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Como o papa Francisco lidera uma limpeza no Banco do Vaticano

O papa Francisco está mexendo em um vespeiro: o banco do Vaticano, com 6 bilhões de euros em ativos e histórico de ligação com o crime organizado italiano

Papa Francisco: Francisco é o primeiro pontífice a intervir no banco do Vaticano, uma instituição com histórico de ligação com a máfia (Andrea Bonetti/Getty Images)

Papa Francisco: Francisco é o primeiro pontífice a intervir no banco do Vaticano, uma instituição com histórico de ligação com a máfia (Andrea Bonetti/Getty Images)

RK

Rafael Kato

Publicado em 14 de fevereiro de 2017 às 13h46.

Última atualização em 15 de fevereiro de 2017 às 10h35.

Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google PlayPara ler esta reportagem antecipadamente, assine EXAME Hoje.

ROMA — Quando Jorge Mario Bergoglio foi eleito papa, há quatro anos, poucos previam a verdadeira revolução que ele levaria para dentro dos muros da Cidade do Vaticano. Imediatamente após sua eleição, Francisco começou uma limpeza da cúria e das instituições eclesiásticas. Condenou os padres pedófilos e os expulsou da Igreja Católica, defendeu a renúncia aos luxos entre os altos prelados, proclamou um jubileu especial dedicado à “misericórdia”.

E mexeu num dos maiores vespeiros da Igreja, o IOR, o Instituto para as Obras de Religião, o famoso “banco do Vaticano”, também conhecido como o “banco de Deus”. Uma instituição financeira que durante o século 20 foi o epicentro de inúmeros escândalos, entre lavagem de dinheiro, evasões de divisas, cobertura de políticos corruptos, fraudes tributárias, ligações com a máfia italiana e com outros grupos criminosos internacionais. Sua fama sombria é tamanha, que o IOR chegou a ser o centro das conspirações da trama no filme “O Poderoso Chefão III”.

Mas no dia 20 de janeiro, pela primeira vez na história, os procuradores de Roma pediram a prisão de executivos do IOR – o ex-diretor-executivo Paolo Cipriani e o ex-vice-diretor Massimo Tulli, por lavagem de dinheiro realizada através de contas correntes do Banco de Deus. Foi um resultado obtido somente graças à “operação transparência” que o papa Francisco começou dentro do IOR desde os primeiros de sua gestão. Foi o pontífice argentino que, em julho de 2013, ordenou o afastamento imediato dos dois poderosos executivos que comandavam o IOR, após o estouro de mais um escândalo envolvendo a instituição financeira do Vaticano.

Antes de Francisco, nenhum papa jamais teve a coragem ou a força de intervir no IOR. O último que tentou fazer isso foi João Paulo I, morto em 1978 apenas 33 dias após sua eleição. Uma morte misteriosa, que muitos ligam com a suposta intenção do Papa de começar uma “operação transparência” dentro do IOR, naquela época comandada pelo arcebispo Paul Marcinkus, um dos homens mais poderosos da Igreja e figura central nos principais escândalos do banco. Quando as autoridades italianas tentaram prender Marcinkus por fraudes financeiras, o Vaticano lhe concedeu asilo em seu território, e o arcebispo continuou em liberdade.

O IOR também contribuiu com a renúncia de Bento XVI, segundo a imprensa italiana. Decisão sofrida que o papa teria tomado após perceber não ter forças suficientes para enfrentar as irregularidades e a corrupção dentro do banco. Um sistema de poder que teria favorecido muita gente poderosa, dentro e fora do Vaticano.

Por isso, quando Francisco declarou que queria “uma Igreja pobre para os pobres”, muitos em Roma esperavam que o papa levasse adiante essa sua cruzada moralizadora da Igreja e fechasse o IOR. “Muitos pensaram que o Vaticano não tinha que ter um banco, já que é algo longe do Evangelho e dos ideais de Cristo”, explica a EXAME Hoje o jornalista e escritor italiano Emiliano Fittipaldi, autor de Avareza, livro com documentos secretos do Vaticano cujo vazamento levou à detenção do sacerdote espanhol Lúcio Vallejo, ex- secretário da Prefeitura dos Assuntos Econômicos da Santa Sé. Mas durante a Jornada Mundial da Juventude, em julho de 2013, o papa surpreendeu todos e declarou que não fecharia o IOR, mas o transformaria em uma instituição “honesta e transparente”. E o Banco do Vaticano seguiu em plena atividade.

70 anos de polêmicas

O IOR foi criado durante a Segunda Guerra Mundial para administrar as contas bancárias de clérigos, instituições religiosas e associações católicas. Leigos não podiam abrir contas no banco, com raríssimas exceções, como as poucas centenas de funcionários que trabalhavam diariamente no Vaticano. Não obstante essas regras claras, o IOR lentamente começou a expandir suas atividades, se transformando em algo muito mais complexo do que um simples “cofre dos padres”.

