretoria e/ou pelo corpo gerencial da companhia. Entretanto, a companhia não tem como prática formalizar em ata os assuntos discutidos durante essas reuniões. Adicionalmente, observamos que para as atas de reuniões preparadas pela companhia (por exemplo, atas de reunião do conselho de administração), a companhia não atualiza o livro de registro de atas”. Além de recomendar que o registro passe a ser feito, a firma de auditoria foi além e apontou como possível efeito dessa situação o “desconhecimento da administração da companhia sobre assuntos relevantes, discutidos nas reuniões realizadas.”  Parece premonição, mas não é. É o risco que se corre – em maior ou menor gravidade - quando os processos são falhos.

Para todos, a resposta da Americanas foi: “as reuniões de diretoria compreendem discussões diárias e pertinentes à atividade operacional da companhia. Entendemos que a formalização dessas reuniões dinâmicas pode comprometer a agilidade na gestão do dia a dia, com poucos ou nenhum ganho material para a governança corporativa.”

As operações de risco sacado – as que estavam fora do balanço da Americanas – começaram a ser realizadas justamente a partir de 2016. Essas transações são contratos com bancos que financiam o pagamento para fornecedores, com prazo e custo adicional para a empresa. São, portanto, uma dívida financeira.

É praxe nos processos de auditoria de balanço que a firma independente consulte credores e alguns fornecedores relevantes para confirmar a veracidade das informações dadas pela companhia. Essa confirmação dos dados é feita por meio de um documento chamado “carta de circularização”. A carta do auditor é feita com base na informação original dada pela empresa.

Pois bem. Em 2016, a KPMG relata um episódio curioso, conforme documento apresentado na quarta-feira pelos administradores judiciais da Americanas. Dois bancos, na circularização, teriam colocado operações de risco sacado. Contudo, essas cartas originais foram substituídas, segundo a companhia alegou na época, por retificações dos bancos. Nessas novas cartas, as operações de risco sacado desapareceram.

Mesmo questionada pela KPMG, durante reunião específica sobre o assunto (a existência de contratos de risco-sacado), os diretores da Americanas teriam negado a existência das operações. Houve questionamentos diretos sobre o assunto também pela PwC, auditor independente atual, e pelo comitê de auditoria da varejista. Mais uma vez, uma negativa direta, porém sem maiores considerações.

De acordo com pessoas envolvidas com o caso, em 2016, o que a Americanas chama de retificações foram documentos que a empresa solicitou aos bancos, pedindo detalhamento de determinadas transações. Neles, por óbvio, não havia solicitação de dados sobre os contratos de risco sacado.

Investigar o passado na Americanas parece desafiador. Como a KPMG apontou desde 2016, os registros internos das reuniões são pobres. Curiosamente, o relatório dos administradores judiciais não cita nome de nenhum executivo. Não se sabe exatamente quem da empresa negou a existência do risco sacado e por quais mãos esses documentos circularam.

É nesse contexto, de poucas informações e registros, que a Americanas quer condicionar para os credores a adesão ao plano de recuperação a um compromisso de não processar a empresa, seus sócios e seus administradores. Uma única exceção: a comprovação de dolo. Provas, em uma empresa em que o registro de informações era considerado “perda de agilidade”.
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