Keiko Tokuriki, da Nippon Kaigi: "o japonês deveria ser patriota, mas muitos estão perdendo este orgulho" (Germano Lüders/Exame Hoje)
Rafael Kato
Publicado em 30 de maio de 2017 às 16h31.
Última atualização em 30 de maio de 2017 às 18h07.
Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play. Para ler reportagens antecipadamente, assine EXAME Hoje.
Alemanha, França, Estados Unidos. O ultra-nacionalismo ganha força mundo afora e estampa as manchetes de jornais. Mas há um país onde as ideias de revisão dos laços globais vem ganhando força nas sombras, inclusive nas sombras paulistanas.
“Hokori aru kuni zukuri he”, ou “criar uma nação orgulhosa”. Este é o lema da Nippon Kaigi (Conferência do Japão), uma associação ultra-nacionalista, revisionista e que prega o retorno do Japão ao seu passado imperialista. Com 35.000 membros (uma fração ínfima dos 127 milhões de japoneses) a Nippon Kaigi controla 289 das 480 cadeiras do parlamento japonês, incluindo a do atual primeiro-ministro Shinzo Abe – e tem em São Paulo a sua maior sede fora do Japão.
O escritório da Nippon Kaigi do Brasil fica na Liberdade, o bairro oriental de São Paulo, de frente ao Largo da Pólvora, uma praça ornamentada em estilo japonês, com um laguinho, uma ponte shoribashi, salgueiros-chorões e uma estátua de Shuhei Uetsuka, pioneiro da imigração japonesa no Brasil. Ao entrar nos corredores mal iluminados do edifício Art-Deco e dar de cara com uma porta onde se lê em japonês “Barujiro Nippon Kaigi” é fácil se sentir como Aomame, a personagem central do romance surrealista 1Q84, do japonês Haruki Murakami, que ao descer uma escada em uma rodovia-expressa é transportada para um outro mundo. De fato as ideias da Nippon Kaigi parecem pertencer a outra realidade.
A Nippon Kaigi prega uma retomada do “espírito japonês” e a mudança da Constituição Japonesa de 1947, principalmente o artigo 9, que proíbe o país de manter um exército, e o artigo 20, que separou religião e Estado — até o final da Segunda Guerra Mundial o Imperador era visto oficialmente como uma divindade. “Os americanos deixaram o Japão com uma Constituição que não pode ser mexida. É preciso o voto de dois terços do parlamento e uma consulta popular. É impossível”, explica Keizo Tokuriki, o nipo-brasileiro que preside a Nippon Kaigi do Brasil. “A realidade é que o americano tinha medo dos japoneses.”
Magro, os cabelos grisalhos penteados para trás e vestindo com uma camiseta polo bege para dentro das calças, Tukuriki não aparenta seus 75 anos. Nascido em uma pequena cidade próxima de Nagoia, ele está no Brasil desde 1967. “O japonês é patriota. Sempre foi patriota. Esta é uma tradição de 2.600 anos”, diz. “Este sentimento do bushidô, que significa gostar do Japão, está se perdendo. O japonês deveria ser patriota, mas muitos estão perdendo este orgulho.”
Bushidô significa literalmente “caminho do samurai” e é um conjunto de códigos e regras baseadas na honra que regeu o Japão feudal. “Durante a modernização do Japão no período Meiji [entre 1867 e 1912] o bushidô e o Yamato Damashii [“Espírito Japonês”] foram as referências do modo de agir e ser japonês”, explica Rogério Dezem, professor da Universidade de Osaka e autor do livro Shindô-Renmei: Terrorismo e Repressão sobre o grupo terrorista que apavorou a comunidade nipo-brasileira no final da Segunda Guerra Mundial. “Desde o período Meiji o ‘ultra-nacionalismo’ japonês está associado com associações, sejam elas secretas ou não. Houve intimidação, violência, atentados e mortes daqueles vistos como ‘menos japoneses’ em vários momentos decisivos da história contemporânea japonesa.”
A Nippon Kaigi nasceu em 1997, mas sua origem está na fusão entre a Nihon wo mamoru Kai (Associação para Proteger o Japão) e a Nihon wo mamoru Kokumin Kaigi (Conferência do Povo para Proteger o Japão), associações ultra-nacionalistas fundadas entre os anos 1970 e 1980. “Nesse período havia uma visão de que o Japão ‘real’ estava desaparecendo”, explica Koichi Nakano, professor de política da Universidade Sophia, em Tóquio. “Então estes grupos apareceram procurando pelo verdadeiro espírito japonês.”
“Vamos retomar o Japão”
“Nippon o Torimodosu”, ou “vamos retomar o Japão” foi o slogan de campanha de Shinzo Abe durante as eleições gerais de 2012, em que retomou o posto de primeiro-ministro perdido em 2007. “Abe é um notório membro da Nippon Kaigi, embora ele tenha feito concessões desde que chegou ao poder”, explica Nakano.
