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Estudo aproveita inteligência artificial para identificar as sementes mais viáveis de espécies florestais nativas da Amazônia. (Matheus Melo)
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Publicado em 17 de outubro de 2025 às 13h15.
Por Alice Amorim com edição de Daniel Nardin
O ano de 2025 marca a metade da Década da Restauração de Ecossistemas. Estabelecida pela ONU para o período entre 2021 e 2030, a iniciativa visa prevenir, interromper e reverter a degradação dos ecossistemas em todos os continentes e oceanos.
No entanto, não se esperava que os últimos cinco anos seriam tão críticos para biomas como a Amazônia. A redução da fiscalização e das ações de combate ao desmatamento ilegal no início da década, combinada com o efeito severo do El Niño e secas extremas em 2023 e 2024, tornou a tarefa de restaurar a floresta mais desafiadora.
Somente em setembro do ano passado, a degradação florestal na Amazônia atingiu mais de 20 mil km² - o equivalente a mais de 13 vezes a cidade de São Paulo.
Essa foi a maior área danificada nos últimos 15 anos, segundo dados do Imazon, instituto que usa imagens de satélite para monitorar o desmatamento e a degradação na Amazônia.
Com uma vasta área a ser restaurada em diferentes biomas brasileiros, é preciso definir prioridades. O mapeamento deve considerar as particularidades de cada ecossistema, garantindo o plantio de espécies adequadas. Além disso, o aumento dos incêndios florestais exige políticas públicas mais ágeis e certeiras.
"Temos planta num ano, no outro já está tudo perdido. Uma floresta que era úmida hoje se tornou seca por conta de tantos focos de incêndio acontecendo ao mesmo tempo", contextualiza Lydiane Bastos, engenheira florestal e pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), em Manaus.
"Não temos tempo a perder, precisamos restaurar da forma mais rápida e assertiva possível. Por isso, temos que usar a tecnologia a nosso favor", enfatiza Lydiane.
Tentando contornar esses obstáculos, a pesquisadora desenvolveu um estudo que aproveita a inteligência artificial para identificar as sementes mais viáveis de espécies florestais nativas da Amazônia.
Financiado pelo Instituto Serapilheira e pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), o projeto coleta e captura imagens de sementes de 200 espécies florestais, distribuídas em ecossistemas diversos do Baixo Tapajós, no Pará: várzea, terra firme, igapó e campinarana — vegetação que se desenvolve sobre solos arenosos de baixíssima fertilidade, mas fundamental para a recuperação de mata ciliar.
Depois de registrar as imagens em equipamentos de raios-X e scanner, as correlaciona com testes de germinação realizados no Laboratório de Sementes Florestais da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), o único da região Norte certificado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA).
Segundo Lydiane, esses protocolos de análise permitem um laudo de qualidade para viabilizar o comércio de sementes. Porém, o processo demora tanto que não raro se torna inviável.
"Dependendo da espécie, as sementes podem levar semanas, meses ou até anos para germinar. Quando descobrimos se aquele lote estava viável, ele já está impossibilitado para comércio", aponta.
Além de acelerar esse processo, a tecnologia permite identificar quais variedades de uma mesma espécie, como a pupunha, adaptam-se melhor a diferentes ambientes, auxiliando no plantio e na coleta de sementes de populações mais saudáveis e produtivas.
O recurso também apoia a identificação de espécies, função antes restrita a análises de DNA - processo laborioso em que o material genético das células é cortado em pedaços, cada parte é lida e depois reunida por computador, revelando informações sobre como a planta cresce e se adapta.
Pela forma, peso, tamanho, textura e cor visíveis nas imagens, é possível diferenciar plantas semelhantes. É o caso das copaíferas, gênero de árvores tropicais frequentemente confundidas no campo porque têm folhas, cascas e troncos muito parecidos, com diferenças apenas em detalhes.
Os algoritmos de inteligência artificial organizam e sintetizam essas informações em segundos, garantindo precisão e rapidez ao processo - ferramenta estratégica tanto para coletores quanto para programas de restauração florestal.
"Esse é o mundo mágico da inteligência artificial que a gente pode trazer às espécies florestais, para diferenciar, otimizar recursos e ações de coleta e de plantio", destaca a pesquisadora, animada.