Hoje o IOR tem ativos estimados em de 5 a 6 bilhões de euros. A única sede do banco está localizada na torre medieval “Nicolau V“, a poucos metros da Basílica de São Pedro, dentro do território da Cidade do Vaticano, um Estado independente. Isso deixa o IOR imune de qualquer investigação das autoridades italianas, pois a jurisdição exclusiva é do governo vaticano, ou seja, em última análise do próprio papa, que é soberano.

Ao longo das décadas, o IOR foi criticado pela falta de escrúpulos de suas operações, baseadas principalmente em controversas especulações nos mercados internacionais de ações e imobiliários, também facilitadas pelos privilégios e isenções tributárias do Vaticano.

Nos anos 1970 e 1980 o IOR foi o epicentro de inúmeros escândalos, sendo ligado a organizações criminosas, manobras políticas obscuras, operações financeiras fraudulentas e a maçonaria. De acordo com a delação do ex-poderoso chefão da máfia siciliana Vincenzo Calcara, o IOR estava envolvido na lavagem de dinheiro da Cosa Nostra, garantindo os investimentos da famílias de Corleone com muita discrição. E graças a esse dinheiro o Vaticano teria financiado clandestinamente dezenas de organizações políticas que combatiam os movimentos marxistas na América Latina, como os Contras na Nicarágua, e que faziam oposição aos regimes comunistas da Europa Oriental, como o sindicato polonês Solidarność.

Por isso, quando em 1993 o papa João Paulo II foi à Sicília e excomungou a máfia, os chefões do crime se ressentiram, sobretudo porque eles traziam suas fortunas para o Vaticano, que depositavam no próprio IOR. Em resposta, a Máfia fez detonar bombas em frente àigreja de São Jorge em Velabro e da Arquibasílica de São João de Latrão, em Roma.

A partir de sua eleição, o papa Bento XVI tentou mudar os equilíbrios sombrios dentro do IOR, e em 2009 assinou um compromisso internacional com a União Europeia para permitir a aplicação das leis internacionais contra a lavagem de dinheiro, até aquele momento desconhecidas no Vaticano. Além disso, o próprio papa chamou os peritos de Moneyval (o comité de peritos sobre a avaliação das medidas de combate a lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, órgão do Conselho da Europa) para verificar as contas correntes e as operações do IOR.

Foram decisões que colocaram em risco interesses de muita gente, e desencadearam uma verdadeira guerra dentro do Vaticano. “O IOR foi forçado a fechar centenas de contas correntes de titulares que não tinham direito a mantê-las, como políticos, empresários, etc .. Só que os nomes dessas pessoas não foram entregues às autoridades italianas, embora a Itália tivesse pedido com insistência ao Vaticano.

Muitas vezes essa contas foram simplismente transferidas para bancos de outros países ou nem foram fechadas realmente. “Dentro do IOR e nas altas hierarquias vaticanas houve muita resistência a essa tentativa de transparência”, explica Fittipaldi. Imediatamente a Itália começou uma retaliação, denunciando um esquema de lavagem de dinheiro no valor de 180 milhões de euros e sequestrando muitos ativos do banco fora do território do Vaticano, como propriedades imobiliárias ou contas em outras instituições financeiras.

Em dezembro de 2010 o papa Bento XVI tentou resolver o problema de vez instituindo a Autoridade de Informação Financeira (AIF), uma entidade criada para inspecionar movimentos de capitais no banco. A criação do AIF ocorreu apesar da oposição de muitos funcionários vaticanos e membros poderosos da cúria romana, entre os quais o Cardeal Tarcisio Bertone, então Secretário de Estado do Vaticano.

Todos se opuseram ao fim do sigilo bancário das contas numeradas do IOR, que faziam do banco de fato uma offshore, deixando-o assim muito mais atrativo especialmente para a clientela internacional. O confronto entre fações ficou cada vez mais duro. De um lado estava quem queria boicotar a ação do papa, limitar os poderes da AIF e evitar controles sobre o IOR; do outro estava quem, como o então presidente do IOR, Ettore Gotti Tedeschi, ou o do Cardeal Attilio Nicora, prezava mais transparência e queria uma limpeza geral dentro do banco.

Foi uma guerra que acabou com a derrota inicial do grupo da transparência. Em maio de 2012 Ettore Gotti Tedeschi foi destituído do cargo de presidente do IOR por uma moção apoiada pelo proprio Cardeal Bertone. “Tudo começou quando eu pedi para ter notícias sobre as contas que não estavam nos nomes dos prelados”, escreveu em suas memórias Gotti Tedeschi.