O ultra-nacionalismo da Nippon Kaigi pode ser explicado em cinco pontos: “Revisionismo histórico; uma política contrária à aproximação entre iguais com a Coreia do Sul e a China; a luta por questões estratégicas nas ilhas do sul, disputadas com a China, e Kuril, disputadas com a Rússia; a xenofobia e anti-esquerdismo.”
Todos estes cinco pontos podem ser exemplificados na insistência de Abe em visitar o santuário de Yasukuni, um templo xintoísta onde estão consagrados os nomes de quase 2,5 milhões de soldados mortos nas guerras do Japão, entre eles 14 criminosos de guerra, incluindo militares envolvidos no Massacre de Nanquim, em 1937, quando ao menos 40.000 chineses foram mortos pelo exército do Japão. Antes de Abe o primeiro-ministro Junichiro Koizumi, que governou o Japão entre 2003 a 2006, foi todos os anos de seu governo a Yasukani. Koizumi também é membro da Nippon Kaigi.
Apesar desta dominância da associação, Nakano não vê no Japão um crescimento do nacionalismo. "É diferente dos Estados Unidos. Claro, se você perguntar a qualquer um, ele dirá que quer ver seu país forte, mas isso não significa necessariamente que a pessoa comunga destas ideias ufanistas”, explica. “A Nippon Kaigi é um movimento que surgiu de cima para baixo.”
Para Rogério Dezem, há um desinteresse dos jovens japoneses em questões políticas. “Para você ter um parâmetro, perguntei aos meus alunos japoneses aqui na Universidade de Osaka se eles conheciam a Nippon Kaigi. De duas turmas de 47 alunos apenas dois disseram que tinham ‘ouvido falar’”, afirmou. “Apesar disso, 50% dos meus alunos disseram apoiar as políticas de Shinzo Abe.”
O Templo do Pavilhão Dourado
Das paredes do pequeno escritório da Nippon Kaigi na Liberdade o imperador Meiji nos observa. Ao seu lado, em um bonito porta-retratos, o imperador Akihito e a imperatriz Michiko aparecem sorridentes. Sobre nós uma bandeira do Japão está desfraldada. “Esse era um costume antigamente, ter uma foto do imperador. Mas as gerações mais novas não fazem mais isso”, diz Tokuriki.
O engenheiro agrônomo que preside a Nippon Kaigi do Brasil dá mais um gole no seu chá e com forte sotaque japonês começa a me contar a verdadeira história da Segunda Guerra Mundial. “Quando os europeus entraram no continente asiático, o Japão foi o único país que resistiu. Todos os outros países foram escravizados. O que o Japão fez foi libertar os povos escravizados. Em três meses nós varremos tudo. Os soldados japoneses foram saudados pelos indonésios quando chegaram a Jacarta”, ele diz. “Os japoneses ensinaram esses povos. Nós ensinamos a Índia. Não é a toa que todos estes países quiseram a independência depois da Guerra. Eles aprenderam com o Japão.”
A Nippon Kaigi do Brasil tem apenas 90 membros, uma porção ínfima dos 1,5 milhão de nipo-brasileiros. Seu poder político real é ainda menor – os japoneses naturalizados perdem o direito de voto nas eleições japonesas, e vários deles adotaram a cidadania brasileira por questões práticas. A associação se dedica então a divulgar o “sentimento japonês”. Os boletins informativos do grupo, escritos em japonês e português, são repletos de informações de caráter patriótico, propagandeando as maravilhas do Japão. Mesmo assim Tokuriki não pensa em voltar ao seu país. “O Japão é muito competitivo. Aqui tudo é mais sossegado.”
As ideias que sustentam a Nippon Kaigi não são novas na sociedade japonesa e nem parecem estar prestes a desaparecer. É muito provável que o grupo mantenha seu controle na política japonesa, já que a ministra da defesa Tomomi Inada, da Nippon Kaigi, foi indicada para suceder Abe na presidência do Partido Liberal-Democrático, que governou por 58 dos 75 anos do pós-Guerra, e deve ser a próxima primeira ministra. “O momento é propício para um crescimento, pois se por um lado há um medo de que Trump se distancie do Japão, as ideias isolacionistas do presidente americano são preciosas para uma organização que é contrária a presença militar americana em território japonês”, afirma Nakano.
Em sua obra pivotal O Templo do Pavilhão Dourado Yukio Mishima, um dos grandes autores contemporâneos japoneses, reconta a destruição do santuário budista Kinkaku-ji em 1950, auge do desespero do pós-Guerra. Em 25 de setembro de 1970 ele invadiu um quartel na Grande Tóquio e discursou para as tropas: “Não há ninguém aqui disposto a morrer lutando contra esta constituição degenerada? Se houver, que fiquem conosco. Morram conosco agora e vocês, com a alma mais pura, vão renascer como guerreiros.”
Mishima então retirou da bainha sua tantô, a espada curta dos samuais, e praticou o seppuku, cortando sua barriga em um suicídio ritual.