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Sou eu guardador da minha irmã?

Quando perguntadas “Qual foi sua atitude em relação à agressão?” as instituições mais procuradas pelas mulheres são a família (60%), a igreja (45%) e os amigos (42%). Minha atenção se volta ao papel das lideranças e comunidades para as quais elas recorrem, escreve Daniela Grelin, do Instituto Avon

Em novembro ocorre os 21 Dias de Ativismo pelo Fim das Violências contra Mulheres e Meninas (Carol Yepes/Getty Images)

Em novembro ocorre os 21 Dias de Ativismo pelo Fim das Violências contra Mulheres e Meninas (Carol Yepes/Getty Images)

Daniela Grelin
Daniela Grelin

Diretora Executiva do Instituto Natura

Publicado em 25 de novembro de 2023 às 08h22.

Dentre os mecanismos de proteção integral à vida da mulher previstos na Lei Maria da Penha (LMP), alguns, extremamente potentes e transformadores, só vêm sendo implementados de forma gradativa ao longo dos últimos anos. Por isso mesmo, cada avanço é motivo de esperança. Esperança esta que só se justifica quando os avanços são de fato apropriados pela sociedade.

Não apenas pelo Estado este ente abstrato de quem esperamos a concretização de todos os direitos e a quem atribuímos todas as responsabilidades, mas por todas as instituições sociais, a fim de proteger a perenidade das conquistas humanas como parte de um pacto de responsabilidade moral compartilhada.

O artigo 8 da LMP, especificamente, lista uma série de elementos críticos de sucesso para a proteção da vida das mulheres, dentre os quais destaco “a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente(...)”.

Passados 17 anos desde a introdução da LMP, ainda buscávamos este tal repositório sistematizado, oficial, interativo e abrangente, reunindo dados e pesquisas do Legislativo, Executivo e Judiciário. Neste mês de novembro, período marcado pelo início dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim das Violências contra Mulheres e Meninas, este marco foi entregue à sociedade na forma do Mapa Nacional da Violência contra a Mulher, resultado de um trabalho colaborativo entre o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), a Procuradoria da Mulher no Senado, o Ministério da Justiça, o Instituto Avon e a organização de jornalismo de dados Gênero e Número, em evento no Gabinete do Presidente do Congresso Nacional Rodrigo Pacheco. O projeto converge recursos dos três poderes, resultando em uma plataforma interativa que agrega dados das bases da saúde (DataSUS), de Justiça (CNJ-DataJus), de Segurança Pública (SINESP) e da maior pesquisa de opinião sobre o tema (DataSenado) em endereço do Senado Federal .

A mais recente e abrangente pesquisa disponibilizada na plataforma é a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, que neste ano foi realizada com a maior amostragem histórica, 21.787 mulheres, por meio de ligações telefônicas (para números fixos e móveis) em todo o território nacional, conferindo um rigor estatístico extraordinário com amostras totalmente probabilísticas.

A pesquisa traz dados de percepções das mulheres sobre a violência, por meio de perguntas realizadas a todas as entrevistadas e, também, sobre a vivência das mulheres que declararam haver sofrido algum tipo de violência. Ela traz muitos dados esclarecedores sobre o fenômeno, o perfil das vitimadas e de seus agressores, bem como a evolução dos números desde 2005, a atitude das mulheres diante do ocorrido e o recurso às políticas e entidades que compõem a rede de proteção.

Mas quero destacar aqui um achado bastante revelador. Trata-se da resposta à pergunta: “Qual foi sua atitude em relação à agressão?” As instituições mais procuradas são a família (60%), a igreja (45%) e os amigos (42%). Minha atenção se volta ao papel das lideranças e comunidades de fé para as quais as mulheres recorrem.

Muitas vezes apontadas, não sem motivos, como instâncias permeadas por inconsistências, herméticas a discussões sobre as implicações de doutrinas frequentemente deturpadas e usadas para proteger e legitimar os autores das agressões e responsabilizarem as vitimadas, as igrejas podem ser, antes de tudo, comunidades acolhedoras e capazes de realizar um encaminhamento assertivo, renovadas pelo comprometimento com a proteção da dignidade da vida das mulheres.

Para isso, basta que se coloquem as seguintes questões: até que ponto as comunidades de fé têm refletido a noção de que todas as vidas humanas são igualmente dignas e valiosas? Soma-se a esta pergunta, no caso das comunidades de fé cristãs que compõem 70% da matriz religiosa de nossa país, a reflexão sobre o quanto têm praticado o exemplo de seu fundador, o Jesus que ouvia as mulheres, como fez com a mulher Cananita, comissionava-as como fez com a mulher Samaritana, ressuscitava-as como fez com a filha de Lázaro. Soma-se a estas perguntas uma história fundante da tradição judaico-cristão.

Não é preciso interpretá-la literalmente para apreender a profundidade da lição moral que propõe. Trata-se de uma narrativa do Gênesis 4, versos 8 a 10: “Enquanto eles estavam no campo, Caim atacou seu irmão Abel e o matou. Então o Senhor disse a Caim: “Onde está seu irmão Abel?” “Não sei”, respondeu ele. “Eu sou o guardião do meu irmão?” O Senhor disse: “O que você fez? O sangue do seu irmão clama por mim desde a terra.”

Segundo observa o Rabi Jonathan Sacks, em comentário sobre este texto, Caim não nega sua responsabilidade pessoal na resposta. Ele não diz: “Não fui eu” ou “Não foi minha culpa”. Trata-se de uma negação de responsabilidade moral, quando pergunta por que deveria se preocupar com o bem-estar de alguém além de si mesmo. Esta negação da responsabilidade moral, destacada por Hannah Arendt como correlacionada à origem do mal, manifesta-se em muitos malefícios cometidos por pessoas que “nunca se decidiram sobre fazer o bem ou o mal” .

Muitas vezes, as pessoas sequer se sentem implicadas, configurando-se um fenômeno conhecido como difusão da responsabilidade, ou seja, se todos testemunham o mesmo problema, alguém (não eu) deverá tomar a iniciativa de responsabilizar-se pela solução.

Esquecemos que liderança pressupõe senso de responsabilidade. Podemos escolher dizer sim à indignação que nos sobrevém ao observar um problema social tão persistente e grave, ou podemos escolher ser “neutros”. O problema é que não há neutralidade moral. Somos, de fato, guardiões de nossos valores, de nossas comunidades, de nossas escolhas e do valor que atribuímos, não por meio de discursos, mas por atitudes e ações, à vida das mulheres.

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