O efeito Francisco 

Em resposta, em janeiro de 2013 as autoridades bancárias da Itália suspenderam todas as transações eletrônicas com o Vaticano, bloqueando até os saques nos caixas-eletrônicos fora da cidade-estado. Os próprios Museus Vaticanos foram forçados a aceitar somente dinheiro, pois os cartões de crédito ou débito não funcionavam mais. A guerra para o Banco de Deus continuou cada vez mais dura dentro do Vaticano. Entretanto, poucos meses depois, no dia 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI anunciou sua renúncia.

“Gotti Tedeschi queria implementar uma série de políticas de transparência, mas encontrou uma forte resistência, especialmente na comissão interna de supervisão formada por cardeais”, explica à Exame Fabio Marchese Ragona vaticanista italiano e autor do livro “Potere Vaticano”.

Parecia a vitória da facção contrária a qualquer mudança no controle e nas atividades do banco. Quatro dias depois da renúncia do papa, os próprios cardeais nomearam à presidência do IOR Ernst von Freyberg, banqueiro alemão e ex-presidente da Blohm + Voss Schiffswerft und Maschinenfabrik, estaleiro de Hamburgo que construía submarinos militares. Uma atividade não propriamente compatível com a mensagem de paz cristã. Pouco tempo depois estourou o escândalo do padre Nuncio Scarano, preso na Itália por corrupção e lavagem de dinheiro, por ter tentado de transferir ilegalmente 20 milhões de euros de um banco suíço. Scarano teria usado amplamente as contas do IOR para suas operações milionárias.

Mas em junho de 2013 começou o contra-ataque dos partidários da transparência. O recém eleito papa Francisco criou de surpresa a Comissão Pontifícia para o IOR, com o objetivo de controlar e reformar a instituição financeira vaticana. Menos de seis meses depois o pontífice substituiu quatro dos cinco membros da comissão de cardeais, exonerando entre outros o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, e Tarcisio Bertone, que presidia o grupo.

Em agosto do mesmo ano, Bertone renunciou ao Secretariado de Estado e passou a morar em uma cobertura de luxo de 409 metros quadrados, do lado do Vaticano, cuja reestruturação foi paga com fundos arrecadados para o hospital pediátrico Bambin Gesù de Roma. Poucos meses depois, o Vaticano abriu um inquérito contra Bertone por desvio de dinheiro.
A cruzada para a transparência de Francisco provocou duras reações por parte da cúria romana. E também alguns golpes baixos. O cardeal australiano George Pell, nomeado pelo papa Prefeito da Secretaria para a Economia (um espécie de super-Ministério da Economia do Vaticano) para controlar diretamente o IOR, foi acusado por dossiês anônimos de estar envolvidos em casos de pedofilia. Outro dossiê que começou a circular no Vaticano sobre opadre Battista Ricca, homem de confiança de Francisco nomeado “prelado do IOR” e que atuava como olhos e orelhas do papa dentro do banco, acusava o religioso de ser homossexual. Ambas as acusações foram desmentidas rapidamente, mas essa tentativa mostrou até que ponto os inimigos da mudança dentro das instutiçoes financeiras vaticanas estavam dispostos a chegar.

A partir desse momento, o IOR começou um processo de progressiva transparência bancária. Seu novo presidente, Jean-Baptiste de Franssu, fez muitos passos nessa direção, como por exemplo publicar o balanço da instituição na internet, colaborar com as autoridades bancárias italianas e europeias e chegou a abrir as portas do banco aos jornalistas, que foram convidados em uma coletiva de imprensa sobre as atividades do IOR. Pela primeira vez na história foi possível fotografar dentro da sede do banco.
“Desde 2012 até hoje foram fechadas cerca de 5.000 contas correntes suspeitas em um total de 20.000, a AIF começou a controlar todas as operações financeiras feitas no Vaticano, a diretoria inteira do IOR foi substituída e, mais importante de todos, começou um trabalho de formação dos funcionários para uma forte mudança de mentalidade”, conta Fabio Marchese Ragona.

Mas a cruzada de Francisco para a transparência está criando inimigos poderosos ao papa. O juiz Nicola Gratteri, famoso por sua luta contra a máfia na região da Calábria, declarou várias vezes que Francisco estaria na mira da máfia calabresa, a ‘Ndrangheta. Segundo Grattieri, com essas mudanças o pontífice estaria desmantelando os centros do poder econômico do Vaticano, eliminando muita corrupção. E essa “operação limpeza” no IOR teria deixado os mafiosos que fazem negócios com religiosos corruptos “nervosos e agitados”.

Um risco considerável para um papa que gosta de estar no meio do povo, infrange constantemente as regras de segurança e aparenta não se importar com sua incolumidade. E que continuará sua cruzada da transparência dentro do Vaticano. Como Jesus já tinha colocado bem claro no começo da Cristandade, ninguém pode servir a dois senhores: Deus e o dinheiro. Porque um dia chegará a odiar um e amar o outro, ou vice-versa.

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