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Um papa para os tempos modernos: como Francisco navegou entre tradição e inclusão

Da periferia de Buenos Aires ao comando do Vaticano, primeiro papa latino-americano mostrou ao mundo um catolicismo de portas e mente abertas

Em imagem de 2018, Papa Francisco é abraçado por um menino. (Remo Casilli/Reuters)

Em imagem de 2018, Papa Francisco é abraçado por um menino. (Remo Casilli/Reuters)

Lia Rizzo
Lia Rizzo

Editora ESG

Publicado em 21 de abril de 2025 às 09h47.

Última atualização em 22 de abril de 2025 às 12h26.

O jesuíta que nunca buscou ativamente ser papa transformou a igreja. Francisco ultrapassou os limites tradicionais do papado ao enfrentar, sem hesitação, os temas mais delicados de nossa época.

Do Vaticano, não apenas observou o mundo contemporâneo, mas mergulhou em suas complexidades, transformando a Santa Sé em instrumento ativo na luta contra desigualdades e na defesa de causas urgentes.

Seu pontificado abraçou batalhas diversas: mediou conflitos internacionais, condenou perseguições religiosas, ergueu a bandeira da preservação ambiental, abriu espaço para mulheres em funções eclesiásticas, estendeu a mão à comunidade LGBTQIA+ e fortificou a proteção de menores vulneráveis.

Um nome, um programa

Primeiro jesuíta a ocupar o trono de Pedro, primeiro latino-americano e primeiro não-europeu desde o século VIII, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio trouxe a perspectiva dos marginalizados para o centro da Igreja. E a escolha do nome "Francisco" não foi casual.

Inspirado por São Francisco de Assis, símbolo máximo da humildade e simplicidade, o pontífice sinalizava logo em sua primeira aparição na varanda da Basílica de São Pedro, em março de 2013, que seu papado seria marcado por uma volta às origens dos valores cristãos: austeridade, proximidade com os pobres e cuidado com a natureza.

Sem perder a oportunidade de causar impacto, transitou entre declarações de abertura e conservadorismo doutrinário, deixando sua marca na história como um líder de aparentes contradições, mas de indiscutível coragem para enfrentar temas espinhosos.

"Quem sou eu para julgar?"

"Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?", declarou em 2013, abrindo uma janela de diálogo que seus antecessores mantinham fechada.

Contudo, a mesma autoridade que não hesitou em defender a união civil entre pessoas do mesmo sexo — "O que temos de criar é uma lei de união civil. Assim, ficam legalmente protegidos" — também condenou o casamento homossexual nos termos da Igreja, definindo-o como "um ataque destrutivo aos planos de Deus".

Sobre o aborto, demonstrou a mesma dualidade entre compaixão e firmeza doutrinária. Concedeu aos padres "o arbítrio para absolver o pecado do aborto àqueles que o possuem e a quem, com o coração constrito, busca o perdão", mas não deixou de compará-lo a "contratar um matador de aluguel para resolver um problema".

Tolerância zero

Na luta contra os abusos sexuais que mancharam a imagem da Igreja, Francisco adotou tom inflexível:

"Por favor, lembrem-se bem disto: tolerância zero com os abusos contra menores ou pessoas vulneráveis. Tolerância zero".

Foi além das palavras, reorganizando a Cúria Romana e garantindo que a proteção dos menores se tornasse parte fundamental da estrutura de governo da Igreja.

As posturas progressistas de Francisco provocaram reações conservadoras dentro da própria Igreja. Quatro cardeais desafiaram abertamente suas propostas de permitir que católicos divorciados e recasados recebessem os sacramentos. Outros o criticaram por restringir a celebração de sacramentos segundo os antigos ritos latinos.

Para tentar reconciliar as diferentes vozes, convocou em 2023 um sínodo que debateu temas como o papel das mulheres na Igreja. Embora as conclusões tenham recomendado maior participação feminina nos cargos de governo eclesiástico, ficaram aquém do que muitos progressistas desejavam.

A encíclica verde

A palavra "encíclica" evoca um dos mais poderosos instrumentos de comunicação que um pontífice pode utilizar para orientar os fiéis e dialogar com o mundo.

Em 2015,  quando o papa publicou sua "Laudato Si" em 2015, não estava apenas escrevendo um documento; estava usando uma ferramenta centenária para elevar as questões ambientais ao mesmo patamar da dignidade humana e da justiça social na doutrina católica.

Sobre a falta de liderança mundial para enfrentar a crise climática, escreveu e se pronunciou em críticas contundentes:

 "A terra, nossa casa, começa a parecer cada vez mais um imenso monte de lixo"

O papa do cotidiano

O pontífice argentino também se destacou por confrontar aspectos difíceis da história católica. Abriu os arquivos do papado de Pio XII, questionado por sua atuação durante o Holocausto, e repudiou a "doutrina da descoberta" que justificou o colonialismo europeu nas Américas.

Sua saúde frágil nunca o impediu de falar com franqueza sobre temas cotidianos. Criticou o uso excessivo de celulares entre jovens, comparando-os a uma "droga", e confessou suas próprias vulnerabilidades:

"Às nossas neuroses devemos oferecer um chimarrão. Devemos acariciá-las. Acompanham a pessoa pela vida toda".

O homem por trás do manto

O homem que admitiu sentir falta de "sair para comer uma pizza" — "Uma pizza comida em uma mesa tem um sabor bem diferente de uma pizza entregue em domicílio" — também foi sincero ao declarar que não sentia saudades de sua Argentina natal, para onde jamais retornou após assumir o pontificado:

"Para a Argentina, não volto mais, não tenho saudades dela. Vivi lá 76 anos. O que me aflige são seus problemas".

Francisco foi alvo de críticas tanto de conservadores quanto de progressistas. Para os primeiros, avançava rápido demais em questões de moral sexual e inclusão; para os segundos, suas posições sobre homossexualidade e o papel das mulheres permaneciam excessivamente tímidas.

Um legado em disputa

A morte do papa, ocorrida nesta segunda-feira (21), encerra um capítulo de transformações e tensões no catolicismo mundial.

Seu legado inclui uma Igreja mais voltada aos problemas sociais e ambientais, mais atenta às periferias geográficas e existenciais, e uma relação renovada — embora ainda conflituosa — com a modernidade.

Em tempos de polarização política e religiosa, a ausência de uma voz que, mesmo em meio a contradições, buscava construir pontes entre tradição e renovação, certamente será sentida.

O próximo conclave determinará se o caminho aberto por Francisco será aprofundado ou revisado, mas suas palavras e gestos já pertencem à história de uma instituição milenar que, sob sua liderança, ousou olhar para o futuro sem abandonar suas raízes.

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