Lydiane Bastos, pesquisadora do INPA: "Costumo dizer que a semente é o ouro verde da Amazônia. Então, a gente pode usá-la para tudo: para produção de óleo, muda, biojoias, adubo…"
O primeiro passo da pesquisa de Lydiane começa em campo, com a ajuda de coletores de sementes de cada ecossistema mapeado, que a guiam pela floresta.
A também engenheira florestal Jéssica Reis ajuda na articulação com as comunidades. Coordenadora das atividades do polo de referência do bosque de pesquisas da Embrapa em Belterra, ela atua lado a lado com Lydiane na coleta.
Considerando a meta do Pará de restaurar 5,6 milhões de hectares até 2030, Jéssica destaca que envolver a tecnologia nesse tipo de projeto torna o caminho menos complicado.
"Para nós que trabalhamos com restauração e reflorestamento, é uma esperança ver nossas florestas serem recompostas. E essa esperança está guardada dentro das sementes", declara.
Ela lembra dos piores momentos da seca histórica de 2023 e 2024, com incêndios e fumaça densa que afetaram ciclos reprodutivos e atrasaram a frutificação de espécies como a andiroba, sinalizando impactos das mudanças climáticas.
"Foi um cenário de filme de terror! Tinha muita fumaça, não dava para enxergar o horizonte", conta.
Dados do MapBiomas (sistema que reúne informações praticamente em tempo real dos impactos nos biomas brasileiros) reforçam o quanto a supressão vegetal foi intensa nos últimos dez anos nas regiões de Santarém e Belterra, onde o projeto é desenvolvido junto às comunidades. Foram 236 mil hectares queimados e 89 mil hectares desmatados.
Jéssica destaca que a inteligência artificial pode ajudar a selecionar boas matrizes (árvores que fornecem material para propagação), tornando o replantio mais eficiente e econômico.
Quem coleta sementes na Floresta Nacional (Flona) do Tapajós precisa conhecer bem o terreno. Na mata fechada, sem trilha certa para se guiar, são subidas e descidas pisando em galhos, desviando de insetos e animais peçonhentos, guiando-se apenas pelos sons e pelas árvores.
Exige esforço físico e conhecimento ancestral para não só encontrar as sementes, mas também carregar as sacas pesadas com a coleta. Agora, imagine se, depois de tudo isso, aquelas sementes não forem ideais para o plantio? Afinal, podem estar ocas ou com fungos, invalidando todo o esforço.
É esse tipo de situação que o projeto busca evitar. "Vai reduzir as distâncias e o tempo de trabalho do coletor. Vamos conseguir descobrir quais matrizes dão mais sementes viáveis, para que se vá direto até elas", acrescenta Lydiane.
Debaixo das copas das árvores, Lydiane respira fundo e toma fôlego enquanto se prepara para fazer uma nova coleta. "Sou megalomaníaca. Tenho várias ideias para esse projeto, vou passar a vida toda fazendo isso. Quero criar um aplicativo para que, no celular, o coletor tire uma foto da semente e já saiba qual é o percentual de germinação dela", planeja.
Para José Viana, melhorar a qualidade do trabalho da coleta é um incentivo para que a população permaneça no território. Os paraenses, inclusive, têm passado por um processo migratório em busca de trabalho, em especial para Santa Catarina, onde já são o quarto maior grupo de migrantes.
Nascido e criado na Flona do Tapajós, ele não precisa de GPS para se localizar nem tirar pausas para retomar o fôlego nas longas trilhas que cansam em minutos aqueles que não estão acostumados. "A floresta é minha segunda casa. Não tenho cisma e nem dúvida de errar, já está gravado na mente", afirma.
Filho de pai seringueiro, ele também começou nesse ramo. Contudo, por volta dos 20 anos de idade decidiu abraçar uma oportunidade para trabalhar na botânica, fazendo inventário florestal para empresas.
Hoje, está focado na coleta de sementes, entregando-as para a esposa e a filha ajudarem a produzir mudas, que são vendidas a R$ 5,00 a empresas que fazem restauração florestal no local.
A vizinha, Josiane Cativo, intercala seu dia com atividades de casa, da roça e da floresta. A coleta de sementes na Flona serve para comercializar tanto in natura quanto para produzir mudas de espécies diversas, também vendidas para empresas.
"A gente ainda não consegue viver só de semente, mas se desse para ganhar dinheiro, eu preferia mil vezes estar mexendo com muda, é um prazer para mim", diz
José Viana, coletor de sementes da Flona do Tapajós: "A floresta é minha segunda casa". (Matheus Melo / Amazônia Vox)
Para avançar em sua pesquisa, Lydiane conta com uma rede de parceiros em diferentes instituições de pesquisa da Amazônia, unindo tecnologias e saberes.
Parte das análises começa ali mesmo, próximo das áreas de coleta, no laboratório da UFOPA em Santarém. Ali, seguindo protocolos do Ministério da Agricultura, as sementes são armazenadas, avaliadas e recebem as condições ideais para germinar.
Segundo o professor Everton Almeida, coordenador do espaço que surgiu no final da década de 1970, foram mais de dez anos para preparar o laboratório, qualificar as pessoas e estabelecer esse padrão de qualidade.
"Depois do credenciamento, várias outras instituições nos procuraram para aprender com esse processo. Estamos tentando articular cada vez mais com outras iniciativas e pesquisadores, para ajudar como pudermos com a cadeia da restauração florestal", explica.
As sementes viajam até uma das instituições aliadas, onde Lydiane também atua: o Centro de Sementes Nativas do Amazonas (CSNAM), em Manaus, que tem o único raio-X da região Norte propício para esse trabalho, além de um scanner de alta resolução.
Assim, é possível identificar danos ou má formação no interior das sementes sem precisar abri-las. Novamente, tecnologia de ponta como aliada da natureza.
Em Belém, no Museu Paraense Emílio Goeldi, está instalado o segundo scanner de alta resolução da Amazônia Legal. Por isso, o intercâmbio de conhecimento entre as duas instituições é essencial.
"A Lydiane também trabalha no mesmo ramo, nós temos o mesmo equipamento e nos encontramos no ano passado. Por isso, resolvemos trocar experiências e conhecimentos dentro de todo o contexto de tecnologia de semente nativas da Amazônia", explica a pesquisadora do Museu Goeldi, Olivia Ribeiro, que usa a inteligência artificial para fazer a caracterização das espécies florestais nativas da Amazônia - uma descrição detalhada de suas características físicas, morfológicas e funcionais.
Lydiane explica que a proposta é trazer a ciência florestal e a silvicultura de espécies nativas para a era tecnológica, aproximando o estudo das sementes da realidade atual.
"Essa é uma pesquisa que já existe na agronomia há muitos anos. Desde os anos 60 já utilizam raio-X para soja, por exemplo. E as florestas sempre foram vistas como secundárias na aplicação dessa tecnologia e desse conhecimento"
O professor da UFOPA Túlio Silva, integrante do projeto de IA de Lydiane, explica que a tecnologia pode ir além da viabilidade das sementes, trazendo respostas sobre os efeitos de agrotóxicos nas espécies florestais.
Por exemplo, de 2014 a 2024, os municípios de Santarém e Belterra perderam 56 mil hectares de florestas, convertidos em pastagem. Ao transitar pela região, é perceptível como a floresta protegida está cercada de fazendas de soja ou gado em vários pontos.
A equipe investiga como a aplicação de pesticidas nessas áreas vizinhas pode afetar a floresta nativa próxima, quanto à germinação e ao desenvolvimento inicial de espécies florestais, mais vulneráveis que plantas adultas.
"A região de Santarém é uma área de fronteira agrícola em que a agricultura está crescendo muito. Quando abre um espaço para lavoura, na maioria dos casos, é cercado por uma floresta. Por isso, será que esse defensivo pode também prejudicar o crescimento inicial de um vegetal numa área próxima?", questiona.
Essa é uma amostra de como a pesquisa de Lydiane pode se expandir. Além de prever a viabilidade das sementes, a inteligência artificial pode ajudar a revelar impactos das atividades humanas, como o uso de pesticidas, sobre o crescimento inicial das espécies florestais.
Com mais pesquisas como a dela, mais respostas científicas podem ser reveladas, desvendando enigmas da Amazônia e abrindo caminhos para que a restauração florestal seja cada vez mais eficiente e resiliente.